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1. PRIMEIRA ESCALA – VIAGEM DA LOUCURA: EMBARCANDO NA

1.5. Desinstitucionalização – trilhando o conceito

1.5.2. Desinstitucionalizar a desinstitucionalização – o paradigma

1.5.2.1 Gorizia – negando a instituição

A construção do paradigma da desinstitucionalização italiano origina-se na experiência no Hospital de Gorizia, conforme já afirmado. Naquela ocasião, as transformações impulsionadas pela equipe de Basaglia3, na busca de transformar o hospital em uma Comunidade Terapêutica, demonstraram que não bastavam transformações na estrutura do “serviço” – hospital psiquiátrico- ,mas que a origem da opressão e dos maus-tratos estava posta em uma outra relação: aquela que colocava a doença e o saber a respeito da mesma na alçada da psiquiatria; e os ditos doentes sob sua tutela e controle. Assim, não importava se era no hospital

psiquiátrico, na escola ou na fábrica, a opressão se dava, segundo Basaglia (1985)4,

pela questão do poder. E qualquer transformação real necessitaria empoderar os loucos. Isso não significa “dar poder aos loucos”, mas permitir que os mesmos estabeleçam relações de empoderamento e exerçam seu poder.

Uma série de reflexões e discussões sobre o hospital, a loucura e a psiquiatria começou a despontar dessa experiência. Segundo Amarante(2003c), alguns aspectos que marcam toda a obra basagliana surgiram nesse período, tais como:

(a) a relação de interdependência entre a psiquiatria e a justiça; (b) a discussão sobre a origem de classe das pessoas internadas;

(c) a não-neutralidade da ciência, questionando o saber e as práticas ditas terapêuticas da psiquiatria;

(d) o papel e a função social dos técnicos como agentes do poder e controle institucional.

O autor destaca, também, outras discussões e conceitos que aparecem desde Gorizia: o combate ao reformismo psiquiátrico, a renúncia ao mandato terapêutico da psiquiatria, a doença entre parênteses, o duplo da doença mental. Iremos abordar rapidamente tais noções já que elas são a base para a construção do paradigma da desinstitucionalização.

• Renúncia ao mandato terapêutico da psiquiatria

Conforme já é conhecido, a experiência em Gorizia originou-se com o objetivo de transformar o hospital em uma Comunidade Terapêutica, buscando transformar o hospital em um local de cura (BASAGLIA, 2006). Entretanto, em seguida Basaglia e

4 “As instituições de violência” In: BASAGLIA, et al. A Instituição Negada. 3ªed. Rio de Janeiro: Graal,

sua equipe identificam que a transformação limitada ao hospital se mostra ineficaz. Sendo o hospital “lugar de institucionalização e de alienação induzida”, corre o risco de se transformar com as alterações em uma “gaiola de ouro”. Passam, por essa razão, a questionar o papel da psiquiatria na sociedade e a negar o mandato terapêutico, ou seja, reconhecem que à psiquiatria coube o “papel” de manter os loucos sob controle e o lócus desse controle é o hospital.

• A doença mental entre parênteses

Essa é uma discussão fundamental na teoria basagliana, uma vez que representa uma mudança de perspectiva. Basaglia e seus companheiros passaram a questionar o conceito de doença mental produzido pela psiquiatria, considerado limitado. Ao “catalogar” o sofrimento mental, a psiquiatria reduziu o sujeito doente. Basaglia afirma que, durante todo o tempo, a psiquiatria se ocupou da doença e colocou o doente mental “entre parênteses”. Em vista disso, propõe uma inversão: colocar a doença mental entre parênteses e tratar/cuidar do sujeito doente. De acordo com Amarante (1996) esse princípio refere-se à individuação da pessoa doente, isto é, ocupar-se não da doença mental como conceito psiquiátrico, mas de tudo aquilo que se construiu em torno da doença (AMARANTE,1996).

Amarante enfatiza que colocar a doença mental entre parênteses não significa negar a doença mental, mas significa a negação “da aceitação da elaboração teórica da psiquiatria em dar conta do fenômeno da loucura e da experiência sofrimento”. Em outras palavras, “uma recusa à aceitação da positividade do saber psiquiátrico em explicar e compreender a loucura/sofrimento psíquico” (AMARANTE, 1996, p. 80).

• O duplo da doença mental

A noção de duplo da doença mental diz respeito a tudo que se sobrepõe à doença, atributos que a pessoa carrega por estar institucionalizada. Segundo Amarante (2003c), é a face institucional da doença mental, produzida a partir da negação da subjetividade do louco, da sua objetivação como doente mental. Refere- se àquelas questões que não são necessariamente conseqüência da “doença” , mas do significado atribuído a ela. Por exemplo, o fato de a pessoa dita louca não cuidar de sua higiene pessoal. Sabe-se que o manicômio é um lugar no qual as pessoas ficam sujas, pela falta de privacidade, pela dificuldade de ter acessar ao banheiro, pela baixa auto-estima, entre outros,. Assim, é comum encontrarmos muitos loucos “sujos” no interior do manicômio. O saber psiquiátrico “deposita” a questão da “sujeira” e da falta da higiene ao comportamento louco. De conseqüência do isolamento, a falta de higiene passa a ser a causa do isolamento.

O doente, assim, recluso no espaço no qual é submetido a um teclado de variadas espécies de violência, passa a incorporar em seu comportamento, por força dessas mesmas violências, tudo aquilo que a instituição deseja que se torne; violento, antissocial, melancólico, enfim, alienado (e é bastante adequado aqui o duplo sentido da palavra alienação). Se o sujeito, portador ou não de um sofrimento mental, é peremptoriamente submetido a tal situação, ao cabo de algum tempo torna-se difícil distinguir o que lhe é próprio, o que é próprio do seu sofrimento, do que lhe é impresso pela condição de institucionalizado (AMARANTE, 1996, p. 81).

Essa construção não se reflete só no louco ou no interior do manicômio. A sociedade assimila tais questões como verdades científicas inquestionáveis.

O conjunto de reflexões sobre a experiência em Gorizia contribuiu para que o processo de desinstitucionalização iniciado na Itália extrapolasse os muros do

território psiquiátrico e envolvesse toda a sociedade5. O trabalho na cidade de

Trieste irá representar a outra etapa da formação do paradigma da desinstitucionalização.