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4 A MULTIMODALIDADE EM CENAS DE ATENÇÃO CONJUNTA PARA A

4.3 O gesto dirigido à criança surda nas interações via ferramentas virtuais

Os gestos são elementos que carregam significação nas trocas linguísticas, assim, no caso do sujeito surdo, estudos apontam que as discussões acerca da utilização dos gestos nas interações tornam a questão um pouco mais complexa, em virtude de a língua de sinais ainda não ser uma língua utilizada pela maioria dos ouvintes para a interação com o sujeito surdo, desse modo, a utilização dos gestos torna-se um recurso favorável para que a interação aconteça.

Nesse sentido, com o propósito de estabelecer trocas com os ouvintes, principalmente, no ambiente familiar, os parceiros interativos constroem um sistema de trocas particular, denominado de sinais domésticos/caseiros, ou ainda, conceituado como simbolismo esotérico, por alguns estudiosos como Tervoort (1961); Mayberry (1992); Morford (1996), tendo em vista que se referem a representações de forma aleatória dos objetos que os cercam, porém, essas representações dependem da partilha existente entre os parceiros. Deve-se frisar que, nessa tese, utilizaremos o termo sinal caseiro para nos referirmos aos sinais instituídos e partilhados pelos surdos e seus familiares em situações cotidianas.

De acordo com Goldin-Meadow (1979), o evento de instituir sinais caseiros pelos surdos e seus familiares ocorre pelo fato de o ser humano ser municiado de criatividade para a realização da linguagem mesmo diante de materialidades linguísticas distintas. Desse modo, explica-se a compreensão estabelecida entre o surdo e o ouvinte durante uma troca interativa sem a língua de sinais ou a língua oral e através da utilização de gestos, apresentando, em sua estrutura, uma função emergencial. Ressaltamos que, durante as nossas observações em sala de aula remota, ocorridas via ferramentas virtuais, pudemos contemplar, por diversas vezes, algumas tentativas da professora da sala regular, que não possui o domínio da Libras, e até mesmo dos intérpretes de interagir com a criança surda através de gestos, na tentativa de realizar e/ou manter a interação. Frisamos, ainda, que os gestos utilizados na situação referenciada dizem respeito aos gestos que circulam em nosso dia a dia, conforme explicitado na figura abaixo:

Figura 07 – Tentativa de comunicação da professora com a criança surda

Fonte: Dados da pesquisa (2021).

O bloco de cenas expostas na figura 07, refere-se a uma tentativa de interação entre a professora da sala regular e a criança A.N. por meio de gestos. A aula ocorreu no dia 08 de junho de 2021 e tinha como objetivo trabalhar o conteúdo da disciplina de matemática

“sistema monetário brasileiro” através da resolução de problemas. No caso descrito nas imagens, a professora tenta pedir para a criança pegar uma moeda como forma de consolidar a sua aula. Nesse momento, faz o gesto circular com os dedos polegar e indicador, mas a criança não compreende a solicitação da professora. A professora tenta oralizar lentamente esperando que a criança faça a leitura labial, porém, a criança não possui histórico da realização desse tipo de leitura.

Desse modo, podemos perceber que a tentativa de interação da professora com a referida aluna surda não obteve sucesso, em virtude de não haver, entre elas, uma partilha para que as representações fossem estabelecidas. Assim, percebemos que o conceito de gesto caseiro se torna insuficiente para dar conta da situação descrita.

Na sequência, a cena foi concluída quando a professora apresentou nos slides da aula uma moeda de R$ 0,50 (cinquenta centavos) e fez novamente o gesto circular com os dedos, apontando para a criança com o dedo indicador. Nesse momento, a criança compreende a solicitação da professora e, com a intervenção do intérprete de Libras e da mãe que acompanham a cena, levanta-se da sua cadeira e retira-se do nosso campo de visão (tela do celular) em busca do solicitado, retornando instantes depois com a moeda na mão e nos apresentando, conforme exposto na figura 08 abaixo. Assim, a cena foi encerrada com a professora que a parabeniza utilizando a língua de sinais.

Figura 08 – Observação e compreensão da cena descrita por parte da criança A

Fonte: Dados da pesquisa (2021).

Segundo Adriano (2010, p. 34),

Os sinais caseiros emergem entre familiares de pessoas surdas e são convencionados entre eles (pais ouvintes e filhos surdos). Esses sinais apresentam um caráter emergencial, no sentido de que surgem em um estado de crise comunicativa em um contexto familiar em que pais ouvintes não conhecem a língua de sinais, nem a criança surda tem conhecimento da língua oral (nesse contexto, o português) de seus pais.

De acordo com o conceito exposto acima, e conforme explicitado anteriormente, a definição para gesto caseiro não se aplica entre parceiros que não possuem um convívio familiar, desse modo, considerando as necessidades da criança A.N., que não domina a língua de sinais e a professora que se utiliza da língua oral, surge um momento de crise nas interações e é, nesse contexto, que emergem gestos com a finalidade de dar conta da interação, de modo que a troca se estabeleça.

Para esse gesto, que emerge entre esses dois sistemas linguísticos distintos e circulam nessas duas culturas, conceituamos como “Gestos Híbridos”, uma vez que são gestos criados ou convencionalizados que interligam essas duas línguas. De acordo com o dicionário Oxford Languages, a definição de híbrido relacionado à linguística, e é explicitado da seguinte forma

“[...] diz-se de ou palavra formada por elementos tomados de línguas diferentes [...]”, assim, o referido conceito abarca, de forma profícua, o material que pretendemos a partir desse construto.

Os sinais que surgem nessa situação são restritos em seu repertório vocabular e podem comunicar fatos somente no momento de sua ocorrência, tornando difícil relatar acontecimentos passados e/ou assuntos que envolvam níveis de abstração (ADRIANO, 2010, p. 34).

Numa situação como a descrita, as informações essenciais para a construção do arsenal cultural e da formação da identidade do surdo são fragmentados, como destaca

Vygotsky (1989, p. 108), “[...] a linguagem possui além da função comunicativa, a função de constituir o pensamento [...]”, nesse sentido, tomando por base a referida perspectiva, podemos compreender que os problemas linguísticos vivenciados pelos sujeitos surdos são provenientes do ambiente social em que vivem que não proporciona, na maioria das vezes, um ambiente linguístico adequado à sua condição de surdo.

Ressaltamos que a interação entre a criança A e a professora da sala regular, durante as aulas, era mediada pelo intérprete de Libras, no entanto, a professora sempre realizava tentativa de trocas de forma independente.

Por fim, outro ponto relevante a ser citado é a utilização do gesto de apontar nos contextos de trocas entre surdos e ouvintes não fluentes da língua de sinais, como forma de se fazerem compreendidos nas interações. O gesto de apontar é um gesto emblemático que se apresenta como elemento dêitico relevante no que diz respeito à referência linguística, o qual abordaremos de forma mais detalhada no tópico a seguir.