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2. Fundamentos da dependência de cigarros

2.2.2. Gestão da síndroma de abstinência

Apesar do seu aspecto ingénuo e inócuo, o cigarro é um produto tecnológico altamente sofisticado, optimizado até ao ponto de se tornar a forma mais eficaz de ministrar doses controladas de nicotina ao cérebro (Hurt & Robertson, 1998). Na verdade, o consumo de nicotina é motivado pelos seus efeitos psicobiológicos positivos e negativos. Apesar de, por vezes, ser difícil separar o que constitui reforço positivo e reforço negativo, considera-se que o primeiro inclui as sensações de relaxação e redução do stresse, aumento dos níveis de vigilância, melhoria subjectiva das funções cognitivas, modulação do humor e controlo do peso, enquanto o segundo, se refere, essencialmente, ao alívio dos sintomas de privação (Groman & Fargerström, 2003; Hughes & Hatsukami, 1986). Assim, quando o fumador repõe os níveis sanguíneos de nicotina, é reforçado pela sua acção sobre o organismo que o protege de sentir o desconforto da privação. Neste processo de gestão intuitiva e automática das concentrações de nicotina, cada fumador aprende a manipular diversos factores mediadores, como o padrão de inalação, o tipo de produto do tabaco consumido, o nível de exposição ao fumo do tabaco, o contexto psicossocial ou os polimorfismos genéticos:

Padrão de inalação.

O padrão de inalação relaciona-se com o volume e profundidade de cada inalação, mas também com o ritmo e intensidade de fumar (Herning et al., 1983). Segundo Eysenck (2000), em média um fumador de cigarros do tipo americano, fará cerca de dez inalações por cigarro, cada qual com uma duração de meio a quatro segundos e um volume de fumo inalado que variará entre os 25-60 cm3 (M = 42,5 cm3). A quantidade média de CO produzido ao fumar um cigarro, será de 3-25 cm3, dependendo da rapidez com que o cigarro é fumado, absorvendo cerca de 1-2 mg de nicotina por cada cigarro. Por seu turno, os fumadores que inalam com mais frequência e com intervalos curtos, sujeitam o organismo a um padrão de administração que o torna propenso a níveis mais elevados de tolerância e em consequência da

neuroadaptação, a uma síndroma de abstinência tendencialmente severa (Groman & Fargerström, 2003).

Produto do tabaco consumido.

O tipo de tabaco consumido, condiciona o padrão de inalação e as concentrações sanguíneas de nicotina. Um fumador habituado a uma marca de cigarros, com um teor elevado de nicotina, ao mudar para outra marca de menor teor nicotínico, tenderá a usar medidas de compensação, como fumar maior número de cigarros, consumir maior porção de cada cigarro, fazer inalações mais largas, profundas ou frequentes, ter o cigarro mais tempo na boca ou a tapar o filtro para retardar a combustão (Becoña & González, 1998). Por outro lado, fumar cigarro, cigarrilha, charuto, cachimbo ou tabaco de mastigar implica diferenças, não apenas no ritmo de libertação de nicotina, mas também nos rituais e contextos sociais propícios à utilização de cada produto. Comparativamente, uma cigarrilha equivale a cerca de dois cigarros, um cachimbo, a dois cigarros e meio e um charuto a quatro cigarros (NRTC, 2004). Em relação ao tabaco de mastigar, um estudo (Benowitz et al., 1988) revelou que mastigar durante trinta minutos uma dose média de 2,5 gr, libertava 3,6 mg de nicotina (apróx. 3 cigarros) e, para uma dose de 7,9 gr, a quantidade de nicotina subia para 4,6 mg (apróx. 4 cigarros). •

Exposição ao fumo do tabaco.

A exposição passiva e/ou activa ao fumo

do tabaco, condiciona o nível de nicotina absorvido. O fumador activo está exposto a três tipos de fumo (ver Figura 3): (1) o fumo da corrente principal que entra na boca do fumador quando chupa pelo filtro, (2) o fumo lateral que, de todos, é o mais tóxico e se liberta para o ambiente enquanto o cigarro arde sem ser fumado e (3) o fumo terciário, exalado pelo fumador após uma inalação (Dautzenberg, 1996). Como se constata, o nível de exposição ao fumo resulta, não apenas da corrente principal, mas também da diluição entre o fumo lateral e terciário e o ar do local onde o fumador se encontra. Este é também o motivo pelo qual a exposição aos ambientes contaminados pelo fumo do tabaco (Environmental Tobacco Smoke - ETS), ou seja, o tabagismo passivo, tem merecido a atenção dos investigadores e em 1986 foi o tema de um Relatório do Surgeon General (USDHHS, 1986).

Figura 3. Tipos de fumo produzidos durante a combustão do cigarro.

Contexto psicossocial.

O acto de fumar é afectado, quer por estados intra- pessoais (ex. desejo, sensações físicas, estados emocionais positivos e negativos, pensamentos), quer pela exposição a situações inter-pessoais (ex. pressão social directa e indirecta, conflitos interpessoais, situações de convívio e prazer). Em ambas as situações (intra e inter-pessoais), os fumadores aprendem a usar o efeito bifásico da nicotina, ora promovendo a activação/estimulação, ora induzindo a desactivação/sedação psicofisiológica (Eysenck, 1980; USDHHS, 1988). Neste sentido, o estado emocional, físico e os contextos sociais influenciam a forma como cada cigarro afecta a percepção do fumador (USDHHS, 1988). Porém, a acção estimulante e tranquilizante da nicotina é de tal forma subtil que muitos fumadores não percebem que a usam para modular estados emocionais ou para potenciar sensações de prazer (Gilbert, 1995). Apesar de desconhecerem os efeitos farmacológicos e psicoactivos do tabaco, os fumadores usam a nicotina para optimizar alguns desempenhos cognitivos, regular o peso ou, por exemplo, para lidar com situações indutoras de stresse (Groman & Fagerström, 2993).

Polimorfismos genéticos.

Estudos relativamente recentes revelam existir diferenças no número de receptores cerebrais de nicotina, na taxa de metabolização e sensibilidade à nicotina ou na rapidez com que se desenvolve a tolerância. Apesar dos resultados serem ainda pouco consistentes, os investigadores têm-se interessado especificamente pelo papel da enzima CYP2A6 (Tricker, 2003; Tyndale, Pianezza & Sellers, 1999), responsável pela

Fumo da corrente principal Fumo lateral Fumo terciário Micro-perfurações 12 mm Porosidade do papel

transformação da nicotina em cotinina, bem como pelos genes que regulam a função dopaminérgica – DRD2 (Comings et al., 1996). Estas variações genéticas parecem desempenhar um papel importante na determinação da quantidade de substância ingerida, do número de anos de tabagismo, da gravidade da dependência, da intensidade da síndroma de abstinência ou da propensão para recair. Tem sido também sugerido que a variância explicada pelos factores genéticos na determinação da intensidade do hábito de fumar, possa variar entre os 50% (Groman & Fargerström, 2003) e os 70% (True et al., 1997).