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CAPÍTULO II ENQUADRAMENTO TEÓRICO

1. Orientações para a Matemática

1.2 Gestão curricular

O conceito de gestão, em educação, reporta-se ao processo de tomadas de decisões em função de varáveis inerentes à realidade de cada comunidade educativa e subentende, segundo Leite (2001), “analisar as situações, tomar decisões e agir em conformidade com essas decisões e com o balanço que se vá fazendo dessa acção” (34).

Na visão defendida por Roldão (1999a), a gestão é um processo de tomada de decisões orientado para as finalidades que se pretendem atingir. Segundo a autora, pressupõe que se analise a situação que se apresenta confrontando-a com o que se pretende conseguir e através da identificação, seleção e aplicação de caminhos possíveis, implica um constante acompanhamento e avaliação dos processos e produtos, com o objetivo de compreender se se adequam ou não aos objetivos pretendidos.

Considerando que, como afirma Roldão (1999a) “sempre se geriu o currículo e sempre terá que se gerir, isto é, decidir o que ensinar e porquê, como, quando, com que prioridades, com que meios, com que organização, com que resultados…” (25), o que traz de novo este conceito? O que torna inovador este conceito é o tipo de decisões, os locais e as justificações pedagógicas e, ainda, quem as toma. De facto, estas decisões estão cada mais centradas na escola, nos professores e no aluno como fator central da regulação do processo. O que há radicalmente de novo e de maior destaque no processo de gestão curricular é uma maior responsabilidade aos gestores locais do currículo – escolas e professores.

A construção contextualizada do currículo implica, assim, reconhecer e querer que as escolas e os professores assumam a responsabilidade de desenvolver um trabalho onde nem tudo é prescrito a nível nacional e implica que os professores sejam recetivos a dinâmicas de interação que partam do conhecimento das situações reais para dar forma e sentido a práticas curriculares que promovam um ensino para todos de melhor qualidade. Implica, pois, uma negociação entre o nacional e o local e entre os diversos agentes

educativos que permitam repensar a organização escolar e reinventar estratégias de intervenção.

Todos reconhecem a importância dos professores como intérpretes do discurso científico original e adaptadores para um discurso didático que permita aos alunos apreenderem e compreenderem esse discurso. E cada vez tem, também, sido reconhecida uma maior importância de uma gestão curricular, ao nível das escolas, que permita incorporar as realidades e as especifidades de cada situação, que não são, nem podiam ser, contempladas num currículo estruturado em todos os seus pormenores à escala nacional. É esta gestão curricular que pode proporcionar aprendizagens funcionais, adquiridas através de um currículo desenvolvido de um modo integrado e numa estreita relação entre as diversas áreas do saber se opõe a lógica meramente monodisciplinar e desligada das situações reais.

A gestão curricular local justifica-se, portanto, para se fazer melhor do que se a opção fosse a centralização e a uniformização curricular. Justifica-se para se transformar o currículo prescrito a nível nacional num projeto contextualizado a cada situação e, portanto, reconstruído localmente. E essa contextualização implica que esse projeto seja orientado por uma intencionalidade própria, negociada entre professores, alunos e demais elementos das comunidades escolar e educativa. E implica que esse projeto curricular seja significativo para aqueles que o vão configurar e desenvolver, permitindo-lhes construir saber sobre as suas experiências e adquirir saberes e competências de experiências que lhes não são familiares.

Gerir o currículo pressupõe, deste modo, analisar as situações, tomar decisões e agir em conformidade com essas decisões e com o balanço que se vá fazendo dessa ação. Não pode, de forma alguma, portanto, pensar-se que a gestão curricular consiste em fazer uns cortes nos programas para os tornar mais simples e mais acessíveis. Essa ideia corresponderia a um empobrecimento do currículo, a uma redução e a um abaixamento de nível que não se coadunam com a ideia de gerir para melhorar. Há aprendizagens e competências imprescindíveis a todos os alunos. Há saberes que são essenciais, enquanto conhecimentos prévios para outras aprendizagens e para uma igualdade de oportunidades de acesso e de sucesso a outras formações.

O conceito de gestão curricular surge também, muitas vezes, associado ao de flexibilização curricular. Segundo Roldão (2000), flexibilizar o currículo significa

“deslocar e diversificar os centros de decisão curricular, e por isso visibilizar níveis de gestão que até aqui tinham pouca relevância neste campo” (86) e “flexibilizar opõe-se a uniformizar” (Roldão, 1999a: 54), no sentido de se articular as exigências de um currículo prescrito a nível nacional, igual para todos, com a particularidade e a singularidade de cada escola. Subjaz a este conceito a melhoria da qualidade da educação, pela promoção do sucesso individual, numa escola onde todos são cada vez mais diferentes - procurando-se para cada caso, vias mais adequadas para desenvolvimento das aprendizagens.

Em estreita relação com este conceito encontram-se outros relativos ao currículo, nomeadamente os de diferenciação e adequação, embora numa perspetiva não tão abrangente. Relativamente ao primeiro, Abrantes (2001) aponta que diferenciar significa “que nós temos de procurar caminhos, que são necessariamente diversos para que todos os alunos tenham sucesso” (28), no sentido de incluírem tipos e sequências de atividades, a articulação entre os saberes das várias disciplinas, a organização dos grupos de trabalho, dos espaços e dos tempos, em função da diversidade de cada população escolar. Para Roldão (1999a), gerir o currículo pressupõe diferenciar “as opções de cada escola para responder melhor ao seu público; os projectos curriculares das turmas de alunos para melhorar a aprendizagem; os modos de ensinar e organizar o trabalho dos alunos para garantir a aprendizagem bem-sucedida de cada um” (52). Este conceito acentua a dimensão da diversidade dos alunos e a consequente necessidade de equacionar o currículo tendo em conta a especificidade de cada um. Sublinhe-se que diferenciar traduz-se em estabelecer diferentes vias a percorrer e nunca em diferentes metas de chegada. Embora as condições de partida possam ser díspares, todos os alunos, e não apenas alguns, devem apropriar-se de competências, incluindo atitudes e saberes, significativos para a sua vida pessoal e social.

Quanto ao segundo conceito, adequação curricular, Abrantes (2001) refere que “gerir o currículo significa procurar maneiras adequadas para que todos os alunos aprendam” (28), isto é, e segundo Roldão (1999b), “a adequação de algo a alguém” (59), na medida em que o professor ajusta as suas opções às características pessoais dos alunos, tendo como referente os conteúdos propostos de aprendizagem que todos devem alcançar. Com efeito, promover a adequação curricular acentua o papel do professor como gestor do currículo, ao assegurar uma igualdade de aprendizagens para todos os alunos, independentemente da diversidade e diferença de situações à partida.

Em suma, gerir o currículo de forma flexível inclui que em cada escola se criem condições para o desenvolvimento de pedagogias diferenciadas, adequando metodologias e estratégias pedagógicas às características e necessidades de cada aluno e grupo de alunos. Por isso, uma escola que se deseja para todos tem de repensar o currículo que oferece e reconfigurar o que é instituído a nível nacional, de forma a incorporar as situações locais e sustentar-se em processos que o tornem significativo para aqueles que o vão viver.

Esta perspetiva de gestão curricular constitui um desafio para as escolas e, em particular, para os professores, tendo em conta a diversidade sociocultural que caracteriza a escola, nos tempos de hoje.

Neste sentido, ao fazerem gestão curricular em Matemática, os professores analisam os temas matemáticos a lecionar e objetivos de aprendizagem – gerais e específicos – definidos nas orientações programáticas em vigor, tendo em conta as especificidades dos seus alunos, os recursos existentes, as condições da sua escola e o contexto escolar e social, ou seja, reconstroem necessariamente o currículo, contribuindo para a sua reinterpretação e transformação, que exige naturalmente o concurso de dois elementos fundamentais, experiência profissional e capacidade analítica e reflexiva dos intervenientes neste processo.

A relação com as outras disciplinas ou áreas disciplinares é outro aspeto a que o professor deve dar atenção quando desenvolve o currículo, não só ao nível macro quando planifica o ano letivo, um período ou uma unidade didática, mas também num nível micro quando planifica particularmente uma aula.

Sublinhe-se que a gestão curricular feita na aula não é um simples trabalho de aplicação e controlo do trabalho de acordo com o plano estabelecido para a aula e para a unidade. Pelo contrário, é um trabalho eminentemente criativo, na medida que cabe ao professor reformular os seus objetivos e a sua estratégia face aos acontecimentos que se desenvolvem, tirando partido das intervenções e aproveitando as oportunidades que se lhe oferecem.

Para sustentar esta mudança paradigmática em termos curriculares, foram encomendadas, a especialistas nacionais em Didática e Teoria do Currículo, pelo Departamento da Educação Básica, algumas iniciativas que se traduziram em diversas publicações, documentos de trabalho e brochuras com informações simples e propostas concretas, com a finalidade de consubstanciar uma nova lógica curricular ao nível do

Ensino Básico. Subjacente a este processo preparatório esteve também a publicação do Decreto-Lei n.º 6/2001, de 18 de Janeiro (DR, 2001), que fez emergir, no seio da comunidade educativa, um novo entendimento sobre o conceito de currículo com a introdução de uma gestão bipartida assente em princípios de reconstrução, diferenciação e construção do currículo em função dos alunos. No quadro da autonomia concedida às escolas, este diploma define os princípios orientadores da organização e da gestão curricular e com ele surge a obrigatoriedade de elaboração de projetos curriculares de escola e de turma.

Paralelamente, foram realizadas também várias investigações em Portugal em torno do currículo e da gestão curricular que atestam, ainda, uma cultura de trabalho normativa que assenta numa lógica de currículo centralizado e uniforme e, concomitantemente, dificuldades de operacionalização, nomeadamente no que diz respeito ao Projeto curricular de Turma. Sem pretensões de exaustividade, apresentam-se algumas das temáticas centrais desses estudos.

Martins (2005), por exemplo, desenvolveu um estudo que pretendeu avaliar a forma como os professores se apropriam da atual abordagem curricular perspetivada para o desenvolvimento de competências, em particular das definidas para as Ciências Físicas e Naturais do 3.º Ciclo. A investigadora concluiu que, no meio escolar, predomina uma cultura curricular pouco autónoma, marcada pela preocupação com o cumprimento formal do que é preconizado no programa e no manual, em detrimento de uma (re)construção do currículo, tendo em conta a sua adequação e eficácia relativamente aos processos de aprendizagem dos alunos.

Carvalho (2006), pretendendo analisar a presença da transversalidade da compreensão na leitura em documentos associados à gestão flexível do currículo, desenvolveu um estudo e apresentou, para o efeito, sugestões práticas de atuação cujo objetivo era o de poderem contribuir para uma gestão flexível do currículo promotora da transversalidade da compreensão na leitura. Nesta investigação, a autora verificou a existência de grandes dificuldades de operacionalização da transversalidade da língua portuguesa associada à compreensão da leitura. Esta conclusão levou-a a identificar algumas das causas desse fenómeno e apresentar formas de atuação para melhorar a gestão curricular feita pelos professores do 3.º Ciclo, no que respeita ao seu desempenho profissional no âmbito do Projeto da Gestão Flexível do Currículo.

Num estudo conduzido por Costa et al. (2002), com o qual se pretendia investigar a implementação do Projeto da Gestão Flexível do Currículo numa Escola Básica dos 2.º e 3.º Ciclos, verificaram-se, também, algumas dificuldades de operacionalização, principalmente no que concerne ao Projeto Curricular de Turma. Pretendendo analisar os referidos projetos, depressa os investigadores se aperceberam de que seria uma tarefa inglória ter como objetivo encontrar documentos minimamente formalizados que pudessem classificar como projetos curriculares de turma. Porém, atendendo ao facto de que não são só os documentos que produzem as práticas, procuraram averiguar mudanças ocorridas nestes contextos, na tentativa de identificar processos organizacionais, práticas pedagógicas e tendência que pudessem ajudar a descobrir a existência de projeto curricular de turma implícito e, eventualmente, perspetivas de mudanças nas praticas curriculares. Mas, não obstante ser visível um novo investimento em termos de funcionamento dos Conselhos de Turma relacionado com áreas de atuação e processos de colaboração docente, não se verificaram grandes mudanças nas práticas pedagógicas ao nível da articulação curricular. De acordo com estes investigadores, a problemática das lideranças pedagógicas intermédias, com particular referência ao Director de Turma, é uma das dificuldades principais que se colocam à operacionalização do projeto.

Tendo em consideração as dificuldades inerentes à concretização da gestão curricular relacionadas, designadamente, com os novos desafios que se colocam aos professores no âmbito da operacionalização do projeto curricular de turma, é nossa convicção que será possível abrir caminhos para que os professores se tornem decisores/gestores e (re)construtores do currículo e, congruentemente, promotores da diversidade de práticas e de inovação. Assim, e na senda do que já foi referido sobre a especificidade do objeto da Didática, espera-se que os professores, em formação inicial ou contínua, tomem decisões mais informadas, sobre o seu ensino, fundamentais para a tão almejada e imprescindível melhoria do processo educativo (Alarcão, 1989).