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Gestão e uso do patrimônio foreiro (1903-1919) 4 A POLÍTICA DE APROPRIAÇÃO DO SOLO NATALENSE 4 A POLÍTICA DE APROPRIAÇÃO DO SOLO NATALENSE

4.1 - Apontamentos para uma história social da propriedade

O historiador, que percebe a linha e seu sentido, é, por vocação própria, um relativizador e um desmistificador, e é portanto o companheiro insubstituível que restitui a cada norma jurídica, a cada instituto jurídico, a sua real medida no terreno relativo da história494.

No início do século XX a apropriação do patrimônio fundiário natalense se dava via aforamento ou enfiteuse. De acordo com o Código Civil de 1916, a enfiteuse, aforamento ou emprazamento é um direito real495, que se estabelece quando “o proprietário atribui à outro o domínio útil do imóvel, pagando a pessoa, que o adquire, e assim se constitui enfiteuta, ao senhorio direto uma pensão, ou foro, anual, certo e invariável”496. Ainda de acordo com o Código de 1916, a enfiteuse é um direito perpétuo e somente as terras não cultivadas ou terrenos que se destinem a edificação podem ser objetos de aforamento. O referido Código fez distinção entre duas modalidades de propriedade: a plena, quando os direitos elementares se acham reunidos no do proprietário; e a limitada, quando a propriedade possui ônus real ou é resolúvel.

Em uma leitura inicial de tal Código, constatar-se-ia que a propriedade sujeita a contratos de aforamento deveria ser interpretada como uma propriedade limitada, já que é sujeita a ônus real. Todavia, o Código de 1916 estabeleceu como direitos reais além da propriedade, a enfiteuse, as servidões, o usufruto, o uso, a habitação, as rendas expressamente constituídas sobre imóveis, o penhor, a anticrese e a hipoteca. Sendo assim, o referido Código estabeleceu uma diferença entre propriedade e enfiteuse. Ambas estão enquadradas como um direito real, mas a enfiteuse é representada como uma modalidade à parte, não está incluída na categoria propriedade. Nota-se que o Código Civil de 1916 consolidou em suas determinações o modelo moderno de propriedade, enquadrando-a como um direito caracterizado pelo

494 GROSSI, Paolo. Introdução à edição brasileira. In:_______. História da propriedade e outros ensaios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.1.

495 Direito real corresponde ao poder jurídico que uma pessoa exerce sobre uma coisa determinada. Trata-se de um direito que adere de forma imediata a coisa ao titular. De acordo com Bevilaqua, os direitos reais estão divididos em duas categorias: o direito pleno sobre a coisa, como a propriedade; e os direitos limitados, em que se enquadraria a enfiteuse. Ver: BEVILAQUA, Clovis. Direito das coisas. Rio de Janeiro: Editora Freitas Bastos,

1941. Disponível em: <http://direitocivildigital.com/wp-

content/uploads/colecoes/03clovis/Direito%20das%20Coisas%20-%20vol%20I.pdf>. Acesso em: 01 abr. 2017. p.301- 307.

496 Ver artigo 674 do Código de 1916: BRASIL, Código Civil de 1916. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm>. Acesso em: 02 abr. 2017.

individualismo e pela plenitude, em oposição a outros direitos. De acordo com Bevilaqua, o objetivo da enfiteuse era facilitar “pela modicidade do preço, o aproveitamento das terras incultas ou abandonadas”497.

Já o Código Civil de 2002 definiu a propriedade como plena e exclusiva, e proibiu a constituição de enfiteuses e subenfiteuses, determinando que as já existentes fossem reguladas pelo Código Civil anterior498. Contudo, o Código de 2002 ressaltava que a enfiteuse dos terrenos

de marinha499 continuaria existindo, sendo regulada por lei especial500. Sendo assim, nesses dois

497 BEVILAQUA, Clovis. Direito das coisas. Op. cit., p.323.

498 Para Edgar Carlos de Amorim, não se deve afirmar que o Código de 2002 extinguiu a enfiteuse, uma vez que ele manteve a continuidade das relações enfitêuticas relativas a terrenos de marinha e as existentes no regime do Código de 1916, permitindo, assim, a continuidade de fato e de direito de “milhares de contratos enfitêuticos firmados por esses brasis afora”. Ver: AMORIM, Edgar Carlos de. A enfiteuse à Luz do Novo Código Civil. Fortaleza: ABC Editora, 2002. p.18.

499 O Aviso de 07 de dezembro de 1855 destacava que seriam terrenos de marinha aqueles “que, banhados pelas águas do mar, vão até a distância de quinze braças para a parte da terra, contadas desde o ponto a que chegar a preamar-médio”. Tal definição sofreu modificações ao longo do tempo. O Decreto-Lei de 1946, por exemplo, definiu terreno de marinha aqueles que “em uma profundidade de 33 metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831” se situarem no “continente, na crosta marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés; os que contornam as ilhas situadas em zona onde se faça sentir a influência das marés”. Deve-se ter cuidado para não confundir terreno de marinha com terreno da Marinha. Terreno de marinha tem como senhorio a União. Terreno da Marinha é o que se encontra sob posse e domínio da Marinha de Guerra do Brasil, “ambos são, na verdade, da União. No entanto, o primeiro é parte do gênero e o segundo parte da espécie”. Para mais informações sobre a regulação do aforamento para terrenos de marinha, ver: BRASIL. Decreto-Lei n.9.760, de 05 de setembro de 1946. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del9760.htm>. Acesso em: 02 abr. 2017; BRASIL. Decreto- Lei n.2.398, de 21 de dezembro de 1987. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965- 1988/Del2398.htm>. Acesso em: 02 abr. 2017; BRASIL. Decreto-Lei n.9.636, de 15 de maio de 1998. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9636.htm>. Acesso em: 02 abr. 2017; BRASIL. Decreto-Lei n. 1.876, de 15 de julho de 1981. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965- 1988/Del1876.htm>. Aceso em: 02 abr. 2017; BRASIL. Lei n. 13.139, de 26 de junho de 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13139.htm>. Acesso em: 02 abr. 2017. 500 De acordo com Amaral e Soares, o Código Civil de 2002 tentou construir o direito de Superfície como espécie de substituto da enfiteuse. O Título IV do Código de 2002 destacou o direito de superfície como a prerrogativa do proprietário de conceder “a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis”. Esse Direito pode ser concedido de forma gratuita ou onerosa. Quando onerosa, o pagamento pode ser efetuado de uma única vez ou de forma parcelada. Contudo, a transferência do direito de superfície para terceiros não implicaria pagamento de nenhuma taxa, diferente das transações de domínio útil da enfiteuse, que estão vinculadas de forma obrigatória ao pagamento da taxa de transferência denominada laudêmio. Ver artigo 2038 do Código de 2002. Ver: BRASIL. Código Civil de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/cCivil_03/Leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 02 abr. 2017; AMARAL, Anastácia Beda Oliva; SOARES, Adriano. A extinção do instituto da enfiteuse em terras particulares no Código Civil de 2002 comparado ao direito de superfície. Direito Unifacs, Salvador, n.132, 2011. Disponível em: < http://www.revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/viewFile/1493/1173>. Acesso em: 23 abr. 2017; BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit. Apesar da extinção da enfiteuse pelo Código de 2002, o instituto ainda persiste na atualidade. Um dos casos mais veiculados na imprensa atual a respeito da perpetuidade da enfiteuse é o de Petrópolis, município do Rio de Janeiro, em que o domínio direto dos terrenos ainda pertence aos herdeiros da família real, conforme citado na introdução desta tese. Sendo assim, quando os imóveis são alienados (isto é, o domínio útil desses imóveis), se paga o laudêmio aos herdeiros da família real. Em alguns municípios do Rio Grande do Norte, como a capital Natal, essa prática também permanece. Nesse caso, os detentores dos domínios diretos geralmente são as prefeituras. O artigo 22 do Decreto n.11089 de 02 de setembro de 2016 dispõe sobre o pagamento de laudêmio, ressaltando que essa taxa “incide sobre a transmissão de imóveis foreiros do Município de Natal e corresponde a 2,5% (dois inteiros e cinco décimos por cento) do valor do terreno considerado para efeitos de ITIV”. Ver: NATAL. Decreto n.11089 de 02 de setembro de 2016. Disponível em: < https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=328224>. Acesso em: 23 abr. 2017.

códigos, sobretudo no de 2002, o conceito de propriedade está vinculado ao pertencimento de direitos a um único indivíduo.

Alguns livros de juristas contemporâneos destacam a impossibilidade de considerar a enfiteuse enquanto modelo proprietário, e estão respaldados pela interpretação dos códigos civis citados, que definem a propriedade plena como exclusiva, absoluta, ligada a um único indivíduo501. Sendo assim, como o tema da propriedade da terra permeia esta tese, neste tópico

objetiva-se questionar o pressuposto de que a propriedade privada da terra é absoluta. Buscar- se-á demonstrar como os direitos de propriedade são plurais e mutantes, como são construídos historicamente502.

Muitos historiadores e juristas usam o modelo atual de propriedade da terra para investigar direitos proprietários de outros períodos, incorrendo em alguns deslizes. Um desses deslizes é o fato de negarem a condição de direito de propriedade aos direitos que não estão presentes na sociedade atual, como os senhoriais ou comunais. A propriedade não é definida apenas por meio de leis e de códigos. É necessário, pois, compreender a historicidade de cada modelo, a forma como diferentes sociedades lidaram com a terra ao longo do tempo. De acordo com Manoela Pedroza, a história social da propriedade da terra no Brasil é uma área que ainda carece de estudos de caso e de ensaios de cunho teórico, e os estudos existentes ainda se encontram na fase de “experimentação na teoria e na metodologia”503. Este capítulo pretende

também contribuir para ajudar a levantar discussões voltadas para essa área.

De acordo Clovis Bevilaqua, a enfiteuse tem origem grega. Tratava-se de um arrendamento a longo prazo ou perpétuo, realizado por cidades e templos e, posteriormente, passou a ser empregado também por particulares. A transmissão se dava de forma hereditária e a instituição previa o pagamento de canon e outras obrigações estipuladas nos contratos504.

501 Albany Castro Barros, ao defender a necessidade da abolição da enfiteuse em obra de 1980, ressaltou que a inclusão da enfiteuse na categoria de direitos reais (conforme estabelecido no Código de 1916) ofendia o direito de propriedade “e toda a moral em que se sustenta o mesmo, pois, não se compreende dentro de uma concepção social, como pode o proprietário constituir um direito real que somente lhe prejudica, em favor de um terceiro”. O autor também destacou que a “enfiteuse nunca foi um instituto justo e moralmente defensável. Ela sempre foi odiosa”. É possível notar como o referido autor recaiu em absolutismo jurídico, analisando um modelo de propriedade com base no código civil de sua contemporaneidade, não compreendendo a pluralidade proprietária, a existência de diferentes direitos regulando as relações entre homens e coisas. Ver: BARROS, Albany Castro.

Enfiteuse: da necessidade de sua abolição. Recife: FIDA, 1980. p.26.

502 Em minha dissertação de mestrado um tópico intitulado Dessacralizando as propriedades: o instituto do

aforamento urbano e a mentalidade proprietária do início do século XX dedicou-se a estudar temática semelhante

a proposta neste terceiro capítulo desta tese. Contudo, a discussão será aqui ampliada, apresentando obras e fontes que não foram mencionadas nesse trabalho anterior, tentando abordar de forma mais aprofundada a enfiteuse enquanto um modelo proprietário. Ver: SIQUEIRA, Gabriela Fernandes de. Por uma “Cidade Nova”. Op. cit., p.197-213.

503 PEDROZA, Manoela da Silva. Desafios para a história dos direitos de propriedade da terra no brasil. Op. cit., p. 8-10.

Entre os romanos, a enfiteuse também foi praticada com base em modificações provenientes da prática de arrendamento. Os municípios e corporações sacerdotais arrendavam as terras de forma perpétua ou a longo prazo, em troca de uma renda anual, com o passar do tempo foi concedido ao arrendatário a “actio in rem utiles contra qualquer possuidor, dando á relação jurídica o caracter de direito real. O emphyteuta tem a posse do bem com as respectivas acções, assim como [...] acção garantidora do direito, que, depois, os glosadores denominaram domínio útil”505.

Na Idade Média, a enfiteuse continuou sendo praticada e passou por transformações. Para Edgar Amorim, foi nesse período que o caráter unitário da propriedade romana perdeu força, desdobrando esta em domínios superpostos: “o domínio passou a ser direto ou o domínio do senhorio, e útil o domínio do enfiteuta, que podia de igual modo estabelecer subenfiteuses, desfrutando, assim, a dupla função de foreiro ante o senhorio e de senhorio ante o subenfiteuta”506.

Para esse trabalho de traçar uma historicidade da propriedade e tentar entender as especificidades da enfiteuse, faz-se fundamental as considerações de Paolo Grossi, que, em suas obras, defendeu a necessidade de situar a propriedade na cultura jurídica de cada época. De acordo com o autor, o termo propriedade é um artifício verbal empregado para designar a solução histórica que um ordenamento oferece ao problema da relação jurídica mais expressiva entre um sujeito e um bem507. Grossi ressaltou como no século XIX passou a ser predominante uma noção de propriedade individualista e potestativa, comumente denominada de “propriedade moderna”, noção essa que foi cristalizada, difundida, naturalizada508. O autor

ressaltou como muitos historiadores que pesquisam a relação do homem com a terra em outras temporalidades, como na alta Idade Média, por exemplo, partem do esquema individualista da propriedade para entender aquela outra realidade, perdendo-se na pesquisa em busca de termos que se enquadrem nesse referido modelo, quando, para Grossi, a atitude mais acertada seria “o de livrar a mente de sua ultrapassada forma de abordagem mental, que mede o real segundo sua correspondência com o esquema da propriedade individual”509.

De acordo com Paolo Grossi, a propriedade é um problema técnico, mas não pode ser reduzida apenas a sua dimensão técnica, pois ela sempre se coloca no centro de uma sociedade, é uma “resposta ao eterno problema da relação entre homem e coisas, da fricção entre mundo

505 Ibidem, p. 319.

506 AMORIM, Edgar Carlos de. Teoria e prática da enfiteuse. Op. cit., p.1.

507 GROSSI, Paolo. A propriedade e as propriedades na oficina do historiador. Op. cit., p.5. 508 Ibidem, p.12-13.

dos sujeitos e mundo dos fenômenos”510. Assim, aqueles que pretendem reconstruir a história

da propriedade não devem “ceder a tentações isolacionistas, deverá, ao contrário, tentar coloca- la sempre no interior [...] de um sistema fundiário com função eminentemente interpretativa”511.

Ou seja, para Grossi, o historiador precisa reconstruir o modelo proprietário do período que estuda tendo como base a sociedade daquele período, a forma como os sujeitos lidavam com os seus bens, sem tentar impor uma regra técnica baseada na concepção individualista que foi incutida como única e absoluta sobretudo a partir do século XIX. Para o autor, existem “‘tantas propriedades’ [...] quantas são as experiências jurídicas que se sucederam no tempo”512.

Conforme destacado anteriormente, a definição do Código Civil de 1916 ressaltou que o aforamento pressupõe a divisão dos domínios em útil e direto. No caso da aplicação desse modelo na capital norte-rio-grandense no início do século XX, o domínio direto era da Intendência Municipal de Natal, enquanto os foreiros ou enfiteutas teriam o domínio útil das terras que aforassem. Sobre a ideia de domínio útil, Grossi ressaltou que a própria denominação carrega uma contradição. Tem-se o termo domínio, que se refere à soberania do indivíduo, e o adjetivo útil, que faz referência ao gozo e não à soberania. Assim, trabalhar com a perspectiva de domínio direto e útil é fazer uma abordagem não individualista513. Essa concepção das divisões de domínios esteve presente no período medieval, ressaltando a incapacidade de se conceber a propriedade naquele período como relação pura. O domínio útil, segundo Grossi, traduz a mentalidade do alto medievo514, uma propriedade complexa e composta.

Grossi também ressaltou como o que denomina de “excesso de zelo pseudorigorista” fez com que se reservasse o termo propriedade para designar unicamente a propriedade moderna, deixando de fora, por exemplo, as várias formas medievais de domínio. Para o autor, esse excesso de zelo com o termo propriedade é um:

pseudo-problema e trata-se de pseudo-rigor: não há dúvida de que os dominia medievais pouco tenham a compartilhar com a propriedade moderna e que pela sua qualificação o próprio termo ‘propriedade’ não esteja imune de ambiguidades; nem o direto nem o útil – representam a propriedade. Os dominia constituem porém sempre uma propriedade, são sempre uma resposta à procura daquele momento mais intenso do pertencimento que, com as suas já assinaladas descontinuidades, é porém o fio condutor que liga o dominium clássico, os dominia dos Glosadores, a propriedade dos Pandectistas. Os dominia medievais são o mesmo problema, e têm o mesmo denominador comum problemático da propriedade de Windscheid; aqui está o continuum 510 Ibidem, p.16. 511 Ibidem, p.16. 512 Ibidem, p.39. 513 Ibidem, p.51-52. 514 Ibidem, p.54.

que nos permite usar instrumentalmente um termo comum. O descontínuo está, ao contrário, no conteúdo das soluções que toda civilização modela sob medida. Será, de qualquer modo, corretíssimo falar de propriedade também para o mundo do Renascimento medieval, com a única condição de que não se queira tornar própria a todo custo uma só resposta histórica – a moderna – e se pretenda projetá-la indiscriminadamente no seio das outras experiências históricas. E, tranquilamente, continuaremos a ver os dominia na história da propriedade515.

Sendo assim, conforme destacado no trecho transcrito, a divisão dos domínios também pode ser trabalhada enquanto um modelo proprietário, desde que se destaque que não existe um único modelo de propriedade; que propriedade não implica apenas nas ideias de soberania e individualidade, que estiveram presentes nos modelos romano-clássico516 e no moderno. Para o autor, no século XVI tem-se a conclusão de um processo no qual os poderes do senhorio, que possui o domínio direto da terra, vão diminuindo, enquanto os poderes do enfiteuta, detentor do domínio útil, ampliam-se “ao ponto de fazer deste último o substancial ‘propriétaire’ da coisa”517. A partir de então, tem-se o que Grossi denominou de altíssimo jogo intelectual, em

que juristas estiveram empenhados em elaborar um modelo diferente de propriedade518, voltado

515 Ibidem, p.55-56.

516 Segundo Paolo Grossi, os juristas romanos eram homens inseridos no tecido político romano e na sua classe dirigente. Suas categorias formalizavam uma civilização que valorizava de forma intensa a dimensão do ter, baseada no patrimônio e na apropriação, marcada por individualismo econômico. A forma como suas categorias e invenções formais foram fixadas em um fundo patrimonialista, privilegiava o abastado e o proprietário. Para Grossi, essa paisagem jurídica romana foi capaz de dar suporte técnico-jurídico para a ordem burguesa que se configurou entre os séculos XVI e XIX. Ver: GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre o direito. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p.40-41. É válido ressaltar também que existiam outras lógicas proprietárias na antiguidade. Sobre esse tema, a obra A Cidade Antiga, de Fustel de Coulanges, é reveladora das diferentes maneiras de se lidar com a propriedade entre os antigos. De acordo com o autor, os tártaros, por exemplo, concebiam o direito de propriedade apenas em relação aos seus rebanhos, e não em relação ao solo. Já entre os povos da Grécia e da Itália sempre se conheceu e se praticou a propriedade em relação ao solo. Para Coulanges, entre gregos e romanos o fogo sagrado e o culto aos antepassados foi primordial na definição da propriedade. Cada fogo era exclusivo de uma família, constituía-se em uma espécie de propriedade daquela determinada família e, como o fogo deveria ser colocado em um altar sobre o solo, cada lugar do solo passou a ser de propriedade da família que cultuava aquele fogo sagrado. Além disso, o culto aos ancestrais também era uma tradição entre os povos antigos. Cada família possuía o seu túmulo e foram construindo-se cercas e muros para proteger o campo que servia de túmulo para cada família. O solo que abrigava os túmulos passou a pertencer aos mortos daquela família, e, como a família era obrigada a proteger os túmulos, a terra passou a ser considerara uma propriedade sagrada. Sendo assim, entre gregos e romanos, a família e a religião doméstica foram fundamentais para a delimitação da propriedade. Para Laura Beck Varela e Staut Júnior, diferentemente do que Coulanges afirmou em sua obra, não se deve buscar no