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O estupro coletivo de Castelo do Piauí foi o motivo de uma série de publicações nas editorias e blogs do Meio Norte – inclusive no blog de Efrém Ribeiro, que participou da cobertura do jornal O Globo. Contudo, para esta pesquisa, foram considerados apenas os textos publicados nas editorias noticiosas do portal. Com isso e com a exclusão das notícias sobre os desdobramentos do homicídio de Gleisom Vieira da Silva, foram analisados 19 textos no total.

As matérias analisadas foram publicadas entre 29 de maio de 2015 e 23 de setembro de 2018. Elas saíram nas editorias de Notícias (9 textos), Polícia (7) e Política (3). Aqui, como no caso do jornal O Dia, não ficam tão evidentes os critérios para distribuir as notícias nas diferentes editorias – exceto pelas notícias classificadas como políticas, que citam ações de políticos ou discussões no legislativo piauiense.

Ao contrário do caso dos outros veículos analisados, o Meio Norte não permite a identificação dos autores dos textos ou do local onde eles foram produzidos, pois as notícias não são acompanhadas de assinatura. Assim, assume- se que todos os textos publicados foram produzidos pela equipe do jornal na redação, em Teresina.

Contudo, é interessante notar outras peculiaridades da cobertura. Uma delas é que, nas editorias noticiosas, não há um texto que apresente o estupro coletivo ao leitor, pois isso foi feito no blog de Efrém Ribeiro, em uma publicação que foi atualizada como um “tempo real” durante um período de quase 24 horas. Assim, a primeira notícia que se considera para esta análise é uma que trata de uma provável consequência do crime, a ampliação do Fundo de Segurança do estado. Outra é que há pelo menos três textos escritos a partir de notícias publicadas em outros veículos ou entrevistas dadas por pessoas envolvidas no caso a programas de TV.

Partindo para a análise, assim como verificado no caso dos outros jornais que compõem o corpus, os dados relativos à variável abrangência indicam que o Meio Norte publicou mais notícias que tratavam do estupro como caso isolado, em vez de adotar uma perspectiva que evidenciasse o caráter que ele tem de violência

institucionalizada. Os números são: 84,21% x 15,79%, conforme se vê no GRÁFICO 18. Assim, é possível dizer que o jornal segue a tendência de apresentar o tema como isolado ou episódico, e de não fornecer informações que contextualizem um caso específico dentro de todo o cenário de violência sexual contra mulheres. Ao mesmo tempo, é importante notar que o veículo tem o mais alto índice de matérias tratam o estupro como uma violência inerente à ordem social em que vivemos.

GRÁFICO 18 – MEIO NORTE: DEFINIÇÃO DO PROBLEMA - ABRANGÊNCIA

FONTE: A autora (2020).

A análise da variável tópico indica algo semelhante (GRÁFICO 19). O código “desdobramentos”, que está diretamente relacionado ao caso estudado, é o que mais aparece: 52,63% dos textos analisados foram classificados dessa forma. Somada à incidência dos códigos “episódio e envolvidos” e “investigação e processo judicial”, que também identificam textos que tratam de aspectos específicos do caso, o número chega a 78,95%. Também é interessante notar que há notícias (10,53%) que, apesar de reconhecerem um cenário de violência no país, acabam relacionando o estupro a violências que não são consideradas “de gênero”, tratando todas como se fossem as mesmas e demandassem o mesmo tipo de medida para seu combate ou sua solução. Ainda assim, pode-se dizer que há uma abertura, mesmo que pequena, para uma discussão mais temática – e até mais aprofundada – sobre o estupro, já que 10,53% das notícias tratam do “panorama da violência contra a mulher”.

GRÁFICO 19 – MEIO NORTE: DEFINIÇÃO DO PROBLEMA - TÓPICO

FONTE: A autora (2020).

As vozes que mais ganharam espaço na cobertura, conforme a observação da variável fontes, foram as dos representantes dos poderes “executivo e legislativo municipal ou estadual” e “outros veículos”, que apareceram em 26,32% dos textos. Os dados estão no GRÁFICO 20. Aqui é interessante notar dois pontos: o primeiro é que, pela primeira vez, são ouvidas – e mencionadas em 5,26% das notícias – fontes ligadas aos poderes políticos locais que desenvolvem trabalhos relacionados aos direitos e à saúde das mulheres – no entanto, como o índice mostra, não são essas as fontes do executivo/legislativo que mais aparecem; o segundo é o peso que outros veículos têm nessa cobertura, já que o Meio Norte opta por, em vez de produzir apenas pautas originais, relatar o que foi publicado em outros jornais ou dito por algumas fontes a programas de televisão.

Vale destacar ainda que o jornal segue a tendência de recorrer mais às fontes diretamente relacionadas ao caso, o que, conforme já dito nas análises anteriores, caracteriza uma cobertura que não discute o estupro para além do episódio em questão e é, portanto, mais superficial. Um exemplo são os familiares e amigos das vítimas, ouvidos em 21,05% das reportagens. Por outro lado, contrariando o que detectaram Prado e Sanematsu (2017), não são representantes da polícia que mais têm espaço nas notícias e há também algum espaço para atores

ligados a organizações que promovem a igualdade de gênero. Assim como se verifica nas variáveis analisadas anteriormente, há na cobertura uma pequena brecha para a associação do tema violência sexual a discussões sobre gênero.

GRÁFICO 20 – MEIO NORTE: DEFINIÇÃO DO PROBLEMA - FONTES

FONTE: A autora (2020).

No âmbito da causa, não há qualquer aproximação entre o tema da cobertura e o entendimento de Saffioti (2015) e Blay (2014) de que a violência é base do patriarcado. Isso fica evidente quando observamos os números, apresentados no GRÁFICO 21: 89,47% dos textos não traz qualquer menção a motivos que podem levar à ocorrência de estupros, nos 10,53% restantes a razão apresentada é a “falha da polícia ou da Justiça”. É importante apontar que esta explicação não só não estabelece uma ponte entre a própria ordem social e esse tipo de violência, como também nem reconhece que haja um problema com a forma como a sociedade se estrutura. Além disso, ela responsabiliza terceiros, contribuindo para a naturalização da ideia do homem violento e até incontrolável.

FONTE: A autora (2020).

A partir da observação da variável julgamento moral é possível perceber que, assim como no caso do jornal O Dia, o Meio Norte tem um alto índice de notícias que não trazem qualquer julgamento moral pertinente à pesquisa: 42,11%, conforme se vê no GRÁFICO 22. Nota-se, ainda, que o segundo código mais recorrente é “caso bárbaro”, que distancia o episódio do contexto de violências contra a mulher – apesar de julgamentos do tipo “cenário assustador” terem sido identificados em duas unidades de análise, o que denota algum entendimento de que a situação registrada em Castelo é apenas mais uma entre tantas registradas no país.

Foram identificados também juízos que contribuem para que as vítimas sejam vistas como mulheres que correspondem aos papeis de gênero estabelecidos no patriarcado e, portanto, não mereciam sofrer violências; e os que constroem a imagem dos agressores como monstros ou homens “do mal”, que contribuem para que estupradores sejam percebidos como “exceções à regra”.

FONTE: A autora (2020).

No que diz respeito à solução, o código mais frequente é “ausente” (78,95%), como mostra o GRÁFICO 23. Assim como no caso da variável causa, isso indica que a violência sexual contra a mulher é discutida a partir de uma perspectiva que não considera as desigualdades de gênero e sem um esforço para aprofundar o tema. Isso acaba ficando mais evidente quando se observa os outros códigos encontrados, listados aqui em ordem de incidência: “leis e penas mais duras”, “responsabilização dos agressores” e “combate à violência”.

O primeiro aparece na fala de duas fontes (o promotor responsável pelo caso e um representante da OAB, ambos do sexo masculino) e revela um entendimento de que a decisão de uma pessoa sobre cometer ou não um crime está quase que exclusivamente relacionada à punição que ela vai receber – o que é contestável. Como já visto, embora as punições sirvam como inibidor de crimes, eles continuam acontecendo apesar delas.

O segundo, como já mencionado, é um passo importante na solução de crimes consumados, como o estupro coletivo de Castelo de Piauí. Porém, isoladamente, segue a linha do endurecimentos de leis e penas e também não acarreta em uma solução de fato. Já “combate à violência” se relaciona à sugestão de criação de um fundo para realizar ações de combate à violência e, embora denote que a violência é uma problema estrutural que demanda uma série de ações para ser prevenido, não menciona a relação do estupro com o regime patriarcal.

GRÁFICO 23 – MEIO NORTE: SOLUÇÃO

FONTE: A autora (2020).