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2. CAPÍTULO II A Mais Valia da Arte na Inclusão Social

2.1 Arte e Terapia que Ligações?

2.1.4 Gestalterapia e arteterapia gestaltica

Dentro dos modelos das terapias pela arte, encontra-se também a Gestalterapia.

A teoria formulada por M. Wertheimer, Kohler e Kofka baseia-se na noção de forma ou estrutura (gestalt), compreendida como um todo significativo. Esta teoria opõe-se diametralmente à premissa associacionista de W. Wundt, que a psique humana é uma estrutura composta por elementos mais simples – as sensações, que se associam e formam as percepções. “O Gestaltismo defende a ideia que os fenómenos são

percepcionados na sua totalidade, sem dissociar os elementos do contexto em que se situam e que lhe atribui significado. … uma melodia é uma unidade estruturada e não a simples soma de sons. Esta teoria postula o primado do todo sobre as partes. O todo não é, assim, a soma das suas partes.” (Pestana & Páscoa, 1998, p. 95). A teoria gestaltista defende ainda que a organização das partes obedece a princípios inatos, como por exemplo a “tendência à estruturação (tendência natural a organizar os elementos em função da proximidade ou semelhança); segregação figura-fundo (percepção de figuras distintas sobre fundos indefinidos); pregnância ou boa forma (percepção preferencial de formas simples e regulares). (Pestana & Páscoa, p. 95).

A teoria gestaltista foi enunciada num primeiro momento como reacção à explicação mais mecanicista do behaviorismo, defendendo que o comportamento humano não se limita à associação estímulo - resposta, sendo antes um todo complexo. Os princípios teóricos da Gestalt encontraram aplicação em vários domínios, designadamente na educação, no estudo da inteligência, neurociências, terapia, entre outros.

A psicoterapia é uma prática que prescinde da utilização de medicamentos ou qualquer outra acção externa, agindo “apenas com a comunicação humana, a palavra e todos os outros meios pelos quais o homem entra em contacto com um outro homem e pode, assim, actuar nele” (Binswanger, 1970, p. 137).

Segundo este autor a psicoterapia foca-se na relação interpares: duas pessoas frente a frente, dirigidos um para o outro. A condição da bilateralidade só é possível se o terapeuta conquistar e retribuir a confiança do indivíduo oferecendo ele próprio confiança, atenção, aceitação, assistência, etc..

“A possibilidade de psicoterapia não repousa em segredo ou em mistério algum, …nem sequer em algo de novo e extraordinário, senão em um traço fundamental da estrutura do ser humano com o „ser no mundo‟ (Heidegger), e precisamente o “ser o outro e para o outro”. Enquanto esse traço fundamental da estrutura do ser humano “se conservar, a psicoterapia será possível” (Binswanger, pp. 139-140). É nesta relação – de um para o outro – que assenta todo o processo psicoterapêutico; processo esse, que por vezes fruto das circunstâncias, pode ultrapassar os limites

teóricos indicados. A “suspensão” teórica e metodológica não significa o insucesso da terapia uma vez que permanece o essencial: dois seres humanos em relação.

É esta importância concedida à relação que fez da Gestalterapia uma das referências das psicoterapias.

A Gestalterapia é um processo psicoterapêutico experiencial que se baseia numa procura activa da tomada de consciência; centrada no „aqui e agora‟ e na experiência global da pessoa, abrangendo a sua totalidade: corpo, sensações, emoções, sentimentos; não esquecendo as relações interpessoais e o seu contexto social. Obviamente que esta definição é redutora e peca por ser limitada em termos de informação; contudo não é por negligência e atende apenas a um objectivo - evitar as (estéreis) divergências teóricas em torno da definição da „Terapia Gestalt‟, concentrando-se naquilo que é essencial:

1º- Unidade, como uma perspectiva integrada e holística do ser humano. Também Pearls (1981) critica os restantes métodos de psicoterapia por continuarem a actuar segundo princípios dualistas que separam corpo - mente como entidades separadas. Segundo Pearls a teoria de campo unificado “nos dá um instrumento para lidar com o

homem global. Agora podemos ver como suas acções mentais e físicas estão entrelaçadas.”. Pearls (1981) faz ainda críticas a todas as correntes da psicologia:

“dividiram a experiência em interior e exterior e então se defrontaram com a pergunta insolúvel de se o homem é regido por forças de fora ou de dentro. Este tipo de abordagem, esta necessidade de uma causalidade simples, esta omissão do campo total, estabelece problemas de situações que, na realidade são indivisíveis” (pp. 30-31).

2º- É um processo terapêutico essencialmente humanista e existencialista, no sentido do

respeito e responsabilidade pela própria existência e pelo outro. Por isso mesmo,

terapeutas e/ou formadores devem respeitar a experiência do aluno/utente, como a referência mais importante para a total compreensão dos seus comportamentos e problemas. Devendo sempre procurar seguir as premissas fundamentais do humanismo e do existencialismo: o respeito pelo ser humano em toda a sua singularidade; a ideia da defesa da liberdade, como algo inerente à condição humana e constitutiva da própria

existência; primado da responsabilidade, que significa a participação activa no processo terapêutico, na construção do próprio plano de inclusão e nos seu projecto de vida.

“A visão que a Gestalt tem a respeito do homem é de forma muito semelhante ao existencialismo, ou seja, como um ser particular, concreto, com vontade e liberdades pessoais, consciente e responsável. Considera também que a consciência é viva, livre, intencional e orientada para as coisas” (Ribeiro, W. 1988, p. 37).

3º- Relação. O método de abordagem é fundamentalmente o diálogo – a relação aberta e em condições de igualdade entre os dois sujeitos envolvidos. A condição básica deste método é ter sempre reunidos terapeuta/formador e aluno/utente em diálogo – a possibilidade de comunicar as suas perspectivas de forma o mais verdadeira possível é o meio para atingir o principal objectivo da terapia gestaltica – a awareness6.

“A Gestalt-terapia tem como objectivo tornar os clientes conscientes do que estão fazendo, como o fazem, como podem transformar-se e, ao mesmo tempo, aprenderem a aceitarem-se e a valorizarem-se. Para atingirem tais objectivos, a gestalt-terapia faz uso de procedimentos que ajudam o cliente a solucionar, da melhor forma possível, as questões concretas do seu quotidiano (sua dor, seu desespero, sua angustia, sua necessidade de escolher, de superar seus limites, etc.) mediante uma metodologia clínica que investiga, aprofunda e esclarece essa experiencia, de modo a torna-la plena de sentido para o cliente.

Essa abordagem apoia-se na metodologia do contacto e da awareness, fazendo uso de experimentos e do diálogo, como procedimentos. O terapeuta em acção

6 - O termo awareness apresenta um sentido mais amplo do que o „conceito de consciência‟. É a

usa diversos instrumentos, e os mais importantes na Gestalt-terapia são o corpo, a fala e a própria relação terapêutica” (Andrade, 2007, pp.11-12).

4º- Grupos. A proposta da Gestalt-terapia no âmbito da terapia de grupos é facilitar o contacto entre os intervenientes, promovendo o aprofundamento das relações sociais e sensibilizando para a importância de perspectivar a realidade a partir do presente – o aqui e agora – com o objectivo de atingir e amplificar a sua awareness. Isto é possível no seio do grupo devido à sua dinâmica própria, a troca e partilha de experiências, sentimentos e estados de espírito, entre outros

“O grupo é uma realidade maior e diferente da soma dos indivíduos que o compõe. Tem tudo o que eles têm e transforma esse conteúdo em um continente de imensas e vastas possibilidades. O grupo é um fenómeno cuja essência reside no seu poder de transformação, no seu poder de escutar, de sentir, de se posicionar, de se arriscar a compreender o processo de significação do viver e do responsabilizar-se.” (Ribeiro, J. 1994, p. 10).

A arteterapia desde cedo se assumiu como um dos mais importantes recursos técnicos da Gestalt-terapia; aliás foi logo no início dos anos 70 que Janie Rhyne denominou esta abordagem de “Experiencia Gestáltica de Arte”, mais tarde, no fim dos anos 80, designou definitivamente esta actividade como “Arteterapia Gestaltica”. Na única obra escrita desta autora – “Arte e Gestalt, padrões que convergem”. Rhyne (2000) faz uma exposição da sua abordagem dando especial relevo ao valor da individualidade de cada ser humano e ao potencial terapêutico da arte enquanto actividade expressiva não interpretativa, capaz de actuar como processo integrador do indivíduo na sociedade e, ainda, uma excelente forma de aprendizagem.

Ciornai (2004), define Arteterapia Gestaltica como “um modo de usar recursos artísticos em e como terapia, como uma compreensão do crescimento das pessoas e do trabalho terapêutico, fundamentada na Gestalt-terapia” (p. 15). Ciornai acredita e defende que o fazer arte, não só no seu processo de elaboração mas também através da reflexão desse processo e da obra concluída, tem um grande potencial terapêutico, ainda mais porque esta actividade está ligada à capacidade criativa das pessoas.

O processo de elaboração artística implica “funções de contacto” como: ver, ouvir, manipular os objectos, senti-los e, por isso mesmo, podem ser utilizados como métodos para promover no indivíduo um maior contacto consigo mesmo, com os outros e com o mundo em que habita. Ciornai faz também referência às dificuldades que as pessoas encontram em expressar verbalmente sensações e sentimentos menos claros e que “pode frequentemente ser facilitada por outras linguagens… em imagens, cores, movimentos ou sons.” (Ciornai, 2004, p. 71-72). É através do processo de elaboração, da acção, que a motivação e as emoções do indivíduo se exteriorizam; o “ligar” da criatividade, a mobilização sensório-motora, cognitiva e emocional promovem o awareness.

Não podíamos deixar de fazer uma referência ao papel do “arteterapeuta Gestáltico”, cuja abordagem, se distingue de outros com orientações teóricas diferentes. Este, ao contrário por exemplo dos arte terapeutas de orientação psicanalítica, não procuram interpretar os trabalhos dos utentes; antes e seguindo os princípios de qualquer abordagem fenomenológica-existencialista, crêem que o indivíduo é o principal agente da sua própria mudança, do seu crescimento enquanto pessoa e que os trabalhos que produz encerram sentidos e significados relevantes e únicos. Para tal, os arte terapeutas podem utilizar técnicas e materiais diversos como a pintura, desenho, fotografia, modelagem em barro, mas também o teatro, a dança, expressão corporal, etc..

Esta relação estreita da gestalt terapia com a arte tem origem na formação e experiência dos seus fundadores. Frederick Perls, esteve ligado ao mundo do teatro, pintava e tinha afinidade com diversas formas de expressão artística, até porque privava com muitos artistas da sua época com quem partilhava e debatia assuntos relacionados. A sua esposa, Laura Perls, foi dançarina (entre outras coisas) e Paul Goodman escrevia prosa e poesia. A „criatividade‟ é outra dimensão sempre em perspectiva na gestalt terapia; a concepção existencialista do ser humano encara o indivíduo como um processo em permanente construção, capaz de se refazer a si próprio, de poder optar livremente e transformar-se criativamente.

As premissas existencialistas defendem que a pessoa tem o poder de escolher o seu próprio destino, tal como Sartre afirmava:

“…não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Se, por outro lado, Deus não existe, nós não encontramos perante nós valores ou ordens que legitimem a nossa conduta. Assim, não temos nem atrás nem perante nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Nós estamos sós, sem desculpas. È isso que eu experimento quando digo que o homem está condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si próprio, e por outro lado, livre, porque, uma vez lançado no mundo, é responsável por tudo aquilo que faz.” (Sartre como citado em Santos & Lima, 1981, p. 490).

Como tal é responsável por si, pelos outros, por tudo o que o rodeia, incluindo o seu passado, presente e futuro. Não queremos com isto parecer ignorar todos os condicionalismos da pessoa; esta não existe isoladamente no mundo, esta existe em situação e como tal está condicionada por mecanismos físicos, biológicos e sociais. A sua liberdade está sempre em risco, seja pela doença, pelo desemprego, pelos “outros” com quem estabelece relações, todos estes factores são condicionantes da liberdade do indivíduo.

Frankl (1905-1997), médico e psiquiatra austríaco, fundador da Logoterapia, também ele um existencialista; sobrevivente da II guerra mundial e dos campos de concentração nazis, afirma, peremptoriamente, que mesmo sob a extrema violência e desumanidade dos campos de concentração, onde a morte era uma realidade mais do que provável (mais do que a própria vida), era possível ao Homem optar, posicionar-se perante aquelas circunstâncias de forma consciente. Acrescenta ainda, que quanto maior for o

awareness da situação, mais capacidade a pessoa teria para resistir, sobreviver ou, pelo

menos, de dar algum sentido àquela existência.

A Gestalterapia, enquanto método, não encerra em si uma forma estritamente definida de actuação. Aliás, caracteriza-se precisamente por permitir ao terapeuta uma grande liberdade para desempenhar as suas tarefas, de forma criativa e até recorrendo a experiências de outras “escolas”, não perdendo, contudo, de vista os princípios basilares que caracterizam a abordagem Gestaltica, os seus objectivos enquanto processo terapêutico e as noções de distúrbios de contacto, percepção e awareness.

É verdade que ainda hoje muitas das técnicas utilizadas por Fritz Perls continuam a ser aplicadas e com o mesmo sucesso inicial; contudo, o terapeuta gestaltico não tem, nem sequer deve, limitar-se às mesmas. O contacto e a awareness podem ser trabalhados das mais diversas formas e recorrendo a múltiplas fontes, como os sonhos que possuem um manancial importante de informação acerca do indivíduo e que não é um método exclusivo da psicanálise; actividades criativas e expressivas como a pintura, o desenho, o teatro, a dança, ou mesmo através de técnicas de relaxamento e expressão corporal, meditação, etc.. O que caracteriza de facto a terapia gestaltica não são as técnicas que utiliza mas sim a sua visão dos processos humanos e, por isso mesmo, pela postura assumida pelos terapeutas na relação com as pessoas que os procuram. É, aliás, este o grande instrumento terapêutico – a relação, e é através dele que o terapeuta procura assistir o indivíduo a restaurar a confiança perdida em si mesmo, nos outros e no mundo.

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