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Nasce a psiquiatria: saber e lugar específico para a loucura e o

1. PRIMEIRA ESCALA – VIAGEM DA LOUCURA: EMBARCANDO NA

1.2. Nasce a psiquiatria: saber e lugar específico para a loucura e o

desenvolvimento do modo capitalista de produção, ocorreram mudanças na organização política, e também, nas relações sociais da sociedade européia. Segundo Hobsbawn (1996), tais mudanças são concretizadas através da dupla revolução ou das revoluções gêmeas (francesa e industrial), que revolucionaram não só a Europa, mas também o mundo, inventando palavras (fábrica, classe média, proletariado, capitalismo, entre outras) e formas de organização as quais demonstravam que o mundo jamais seria o mesmo. Para o autor, a revolução que eclodiu entre 1789 e 1848, “constitui a maior transformação da história humana desde os tempos remotos quando o homem inventou a agricultura e a metalurgia, a escrita, a cidade e o Estado” (1996, p.17). O grande triunfo dessa revolução foi a implantação da sociedade capitalista, através da instauração da hegemonia burguesa do modo de organizar e pensar a vida social.

Com relação à temática desenvolvida nesta tese, a grande transformação se deu com relação ao fato de a ciência adquirir o status de fonte da verdade. A Revolução Francesa, com seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, sepultou definitivamente a verdade como uma explicação mística e dotou os homens do poder de agir e transformar a realidade, e a ciência, de explicá-la. Assim, passa a ser verdadeiro o que é cientificamente comprovado.

Ora, se a lei não era mais privilégio do rei ou do clero, se ao cidadão competia escolher, decidir, construir a nova sociedade, então, qual seria a ordem, a racionalidade que deveria guiá-los no caminho certo? A ciência. A ciência assumia neste contexto a palavra da verdade, da objetividade, da ordem e da moral. Construída pela Razão humana, seria a única possibilidade de se chegar à verdade das coisas e dos fatos (AMARANTE, 2003a, p. 46).

Dentre os muitos resultados dessas mudanças, enfatizamos a transformação do hospital numa instituição médica. Ainda que de forma muito breve, abordaremos a questão da captura do hospital pela medicina e, conseqüentemente, da loucura, pela psiquiatria.

De acordo com Foucault (2004), o que possibilitou a medicalização do hospital foi a introdução dos mecanismos disciplinares em seu interior. Embora considerando que a disciplina já fazia parte da história da humanidade há bastante tempo, o autor afirma que os princípios fundamentais da disciplina, enquanto tecnologia política, foram elaborados durante o século XVIII, como uma nova técnica de gestão e controle dos homens. Esse ordenamento disciplinar teria resultado de uma série de visitas realizadas aos hospitais da Europa no século XVIII, as quais teriam demonstrado que esses estabelecimentos, enquanto lugares de exclusão e concentração de doenças e mortes, eram lugares insalubres e de desordem, devendo ser objeto de higienização da medicina social.

Essas visitas-inquérito tinham, por finalidade, definir um programa de reforma e reconstrução dos hospitais, desenvolver uma espécie de catalogação dos doentes, número de leitos, mapeamento das salas, taxas de mortalidade e de cura; enfim, obter-se um retrato da situação dos estabelecimentos com vistas a evitar que as doenças se propagassem e ameaçassem a sociedade européia da época. Tais visitas e seus respectivos diagnósticos eram realizados não por arquitetos, mas por médicos ou profissionais próximos à área médica.

Além da introdução dos mecanismos disciplinares no espaço confuso do hospital, a transformação no saber médico também demarcou o nascimento do

XVIII fundamentava-se no sistema epistemológico das ciências naturais, especialmente, da botânica.

Isso significa a exigência da doença ser compreendida como um fenômeno natural. Ela terá espécies, características observáveis, curso e desenvolvimento como toda planta. A doença é a natureza, mas uma natureza devida a uma ação particular do meio sobre o indivíduo (FOUCAULT, 2004, p. 107).

Dessa forma, o deslocamento da intervenção médica e a disciplinarização do espaço hospitalar irão originar o nascimento do hospital como espaço médico. Os dois fenômenos irão se ajustar com o aparecimento de uma disciplina hospitalar que terá, por função, “assegurar o esquadrinhamento, a vigilância, a disciplinarização do mundo confuso do doente e da doença, como também transformar as condições do meio em que os doentes estão colocados” (FOUCAULT, 2004, p. 108). Transforma- se, assim, o hospital, que passará a ter três características fundamentais: a) grande preocupação com a organização interna. “A arquitetura do hospital deve ser fator e instrumento de cura” (p. 108-9); b) transformação no sistema de poder no interior do hospital. O médico passa a ser o principal responsável pela organização do mesmo, e c) organização de um sistema de registro permanente e, se possível, exaustivo do que acontece no hospital. O hospital passa, então, a ser espaço de formação médica.

Paralelamente a esse fenômeno de transformação do hospital em espaço médico, Amarante(2003a) assinala o nascimento da psiquiatria, que tem, como ícone, Philippe Pinel. Em 1793, Pinel foi designado médico-chefe do hospital de Bicétre, que era uma instituição de assistência filantrópica e social, com uma grande variedade de pessoas internadas. Lá, opera os primeiros momentos da

transformação do hospital. Manda desacorrentar os alienados e inscreve sua alienação na nosografia médica. Esquadrinha o Hospital Geral e reserva um espaço rigorosamente médico para os alienados. Para Pessotti(1996), Pinel realizou uma verdadeira revolução na teoria da loucura, em sua época, por duas questões: a) atribuir uma origem passional ou moral para a alienação mental; e b) redefinir totalmente as funções do manicômio, que passa a ser considerado um instrumento de cura, como veremos. Também Birman (1978) considera que Pinel empreendeu a primeira revolução psiquiátrica. Para Amarante (2003a), a grande contribuição de Pinel foi trazer a problemática da loucura para a medicina. Em outras palavras, atribuir à loucura o sentido de doença.

Com ele, “a loucura passa a receber definitivamente o estatuto teórico de alienação mental, o que imprimirá profundas alterações no modo como a sociedade passará a pensar e a lidar com a loucura daí por diante”. Se, por um lado, a iniciativa de Pinel define um estatuto patológico para a loucura, o que permite com que esta seja apropriada pelo discurso e pelas instituições médicas, por outro, abre um campo de possibilidades terapêuticas, pois, até então, a loucura era considerada uma natureza externa ao humano, estranha à razão. Pinel levanta a possibilidade de cura da loucura, por meio tratamento moral, ao entender que a alienação é produto de um distúrbio da paixão, no interior da própria razão, e não a sua alteridade” (AMARANTE, 2003a , p.42).

Assim, para Pinel, a loucura – a alienação mental – é, fundamentalmente, um distúrbio das paixões, e o seu tratamento deve reeducar a mente alienada. A “tecnologia pineliana” (Castel, 1978), compreendia as seguintes estratégias: a) isolamento do mundo exterior; b) a constituição da ordem asilar; e c) a constituição de uma relação terapêutica baseada na autoridade. Pinel acreditava que, para

pré-condição para o sucesso das outras etapas do método científico experimental, ou seja, observar, descrever, comparar e classificar. O isolamento seria a maneira de separar e ordenar as categorias que se apresentam misturadas no Grande Enclausuramento (AMARANTE, 2003a). Passou, então, a organizar uma nosografia das doenças, das alienações mentais.

Na medida em que as doenças iam sendo identificadas ou diagnosticadas, eram agrupadas – tanto no sentido institucional, isto é, fisicamente, em salas específicas, como, por exemplo, salas apenas com febris, outras com traumatizados, outras ainda com portadores de doenças de pele, e assim por diante-, quanto no sentido teórico, em nosografias, ou seja, em classificações (AMARANTE, 2003a, p. 16).

Desse modo, a partir do princípio do afastamento, ia separando e agrupando os diferentes tipos de alienações e delírios, comparando-os entre si, a partir de uma rigorosa e permanente observação dos enfermos. Para Pinel:

É impossível distribuir os loucos cuja loucura se pretende tratar como se distribui doentes comuns ou mulheres grávidas. Um hospital é, de certa forma, um instrumento que facilita a cura; porém existe uma grande diferença entre um hospital de febris feridos e um hospital de loucos curáveis; o primeiro oferece somente um meio de tratar com maiores ou menores vantagens, em função de ser mais ou menos bem distribuído, ao passo que o segundo, tem ele próprio, função de remédio (Pinel, apud AMARANTE, 2003a, p. 16).

O conjunto de estratégias voltadas para a reeducação da mente alienada proposto por Pinel é conhecido como Tratamento Moral. Funcionaria como uma polícia interior. Dava-se, inicialmente, com o próprio regime disciplinar do asilo, mas também com a instituição do trabalho terapêutico. Dessa maneira, a tecnologia pineliana inaugurava um novo estatuto para a loucura: o de doença mental e

conseqüentemente, para o louco: o de doente mental, necessitando, portanto, de cuidado e tratamento, só disponível na estrutura asilar do tratamento moral, como sintetiza Birman:

A loucura torna-se verdade médica. Cria-se uma clínica das enfermidades mentais e uma concepção terapêutica: o louco, como qualquer doente, necessita de cuidados, de apoio e de remédios. Cria-se um corpo de conceitos, a teoria psiquiátrica, que instrumentalizariam esta prática clínica. O asilo é criado, aparecendo como figura histórica, tornando-se o lugar adequado para a realização desta cura (BIRMAN, 1978, p. 02).

Internada em hospital específico, a loucura, agora “batizada” de doença mental, permaneceu até meados do século XX e a psiquiatria manteve seu título de “a” ciência que pode e deve tratá-la e curá-la.