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O Globo foi um dos primeiros jornais de alcance nacional a noticiar o caso do estupro coletivo de Castelo do Piauí. No dia 28 de maio de 2015, às 8h36, algumas horas após o registro da situação, a primeira matéria sobre o episódio já estava publicada no site do jornal. Apesar disso, a cobertura foi bem menos extensa do que a da Folha, resumindo-se aos acontecimentos mais significativos da história, como a morte de Danielly Rodrigues e de Gleisom Vieira da Silva ou a condenação dos envolvidos.

Do material publicado no veículo, foram analisadas oito notícias – a primeira de maio de 2015, conforme já mencionado, e a última de 25 de setembro de 2018 – publicadas na editoria Brasil. Assim como no caso da Folha de S. Paulo, foram excluídas da análise as matérias que abordavam as consequências da morte do adolescente Gleisom, que derivaram da cobertura original.

Considera-se que toda a cobertura feita pelo jornal O Globo é original, ou seja, que todo o material produzido foi apurado e escrito por profissionais contratados pelo veículo ou que prestaram serviço para ele neste período. Convém explicar, porém, que a maioria dos texto – cinco deles – é assinada por um jornalista chamado Efrém Ribeiro, que atua no estado do Piauí, em Teresina, e é um dos blogueiros do portal Meio Norte, cuja cobertura também compõe o corpus da pesquisa. Apesar de ter publicado posts em seu blog sobre o episódio, Ribeiro produziu materiais diferentes para O Globo. Assim, os textos veiculados no jornal carioca não foram meras reproduções do que já havia saído na imprensa piauiense.

Além de Ribeiro, assina uma notícia a jornalista Renata Mariz, que escreve de Brasília. Outros dois textos não indicam quem foi o jornalista responsável por eles – embora deixem claro, por meio da assinatura “O Globo”, que foram produzidas por algum membro da redação do veículo. Assim, tem-se que a cobertura foi feita majoritariamente por homens. Além disso, a maior parte dos textos foi produzido em Teresina, nas proximidades do local onde o estupro coletivo em questão foi registrado. Os dois sem assinatura foram escritos no Rio e o assinado por Mariz, na capital federal. Em uma escala menor do que no caso da Folha, tanto pela extensão

da cobertura quanto por não ter deslocado equipes para o Piauí, é possível notar, a partir dessas informações, um esforço do veículo carioca para cobrir o episódio “localmente”.

A observação das variáveis mostra que, no que diz respeito à definição do problema, 100% dos textos publicados pelo jornal tratam o estupro como caso isolado, discorrendo exclusivamente sobre o episódio registrado em Castelo do Piauí, ou seja, sem fazer qualquer referência a outros casos ou ao atual panorama da violência – sexual ou não – contra a mulher no país. Também não aparecem informações que possam ser úteis a vítimas ou dados sobre políticas públicas – implantadas ou em prospecção – de combate a violências como essa. Mais uma vez, a abordagem episódica é a privilegiada, como se percebe no caso da Folha, mas também como apontado por Andi e o Instituto Patrícia Galvão (2011), Prado e Sanematsu (2017) e Santoro (2007). Assim, os indícios são que ainda não há um esforço por parte dos jornais para colocar esta situação única em um contexto amplo, dando uma dimensão mais real do problema para os leitores e possibilitaria a compreensão do estupro como um problema inerente à esta ordem social.

A análise da variável tópico reitera o que a abrangência já indicou: que as notícias mantiveram o foco no episódio em si e que não houve uma tentativa de usar a situação como gancho para desenvolver discussões mais aprofundadas sobre violência sexual. Tanto que, conforme evidencia o GRÁFICO 7, não há textos categorizados como “panorama da violência contra a mulher” e “acolhimento e recuperação”. Foram identificados textos que tratam do próprio caso (12,5%), de desdobramentos do episódio (62,5%), de repercussão e de detalhes da investigação e do processo judicial (12,5%). O código “enfrentamento ao crime” não aparece.

FONTE: A autora (2020).

O mesmo pode ser dito da variável fontes. Como se pode observar no GRÁFICO 8, os atores que têm voz na cobertura são, principalmente, aqueles que se relacionam diretamente com o episódio (agressores, familiares e amigos das vítimas, acusação, profissionais da saúde que atenderam as vítimas ou seus familiares e amigos, além de moradores de Castelo do Piauí).

GRÁFICO 8 – O GLOBO: DEFINIÇÃO DO PROBLEMA - FONTES

Aqui é interessante destacar que, assim como na cobertura da Folha de S. Paulo, há um esforço para não contar a história exclusivamente a partir da narrativa das forças policiais sobre ela. Contudo, é importante notar que atores especialistas em questões de gênero não aparecem na cobertura, nem mesmo aqueles ligados à polícia ou representantes da prefeitura ou do governo do estado do Piauí.

No âmbito da causa, a análise mostra que um total de sete textos – o que representa 87,5% das unidades analisadas, conforme mostra o GRÁFICO 9 – não trouxe qualquer explicação ou motivação para o estupro.

Assim como no caso da Folha, essa ausência indica que o tratamento dado ao tema é predominantemente superficial. Destaca-se, porém, que a única situação em que uma causa aparece é uma que coloca o estupro como resultado da alteração dos sentidos dos agressores. No texto intitulado “Quatro adolescentes são estupradas e espancadas no interior do Piauí” (RIBEIRO, 2015), o repórter utiliza a seguinte fala do delegado responsável pelo caso: “A motivação foi o uso de drogas, eles estavam bastante alucinados, viram as meninas no local e não perderam tempo”.

A colocação do delegado permite que se interprete que, caso os cinco agressores não tivessem usado drogas e estivessem em pleno domínio de suas capacidades mentais, o crime não teria acontecido. Assim, ela faz com que o episódio seja compreendido ou como um ato isolado decorrente de “decisões questionáveis” (usar drogas) ou como consequência de outro problema estrutural da sociedade, que é o vício em substâncias entorpecentes. Há, portanto, o distanciamento entre o estupro e a relação desigual entre homens e mulheres.

FONTE: A autora (2020).

Análise da variável julgamento moral mostra que apenas 25% das notícias publicadas pelo jornal O Globo não contém juízos pertinentes para esta pesquisa, conforme se vê no GRÁFICO 10. Nos 75% restantes foram encontrados quatro tipos de julgamentos. O mais frequente, presente em 62,5% dos textos, contribui para a construção da imagem dos agressores como “homens do mal” ou “monstros”.

Aqui vale destacar que Adão José de Souza é apresentado, mais de uma vez, como “assaltante Adão”. Embora haja uma menção ao fato de ele ter passagens anteriores pela polícia, não há informações sobre condenações, o que faz com que os jornais, principalmente os que adotam um estilo menos popular, evitem esse tipo de referência para evitar prejulgamentos e preservar a imagem dos personagens – e também, como aponta Tuchman (1978), evitar processos judiciais. A Folha, por exemplo, usa “o desempregado Adão José de Souza” no texto “Meninas do Piauí: Solução de estupro depende de provas” (COLLUCCI, 2015b).

No que diz respeito às vítimas, a cobertura traz tanto juízos negativos – código “comportamento duvidoso”, presente em 25% dos textos – quanto positivos – código “mulheres de respeito”, presente em 12,5% das notícias. Os primeiros estão, assim como no caso da Folha de S. Paulo, relacionados à presença das vítimas no local do crime, reproduzindo a ideia machista de que elas não têm o mesmo direito de estar em lugares públicos do que homens e, consequentemente, colocando sobre elas parte da responsabilidade pela situação, como se evitar determinados locais fosse o suficiente para prevenir ser vítima de uma violência. Já os segundos

reproduzem ideias sobre como uma mulher deve ser e se comportar no regime patriarcal. Ambas as situações evidenciam como o jornalismo pode reproduzir ideias e conceitos presentes na sociedade na qual está inserido, contribuindo para a manutenção da ordem social vigente (TUCHMAN, 1978).

Foi detectado ainda, em 25% dos textos, o julgamento que se refere ao episódio como um “caso bárbaro”. Conforme mencionado no caso da Folha de S. Paulo, ele contribui para a descontextualização do episódio de um cenário amplo de violência contra a mulher – a ponto de fazê-lo parecer um símbolo de crueldade.

GRÁFICO 10 – O GLOBO: JULGAMENTO MORAL

FONTE: A autora (2020).

A observação da variável solução também aponta para uma cobertura superficial e não relacionada às questões de gênero – apesar de o problema ser, conforme observado no capítulo 2, um que deriva dominação dos homens sobre as mulheres. Isso porque, como se vê no GRÁFICO 11, 75% dos textos não trouxeram qualquer sugestão de solução para o estupro, enquanto os outros 25% recomendaram exclusivamente a responsabilização dos agressores como tratamento para o problema.

FONTE: A autora (2020).

Vale destacar que, quando se fala de um episódio específico de estupro, a penalização dos acusados é, sim, parte importante do processo de solução do problema (PRADO; SANEMATSU, 2017), já que não só faz com que quem cometeu o crime “pague” pelo que fez, dando às vítimas e à sociedade uma sensação de que “a justiça foi feita”, mas também ajuda a inibir a repetição ou a imitação do crime. Contudo, quando ela é apresentada como única solução, fica evidente que o problema é entendido exclusivamente como ato isolado e que não há reflexão sobre como evitar que ele continue ocorrendo.