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Golpe: a estratégia militar da “Estratégia Nacional”

No documento 2007AnaPaulaLimaTibola (páginas 90-96)

III ESG E O GOLPE: o governo João Goulart e a Doutrina de Segurança Nacional

3.4 Golpe: a estratégia militar da “Estratégia Nacional”

Diante dos últimos acontecimentos e cientes da estratégia comunista – a guerra revolucionária, seja pela via pacífica, seja pela guerrilha – os militares se articulavam. Enxergando João Goulart como um líder passível de ser manipulado, os militares planejam uma intervenção. Nesse sentido, o golpe militar de 1964 foi um momento de aplicação da estratégia da ESG. Na visão dos militares se chegara a uma situação de completo caos. Na forma como João Goulart estava conduzindo a política de governo, não existia perspectiva de alcance dos objetivos nacionais. O estabelecimento destes estava posto em risco. Configurava- se, assim, uma Hipótese de Conflito. Com chances de se transformar em Hipótese de Conflito Armado, já q o Poder Nacional estava sendo atingido pela pressão comunista. Segundo Cordeiro de Farias:

“Ao mesmo tempo, havia o receio de que a revolução [da esquerda] viesse, e o povo começou a se armar. No Nordeste os proprietários de terras e de usinas se armaram e aos seus capangas contra os camponeses, que também se armaram. Na Bahia, idem. Em São Paulo se armaram, e também no interior do Paraná.”146.

A ESG via em João Goulart uma política de governo que contrastava com a Política Nacional idealizada pela Doutrina de Segurança Nacional. Para a Escola, o comunismo ameaçava os Objetivos Nacionais; o Poder Nacional corria o risco de ser deteriorado pela infiltração comunista. A Nação envolvia-se no caos e as Forças Armadas

145LAMARÃO, Sérgio.A revolta dos marinheiros.In:http://www.cpdoc.fgv.br/comum/htm/

146CAMARGO, Aspásia ; GÓES, Walder de.(orgs).Meio século de combate:diálogo com Cordeiro de Farias.

sofriam um forte abalo na sua base de sustentação, a hierarquia. Além disso, a reação de descontentamento da sociedade acabou por dar impulso ao movimento dos militares. A perspectiva da desordem permitiu que muitos militares leais ao governo aderissem aos golpistas. No entanto, o elemento de peso foi o desequilíbrio das Forças Armadas. O marechal Humberto de Alencar Castello Branco, no fechamento de um ano de seu governo em 1965, fez as seguintes considerações em relação ao governo de seu antecessor João Goulart:

“Partes de um todo, as Forças Armadas não ficam endosses às perturbações de ordem política e social que porventura agitam o País. Natural, portanto, que, dentro do ambiente existente até à Revolução de 31 de março, no qual o governo via deteriorar-se a sua autoridade graças a fatores por ele próprio provocados, caminhássemos a passos largos para uma situação de desordem militar.”147.

O anti-comunismo, enraizado nas Forças Armadas, desde a “Intentona Comunista”148 foi a principal motivação para a conspiração. Do anticomunismo deriva as outras preocupações militares como a situação de caos e a quebra de hierarquia na corporação. Segundo Cordeiro de Farias:

“Era imperioso que a conspiração se sediasse lá, envolvendo a indústria. Não se luta, não se faz guerra, sem uma base logística. O soldado, o tenente e o general não são nada sem uma boa retaguarda. Assim, a conspiração de 1964 precisou começar pela montagem da retaguarda. Foi um trabalho lento, que teve início 14 meses antes de 31 de março.”149

É possível encontrar em alguns autores a idéia de que a questão do comunismo foi utilizada pelos militares como justificativa para a derrubada de Jango. Concordamos que realmente foi uma justificativa. Entretanto, essa justificativa soa em algumas análises como desculpa. O anticomunismo teria sido implantado na sociedade pela propaganda da direita e aproveitado pelos militares na efetivação do golpe. A interpretação da doutrina, bem como a análise dos cursos, nos mostra o choque do pensamento militar com o comunismo. Segundo Leonardo Trevisan:

“As Forças Armadas como um todo assistiram impassíveis, acreditando que tudo viria a ser absorvido pelo próprio jogo político. Afinal de contas as eleições seriam no ano seguinte — 1965 — com uma certeza absoluta de vitória para os

147CASTELO BRANCO, Humberto de Alencar.Mensagem ao Congresso Nacional.In:http://brasil.crl.edu 148A tentativa de uma revolução comunista em 1935 foi chamada pejorativamente pelos militares vitoriosos de

“Intentona”, que quer dizer intento louco. Essa questão será mais explicitada adiante.

149CAMARGO, Aspásia ; GÓES, Walder de.(orgs).Meio século de combate:diálogo com Cordeiro de Farias.

conservadores. Portanto, era só ter um pouco de paciência com aquela agitação toda. Até que as coisas ganharam uma outra dimensão. E (atenção!) a Revolução de 1964 é filha desta outra dimensão: a quebra da hierarquia, o valor sagrado para os militares.”150.

Sem dúvida o que possibilitou o sucesso da investida golpista foi a doutrinação realizada pela ESG. Sem precisar pecar contra os princípios organizacionais, os mentores da ESG conseguiram pelo próprio sentido de ordem derrubar seu principal inimigo. A anistia aos rebeldes marinheiros e o comparecimento de Jango ao Automóvel Club foi o que deu inicio à “revolução”. Segundo Ernesto Geisel:

Quando se anunciou que haveria uma reunião do Jango com os sargentos, alguns companheiros vieram a mim com a proposta de cercar o acesso ao Automóvel Club com elementos de confiança, e assim impedir a realização da reunião. Fui contrário a isso, dizendo: “Deixem que se faça a reunião: agora, quanto pior, melhor para a nossa causa.”151.

Nesse sentido, continuamos entendo que o golpe de 1964, mesmo contando com o apoio de setores civis foi essencialmente militar. Os próprios militares como Ernesto Geisel e Cordeiro de Farias sustentam a idéia da participação da sociedade civil. São interessantes os depoimentos desses militares quanto ao golpe. Eles concordam que a “revolução” seria uma questão de tempo. Os dois generais atribuem o golpe ao próprio Jango. Admitem que a conspiração existia, mas que não precisaram de muitos esforços para derrubar o governo. É significativa a análise de duas considerações do general Cordeiro de Farias. Na mesma entrevista o general, primeiro comandante da ESG, diz:

“Sempre faço questão de deixar claro que nós, os militares, fomos a retaguarda da Revolução de 1964. A vanguarda foi a opinião pública e, dentro dela, as mulheres. Minas Gerais terá sido a única exceção. Mesmo assim, a frente militar mineira somente se articulou em virtude da mobilização civil promovida pelo governador Magalhães Pinto. Nesse sentido, a Revolução não foi obra do Exército, mas uma reação espontânea iniciada pelas mulheres, e por elas alimentada até o fim. Em Minas e em São Paulo as mulheres fizeram o diabo!”

E mais à frente:

“Quem fez a revolução não fomos nós, foi Jango, com sua política, com suas atitudes. Não há exagero nenhum nisso. Ele colocou o Exército num dilema trágico: rendição à anarquia ou reação! O ânimo era tão exaltado que a

150TREVISAN, Leonardo.O pensamento militar brasileiro.Edição eletrônica. In:http://www.ebooksbrasil.com 151CASTRO Celso; D’ARAUJO, Maria Celina(orgs).Ernesto Geisel. Rio de Janeiro, FGV, 1997.

oficialidade jovem não se conformava em evitar a luta armada. Mesmo assim a passividade era grande.”152.

Quando Cordeiro de Farias diz que “a passividade era grande” ele se refere à significativa parte das Forças Armadas que era legalista. Na primeira citação, o general atribui a iniciativa da sociedade civil, mas na segunda, fica claro o fator decisivo para a efetivação do golpe: a intervenção das Forças Armadas em reação a anarquia. Sem a adesão dos militares “legalistas”, as manifestações poderiam ser controladas pelo governo. Tanto, que o próprio João Goulart descartava a vitória do golpe, por acreditar no seu “dispositivo militar”. Mas como se deu o golpe? Qual a participação da ESG no movimento?

Jango não acreditava no golpe militar. O presidente sabia que existia um núcleo golpista no interior das Forças Armadas que se articulava com setores civis conservadores. Entretanto, confiava no famoso “dispositivo militar”. Jango contava com o espírito legalista das Forças Armadas, entretanto, não considerou o “espírito militar”. Além disso, confiou demasiadamente no apoio popular. Segundo Carlos Fico:

“Embora a expressiva vitória do presidencialismo, na consulta popular de 1963, tenha-se devido ao apoio de forças bastante heterogêneas (candidatos ao pleito presidencial de 1965 e empresários que almejavam um governo forte, por exemplo), Goulart interpretou-a como um triunfo eleitoral pessoal.”153.

No que diz respeito ao “dispositivo militar”, este não existia. Nem o presidente e nem seu ministro da guerra sabiam das dimensões que a conspiração tinha alcançado dentro das Forças Armadas. Sabia-se, como era denunciado pela esquerda e pelos “nacionalistas”, que se planejava um golpe. Entretanto, Jango e seus partidários desconheciam os diferentes focos de conspiração dentro da caserna. Segundo Adyr Fiúza de Castro, tenente-coronel em 1964:

“O Assis Brasil era chefe do Gabinete Militar de João Goulart e estava muito confiante no tal “dispositivo militar”, porque os generais eram dele. Mas nós estávamos minando por baixo, no nível de capitão, major e coronel. Não os generais,

152CAMARGO, Aspásia ; GÓES, Walder de.(orgs).Meio século de combate:diálogo com Cordeiro de Farias.

Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981.

153FICO, Carlos.Além do golpe.Versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. São Paulo: Record,

pois os generais promovidos pelo Goulart, que estavam no comando das brigadas e das regiões, eram de total confiança dele e do Assis Brasil.”154.

Questionado sobre o conhecimento do presidente sobre a amplitude da conspiração o militar diz o seguinte:

“O Jango não tinha boas informações, não havia ainda o SNI. Quer dizer a mesma falha que se deu com Collor, que extinguiu o SNI. Todo governo precisa ter um sistema de informações. Qualquer governo do mundo coloca seus homens de confiança nesse sistema. Tem que haver um sistema de informações para o governo saber o que está se passando. É claro que o Collor não sabia. O Jango também não sabia, porque ele só tinha notícias através dos seus áulicos, todas positivas e destinadas a agradar-lhe.”155.

Na verdade, existiam “ilhas” conspiratórias, mas entre essas ilhas se destacavam a conspiração esguiana, ou seja, da “Sorbonne” e a conspiração de oficias insatisfeitos com o governo, que acabariam por constituir a chamada “linha dura”. Ainda segundo Fiúza:

“Na preparação para o golpe de 64, todos os grupos eram unânimes em saber o que não queriam: não queriam uma república popular instalada no Brasil. Quanto ao que queriam aí divergiam muito. Mesmo no interior de cada grupo haviam grandes divergências. Uns queriam apenas afastar o governo, afastar o Goulart e sua turma. Outros queriam instalar realmente um regime forte, ditatorial, que limpasse a sociedade e impedisse de uma vez por todas que o país voltasse àquele estado. Naquele tempo havia uma confusão tremenda, uma indisciplina muito grande. O principal motivo que unia todos os grupos conspiratórios, embora um desconfiando do outro, era afastar a hipótese do Brasil se transformar numa republica sindicalista ou popular ou que seja. Isso era comum. Mas essas duas grandes correntes não tinham muito bom entrosamento. Ou aliás, não tinham quase nenhum.”156.

Mesmo sem articulação com os outros grupos conspiradores, a ESG, através de seus cursos soube amplificar os ideais anticomunistas das Forças Armadas. Para isso lhe serviram muito bem os valores da formação militar. A doutrinação da ESG foi importante principalmente no que diz respeito a guerra revolucionária. Como veremos a seguir, a guerra revolucionária não deixou de ser pauta nas conferências da ESG no pós-64, entretanto a Escola já difundia o perigo antes do golpe. Outro militar que participou do golpe diz que:

“Essas idéias [sobre a guerra revolucionária] passaram a se alastrar, passaram as três escolas de estado-maior, chegaram aos estados-maiores das três Forças Armadas. Elaborou-se farta documentação criaram-se cursos e estruturas sintonizadas com essa prioridade dada à contra-revolução. A prioridade agora não

154D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO, Celso.Visões do Golpe:a memória

militar de 1964. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004;

155Idem. 156Ibidem.

era mais para o infinitamente grande da guerra atômica, mas para o infinitamente pequeno das guerras insurrecionais e das guerrilhas. Tudo isso tornou-se obsessivo durante o governo Goulart, porque as perturbações da ordem nas cidades e nos campos configuravam, na ótica militar, os passos da revolução em marcha.”157.

A pesquisadora pergunta ao militar como se deu a reciclagem, ou seja, como os militares deixaram de pensar em guerra convencional e passaram a considerar a guerra interna insurrecional. O entrevistado diz o seguinte:

“Muito simples. Os documentos entram na ESG, realizam-se conferências e seminários. As idéias descem às escolas de estado-maior e começam a entrar nos currículos. Nos primeiros anos entram timidamente, depois tomam conta.”

A partir desse depoimento fica clara a influência da ESG no que tange à disseminação de preceitos militares. Mesmo que posições políticas e econômicas distanciem a ESG de outros grupos, quando o assunto receber um caráter militar a união se estabelece. Foi dessa conexão que sustentou-se o golpe. A preocupação com a estratégia comunista não era restrita aos quadros da ESG, eis o fio condutor. Entretanto, para os esguianos, a ameaça comunista não estava imobilizada, mesmo com os militares no poder não acabaram as pressões. A conjuntura interna vai marcar a dinâmica do primeiro governo militar.

157D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO, Celso.Visões do Golpe:a memória

No documento 2007AnaPaulaLimaTibola (páginas 90-96)