• Nenhum resultado encontrado

PARTE 3 “OUTRO FATOR DE PERTURBAÇÃO DA BOA ESCOLHA DAS

3.1 DO SENTIDO QUE “PERTURBA”

O sujeito pragmático – isto é, cada um de nós, os “simples particulares” face às diversas urgências de sua vida – tem por si mesmo uma imperiosa necessidade de homogeneidade lógica. (PÊCHEUX, 2006, p. 33).

Como destacamos na Pré-face deste trabalho, consideramos que os instrumentos linguísticos, sobretudo as gramáticas, têm em sua constituição a marca de um projeto de unificação, há uma necessidade eminentemente política de se homogeneizar a língua pela via da norma, para que as perturbações não tenham espaço na produção do saber gramatical. Há uma busca pelo sentido unívoco, um “mundo semanticamente normal”, conforme explica Pêcheux (2006). Entendemos a norma, a partir de Canguilhem40 (2007), como “uma regra, é aquilo que serve para retificar, pôr de pé, endireitar”. “Uma norma se propõe como um modo possível de unificar um diverso, de reabsorver uma diferença, de resolver uma desavença”. (CANGUILHEM, 2007, p. 212). Ou seja, a norma é uma força conservadora na linguagem e, em muitas sociedades, a norma se torna operante e agressiva, diante das três espécies de erro: por meio do ensino escolar e da organização de uma disciplina gramatical, conforme Câmara Júnior (1986). Assim, a gramática normativa é um espaço de contenção de sentidos que almeja conter os sentidos que as palavras carregam, suas possibilidades de uso, suas possíveis combinações, etc., em uma tentativa de afastar as possibilidades do equívoco, da falha, do deslize serem constitutivos da gramática e, por conseguinte, da língua. Sobre esse aspecto, Castellanos Pfeiffer (2003) explica que, pelo fato de escapar ao sujeito, a produção dos sentidos, também escapa onde o ritual desta produção falha, pois se considera que sujeito e sentido são produzidos na história e são determinados e desconhecem seu processo de determinação.

39 Rocha Lima (1972, p. 451).

40 É pela história das ideias desse autor, segundo Petri (no prelo), que depreendemos o quão profícua

é sua contribuição para que se institua uma nova forma de se pensar o fazer científico e a história da ciência, propriamente dita, tal como a concebemos até hoje. Merece destaque a sua trajetória teórico- filosófica empreendida a partir de 1943, época em que conclui sua tese sobre o normal e o patológico. Trata-se de um filósofo que dialoga com seus contemporâneos e reflete bastante acerca das questões da linguagem.

No que refere às noções de normal, normatividade e anormal, conforme já apontamos em Surdi (2010), Canguilhem (2007) expõe que a palavra latina norma deriva do grego ', que deu origem, enquanto prefixo, a palavras como ortografia, ortopedia, ortodoxia, suportando o peso do sentido inicial dos termos norma e normal. O conceito de normal é reduzido a um conceito qualitativo e polivalente, estético e moral. Normal advém de norma, regra, ou seja, o que é conforme à regra, regular, como um esquadro, aquilo que não pende nem para a esquerda nem para a direita, portanto, o que se conserva em um justo meio-termo; “Uma norma, uma regra, é aquilo que serve para retificar, pôr de pé, endireitar”. (p. 211). Então, “Uma norma se propõe como um modo possível de unificar um diverso, de reabsorver uma diferença, de resolver uma desavença”. (p. 212).

Conforme o Dicionário de Linguística e Gramática, de Câmara Júnior (1986, p. 177), a palavra norma é apresentada como o “conjunto de hábitos vigentes no lugar ou na classe social mais prestigiosa no País”. A norma é contrariada pela variabilidade linguística intrínseca, que se verifica de um lugar para outro, de uma classe social para outra e de um indivíduo para outro. Para o autor, do ponto de vista da norma, a variabilidade que a contraria constitui o erro, que é de três espécies: o regionalismo, o vulgarismo e erros individuais, correspondentes ao idioleto. Tais erros atuam contra a norma e tendem a enfraquecê-la ou modificá-la, principalmente quando na estrutura social se debilita o prestígio do lugar e da classe que representa. Nesse viés, a norma é uma força conservadora na linguagem e, em muitas sociedades altamente evoluídas, a norma se torna operante e agressiva, diante das três espécies de erro, por meio do ensino escolar e da organização de uma disciplina gramatical.

O termo anormal, para Canguilhem (2007), implica referência a um valor, é um termo apreciativo, normativo. “O anormal, enquanto a-normal, é posterior à definição do normal, é a negação lógica deste”. (p. 216). Desse modo, o anormal é o desregrado, irregular, fora de um esquadro, é o que está fora da norma, é o que pende para a direita e/ou para a esquerda. É um modo de conceber o “diferente” como constitutivo do “mesmo”, pois só se identifica uma irregularidade estabelecendo relações com aquilo que regula, que regra.

Consideremos novamente a passagem que intitula a terceira parte deste estudo, para observamos a relação entre anormalidade e perturbação:

Outro fator de perturbação da boa escolha das palavras é a existência de

homônimos. (ROCHA LIMA, 1972, p. 451).

Precisamos levar em conta o sintagma “boa”, que vem determinando o tipo de escolha das palavras. Assim, não se trata de qualquer escolha, pois “a rigor, deve ser “boa”, o que significa certa = correta = norma, ou seja, dentro da normalidade. Desse modo, a normalidade está para boa escolha, como a anormalidade está para a perturbação. O sintagma “escolha” produz um efeito de sentido de que o sujeito tem possibilidades de escolher (com total autonomia) as palavras e conter seus sentidos; como se fosse possível fazer a escolha sem a influência da história, da ideologia, da exterioridade e do inconsciente; como se fosse possível controlar os sentidos que se produzem a partir de uma palavra proferida. Estamos compreendendo a ideologia, como “[...] uma prática significativa. Necessidade da interpretação, a ideologia não é consciente: ela é efeito da relação do sujeito com a língua e com a história em sua relação necessária, para que se signifique”. (ORLANDI, 2004. p. 48). E o sujeito, nesse viés, é entendido como lugar historicamente constituído de significação e interpelado ideologicamente, assim, o sujeito não é origem de si e a história não é contexto, como explica Orlandi (2004). Nesse domínio discursivo, o sujeito é uma posição entre outras e neste estudo tratamos da tomada de posição do sujeito-gramático, em sua função autor, relacionando-a à problemática que envolve a questão da produção dos sentidos e de como a significação tem ou não lugar na produção de saberes sobre a língua na GNLP.