• Nenhum resultado encontrado

PARTE 2 NO ENTREMEIO CONTRADITÓRIO EM QUE SE PRODUZ A FUNÇÃO-

2.3 ROCHA LIMA: UM GRAMÁTICO NO SEU TEMPO

2.3.1 GNLP: suas condições de produção

Com o objetivo de compreender as condições de produção da GNLP, elegemos a década de 50, do século XX, como ponto de partida, ponderando que a primeira edição da GNLP foi publicada em 1957, portanto, anos finais da primeira metade do século XX. Na sequência, trataremos da década de 70 e, em última

24 De acordo com Henriques (2011), isso foi comprovado com os dados colhidos na pesquisa

intitulada “Cânon gramatical brasileiro contemporâneo”, desenvolvida junto ao Departamento de Língua Portuguesa do Instituto de Letras da UERJ na última década do século passado.

instância, da década de 90. A escolha de cada um desses tempos não se deu de maneira aleatória, cada um significa e produz sentidos para este estudo. Essa revisão bibliográfica que trazemos, com a posição de diferentes autores, justifica-se aqui por estar ligada ao nosso objeto de estudo, pelo fato de produzirmos um breve conjunto de fatos que nos permite pensar a produção do conhecimento sobre a língua.

Em se tratando das condições de produção, traçamos um percurso que mobilizasse estudos que tratavam da produção do conhecimento, nos períodos já mencionados, e encontramos em Guimarães (1996) a organização de um conjunto de fatos, dispostos em períodos25 que permitem uma abordagem histórica dos estudos sobre o Português do Brasil, a partir do final do século XIX. Desse conjunto de fatos, interessam-nos o terceiro e quarto período. O terceiro período é datado partindo da década de 1940, iniciado, segundo Guimarães (1996), pela fundação das Faculdades de Letras, tomadas como espaços de pesquisas sobre questões de linguagem, estreitamente ligados a questões de um padrão literário e ao ensino. Destacam-se, também, o estabelecimento de um acordo ortográfico do Português do Brasil, com diferenças relativas ao Português de Portugal; o debate sobre que nome dar à língua falada no Brasil; a publicação de Princípios de Linguística Geral de Mattoso Câmara, mostrando sua formação que inclui influência de Saussure; e a elaboração da NGB. Incluímos nesse período a publicação da primeira edição da GNLP (1957) e a edição pós-NGB (1959). Já para o quarto período, o autor destaca o fato de a Linguística passar a fazer parte do currículo mínimo dos cursos de Letras a partir de 1965, assim como a criação de cursos de pós-graduação em nessa área. A esse período, podemos inserir a publicação da 15ª edição da GNLP (1972), predicada como “refundida” nas palavras do sujeito-gramático e a 31ª edição (1991) “retocada e enriquecida”.

Dias (2010) aponta que a GNLP, bem como outras gramáticas produzidas na época, participou de um momento importante no quadro histórico de produção de gramáticas no Brasil, pois se corporificou nela o rompimento com uma perspectiva de abordagem da língua do tipo avaliativa. Assim, nas décadas de 50 e 60 do século XX, o gramático apresenta a língua como capaz de indicar, tanto as ocorrências legitimadas pelos usos gerais, quanto as ocorrências legitimadas pelos usos

específicos (próprios da língua padrão). O autor compreende que esse era o momento de sair do empirismo para se construir uma gramática moderna e isso significava construir uma evidência para as ocorrências usuais da língua portuguesa no Brasil. Já sair do empirismo significava rejeitar os modos de conceber fatos linguísticos pela singularidade dos olhares do gramático. A busca por um padrão de texto gramatical que pudesse levar os leitores a vislumbrar uma organicidade linguística também foi decisiva para a renovação das gramáticas.

Abordar a produção do conhecimento, numa relação entre o linguístico e o gramatical, impulsiona-nos a refletir, inicialmente, na gramática enquanto lugar de representação e construção de uma unidade de língua, conforme Dias (2007). Nesse sentido, a elaboração de uma gramática é afetada, duplamente, por uma projeção de completude. De um lado, a gramática é afetada por uma ideia de unidade de língua historicamente projetada, aglutinada no imaginário social e determinada pelas coerções de ordem histórica. De outro lado, a gramática é afetada pela convergência de uma tecnologia intelectual26, que objetiva configurar uma harmonia entre as suas partes, pois este instrumento linguístico é produzido sob uma perspectiva de ordem teórica e metodológica que orienta as relações, por exemplo, entre conceito/regra. O autor explica que no Brasil há três perspectivas que presidem essa convergência para a completude, a saber, a perspectiva clássica: representada na ordem do agenciamento de um saber sobre a realidade; perspectiva estruturalista: representada na ordem do agenciamento de traços de uma configuração orgânica da língua; perspectiva funcionalista: representada na ordem do agenciamento de usos configurados a partir de um corpus. Em relação ao nosso objeto, diante das três perspectivas que convergem para a completude, entendemos que temos em mãos um instrumento linguístico que carrega marcas de uma perspectiva estruturalista.

Partindo de uma leitura de Fávero (2006), entendemos que a GNLP foi uma das obras da fase de transição nos estudos linguísticos brasileiros, o momento de instauração do período científico, pois “Na época, o mundo intelectual era influenciado por inúmeras correntes científico-filosóficas, vindas principalmente da Europa”. (p. 27) e nossos gramáticos, no contato com essas teorias, tomavam a iniciativa de rever seus conceitos e pareceres a respeito da língua.

Para também tratar dessa questão, trazemos à baila a tese desenvolvida por Graziela Lucci de Angelo (2005), intitulada Revisitando o ensino tradicional de língua

portuguesa, na qual investigou que outros sentidos poderiam estar vinculados ao

ensino tradicional de Língua Portuguesa, além da imagem construída pelo saber acadêmico27. Recortamos a fala de uma das professoras entrevistadas, com vistas a observar como os professores são afetados pela profusão de saberes produzidos nesse período científico:

Figura 7 – Recorte entrevista

Fonte: De Angelo (2005, p. 223).

Entendemos que o estudo desenvolvido por De Angelo (2005) vem corroborar com a discussão que empreendemos, em relação ao objeto de estudo desta tese, mostrando como as professoras de Língua Portuguesa da época viveram, e ainda vivem, a contradição de estar entre o tradicional, a gramática normativa, e o novo que a Linguística trazia e, assim, podemos dizer que não se tratava de uma relação entre gramática normativa e Linguística, mas, sim, de uma fragmentação e descontinuidade na inclusão dos saberes advindos da ciência da linguagem em instrumentos linguísticos. De acordo com De Angelo (2005, p. 61),

Se, de um lado, a influência do discurso da Lingüística junto aos professores foi grande, de outro lado, essa recepção, nos anos 70 e 80, não se deu sem conflitos, sem embates com as concepções e práticas então vigentes nesse ensino, que se desenvolvia mergulhado no paradigma tradicional de ensino de Língua Portuguesa.

27 Conforme De Angelo (2005, vi), “Para subsidiar a discussão, foram analisadas sete entrevistas

realizadas com professoras de Língua Portuguesa, hoje aposentadas, que trabalharam na cidade de Campinas (SP), para compor uma imagem do ensino tradicional a partir de uma outra posição enunciativa” e “as entrevistadas passaram a maior parte de sua vida profissional nas décadas de 50 e 60, vindo a se aposentar no início dos anos 70, exceção feita a uma delas que se aposentou no começo dos anos 80. As mais novas iniciaram seu trabalho por volta da metade dos anos 60, concentraram a maior parte de sua vida profissional nos anos 70 e 80, aposentando-se por volta dos anos 90.” (2005, p. 53).

Como tomar uma posição-sujeito? Compreendemos que a Linguística, enquanto ciência, instaura a perturbação e remete para a contradição em um primeiro momento, passando para a tomada de posição-sujeito, que em nosso entendimento trata-se de uma posição-sujeito de entremeio em um segundo momento, quando as diferenças se acomodam.

Em relação à produção do conhecimento nos anos 70 do século XX, Orlandi (2009) destaca que no Rio de Janeiro, os trabalhos em linguística tomam a linha funcionalista, desde Mattoso, passando pela sociolinguística, com atenção à semântica estrutural de Pottier e os desenvolvimentos da sintaxe estrutural. Em São Paulo, toma corpo a linguística descritiva funcionalista, influenciada por Coseriu, Jakobson e Martinet, além de contar com desenvolvimentos do formalismo estruturalista. Em Belo Horizonte, a produção é marcada pelo funcionalismo no estruturalismo e pelo desenvolvimento da gramática gerativa. “Tudo isso nos leva a concluir que há, no Brasil no século XX, um domínio do funcionalismo nos estudos estruturalistas, com alguma produção que se inscreve no formalismo”. (ORLANDI, 2009, p. 146). É desse modo que a autora assevera que não podemos olhar a produção linguística brasileira de maneira homogênea, nem organizar essa produção por autores, instituições ou publicações. Do mesmo modo que autores diferentes pertencem a tendências diferentes, um mesmo autor pode ter sua produção dividida entre formalismo e funcionalismo. Além disso, há autores que apresentam em suas produções marcas da linguística tradicional, estrutural, gerativa, entre outras.

Conforme estudos desenvolvidos por Altman (2004), nos anos 70 a proposição de uma nova abordagem gramatical para o português apresentou-se como problema dominante no quadro da Linguística. Muitas discussões giravam acerca da elaboração de uma nova gramática, uma argumentação essencialmente técnica associada à retórica de franca ruptura com a chamada gramática tradicional, tanto em sua dimensão descritiva quanto pedagógica. No que se refere aos anos 80 a produção brasileira passa a ser mais específica em relação ao que se faz fora do Brasil, pois o estruturalismo permite um trabalho diferenciado de acordo com as diferentes inscrições históricas de quem o pratica; o formalismo, em oposição ao conteudismo, ao comportamentalismo, deixa emergir uma noção de língua e de exterioridade não presa à tradição, levando, assim, os linguistas brasileiros a

explorarem de modos diferentes suas relações com o conhecimento linguístico produzido no Brasil.

Leite (1999) desenvolve um estudo sobre a configuração do purismo brasileiro, explorando o processo de produção da norma para a língua escrita no Brasil, bem como sua relação com o lugar dos estudos filológicos, gramaticais e, sobretudo, literários no país. Para tanto, a autora periodiza esse processo em quatro momentos, relacionados ao século XX, mas o que nos desperta interesse são os dois últimos períodos, no sentido de que em um período ocorre a busca do equilíbrio (1930-1960), pela fixação de uma norma brasileira através da escrita do gênero da crônica; e no outro, a aproximação fala/escrita, a partir de 1960, estudando a repercussão de alguns preceitos da Sociolinguística no uso e na instituição de uma norma para a língua brasileira.

Em um estudo desenvolvido por Barros (2008), sobre a linguagem popular na gramática, encontramos que a produção de gramáticas brasileiras, no século XX, apresenta marcas de que os usos populares continuam a ser considerados viciosos, deselegantes e pouco melodiosos, mas se acentuam os traços positivos de simplicidade e de naturalidade, graças à ênfase dada à distinção entre usos populares propriamente ditos e usos vulgares, que conservam apenas os atributos negativos da falta de escolarização e da ignorância.

Nesse viés, Orlandi explica que nas aulas de Língua Portuguesa, e aqui estendemos para a produção de instrumentos liguísticos, há “o funcionamento de duas discursividades: a do gramático e a do lingüista, este se apresentando como um superego às vezes desejado, outras vezes detestado.” (ORLANDI, 2002, p. 206). Conforme a autora, o gramático, enquanto defensor da língua nacional, criou o imaginário de uma língua regida para todos os brasileiros, mostrando os desvios e as diferenças, e o linguista, ao seu modo, também concorre para esse efeito de unidade, mas por meio da apropriação de um discurso da ciência, elaborando uma metalinguagem que dá o estatuto de objetividade científica à representação de unidade. Em nossa leitura, essas discursividades funcionam em um lugar de entremeio, em um dado momento histórico, em que relações de força estão em jogo, ao se considerar que há um embate entre campos de saberes heterogêneos. Disso, há injunções no modo de se fazer gramática e, também, no modo de tomá-la como objeto de trabalho nas aulas de Língua Portuguesa. Há de se considerar que esses

sujeitos não são afetados somente pelas questões de cunho linguístico, mas também pelas imposições da NGB.

Para produzir essa revisão, selecionamos aspectos que consideramos significativos, sentidos nodais, todavia, sabemos que isso pode ser limitador, mas no momento, necessário. Também compreendemos que não se trata de buscar uma mera sequência cronológica de “fatos”, mas sim caracterizar os atravessamentos de um movimento processual que afetam a autoria na produção do saber sobre a língua.

2.4 GESTOS DE INTERPRETAÇÃO: A CONSTITUIÇÃO DA FUNÇÃO-AUTOR EM