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A governança ambiental é uma combinação de políticas explícitas e implícitas sobre o acesso aos recursos naturais de propriedade comum. Assim como outras formas de governança, ela exprime a forma como a autoridade é exercida por meio de regras formais e informais, e envolve noções de soberania e legitimidade para além das tradicionais concepções associadas aos Estados nacionais. A governança ambiental está relacionada com a concretização de objetivos conservacionistas e determina a distribuição de custos e benefícios relevantes. Ela é chave para prevenir e resolver potenciais conflitos sociais e afeta a geração e a garantia do apoio público (Institute On Governance/Parks Canada, 2002).

É num contexto mais favorável ao controle social por parte da população, com foco nos mecanismos de accountability (Bovens, 2009) e o estímulo e ampliação da participação da sociedade nos processos de formulação e implementação de políticas públicas no campo ambiental que se desenvolve a noção de governança ambiental e territorial e são fomentadas

várias experiências do que se conhece hoje mais genericamente como “governança colaborativa” (Ansell & Gash, 2007; Booher, 2004), ou seja, quando a sociedade em parceria

com órgãos do Estado define objetivos e prioridades, tratando de assegurar e promover a cooperação entre os atores participantes. Isso porque, como afirma David Booher (2004: 34),

“formular políticas públicas não é apenas encontrar soluções, mas também criar processos para a ação coletiva e a solução de problemas que geram simultaneamente confiança entre os atores”.

Segundo o paradigma atualmente em voga, uma das melhores estratégias para a conservação da diversidade biológica e cultural (bio e sociodiversidade) e uso sustentável dos recursos naturais é o estabelecimento de áreas protegidas. Essas unidades são criadas pelo Estado e dependendo do seu status costumam ser administradas por órgãos governamentais especialmente designados para tanto. No entanto, o manejo estatal nem sempre é eficaz ou efetivo, uma vez que as unidades de conservação (UCs) correspondem a grandes áreas geográficas, em regiões cujo acesso é precário, e que demandam esforços de fiscalização que transcendem a capacidade de qualquer gestor e sua equipe (quando ele conta com uma), ou mesmo de um grupo de gestores. Além disso, há dificuldades próprias da gestão, como os processos de regularização fundiária, o zoneamento da área, a constituição e o funcionamento

dos conselhos consultivos e/ou deliberativos, o envolvimento e a participação das comunidades na elaboração dos respectivos planos de manejo (MMA et al., 2007). Como é sabido, a maior parte dessas áreas já eram, antes de sua demarcação, utilizadas pelas populações que nelas habitam desde tempos imemoriais, que nelas praticam atividades extrativistas e que delas dependem para a sua sobrevivência física e cultural. Mas as atuais

UCs sempre estiveram sob ameaça de invasões (e ainda são de fato “invadidas”) para a

exploração e uso dos recursos naturais aí existentes e a cada dia é maior a pressão da sociedade envolvente sobre essas áreas.

Nos últimas décadas disseminam-se várias experiências de cogestão de áreas protegidas por todo o planeta (Dudley, 2005; Borrini-Feyerabend et al., 2004a e 2004b), e já é robusta a literatura derivada da produção de pesquisas que comprovam que as comunidades tradicionais estão dispostas e podem contribuir para o gerenciamento dos recursos naturais de que dependem (Ostrom, 1990 e 2002; Moran & Ostrom, 2009). Mas a garantia dessa participação, indispensável ao projeto de desenvolvimento sustentável, requer também o fortalecimento dos órgãos ambientais, para o qual para cada vez mais imprescindível a presença de um Estado comprometido com a tarefa da conservação da natureza, e que reconheça a contribuição das unidades de conservação para a economia nacional; enfim, que as encare como um bônus, e não como um ônus para o país (Gurgel et al., 2009; Medeiros et al., 2011).

3.2.1 O modelo institucional

Dentre todas as áreas que são objeto da ação do Estado, seja por meio da formulação e implementação de políticas públicas, projetos e planos, ou mesmo tentativas de regulação e regulamentação, o meio ambiente talvez seja aquela que requer maior esforço de coordenação entre os diversos ministérios, órgãos e instâncias de governo, uma vez que, dada a sua

“transversalidade” – como se costuma dizer nos dias atuais –, trata-se de um tema que afeta e

envolve diversos setores e atores. Quando distintos projetos e visões de mundo incidem sobre

a natureza, as florestas passam a ser consideradas “recursos florestais”, a água se torna um “recurso hídrico”, os peixes, “recursos pesqueiros”, e mesmo a paisagem passa a ser um valorizado “recurso” quando se trata de empreendimentos imobiliários ou turísticos.

Não é difícil compreender por que foram justamente os bens ofertados pela natureza sobre a forma de frutos que inspiraram a metáfora do mundo (ou estado) natural hobbesiano, quando o acesso e a disponibilidade sobre tudo aquilo que por não ter dono pertencia a todos alimentou o lobo que havia em cada um dos homens desse mítico tempo de outrora. No nosso

mundo civilizado, o homem-lobo se manifesta sob a forma do “ator racional”, maximizador de ganhos pessoais, que por sua vez inspirou a hoje famosa previsão da “tragédia dos recursos de acesso comum” do biólogo G. Hardin, num artigo publicado na Science em 1968.

Felizmente, outras teorias sobre o comportamento humano e constatações empíricas de pesquisas recentes têm contribuído para uma avaliação menos pessimista dos atores (Ostrom, 1990 e 2002; Ostrom et al., 2002), sem abandonar o pressuposto de que eles tomam decisões sobre o uso dos recursos naturais (ainda que nem sempre de forma racional), isto é, agem avaliando custos e benefícios, levando em conta seus valores culturais, bem como os incentivos e restrições traduzidos em instituições, compreendidas como regras formais e informais, aquilo que pode e que não pode ser feito, e que é reconhecido e compartilhado pelos atores em uma situação determinada de interação e num contexto sociocultural específico.

Como mencionamos na seção anterior, abordagens baseadas nos fundamentos da nova economia institucional dos custos de transação, tendem a definir a governança, em geral, como regras que dispõem sobre a alocação e controle de direitos de propriedade. No caso da governança ambiental regras acerca do controle e usufruto de um determinado patrimônio natural.17 As diversas categorias de unidades de conservação (UCs) e áreas protegidas, por exemplo, definem os objetivos, as funções e os usos previstos compreendidos nas duas macrocategorias proteção integral e uso sustentável. A criação e implementação de UCs num determinado território, ao atuar sobre os custos de transação, baliza o que pode e o que não pode ser feito e funciona como estímulo ou desincentivo para os atores locais investirem ou não os seus recursos, calcularem o retorno dos seus investimentos no curto, médio ou longo prazo, e, por decorrência, influenciam a forma como eles se relacionam com os recursos naturais existentes no território. Dessa perspectiva, as estruturas de governança ambiental dizem respeito basicamente às regras de interação entre os atores participantes num determinado território (e destes com os recursos disponíveis), e incluem vários arranjos existentes ou passíveis de existir numa determinada localidade, o conjunto de instituições, órgãos e atores, públicos e privados. Por vezes se considera todo o conjunto de instituições que compõem o sistema estadual do meio ambiente, por exemplo, como uma “estrutura de

17Daniel Bromley & Michael Cernea (1989), por meio do esclarecimento sobre os conceitos de “regimes de recursos” e de “regimes de propriedade comum” no que tange ao gerenciamento de recursos naturais, discutem de forma acurada a ideia de propriedade não como um objeto, tal como um imóvel, mas como “um direito a um fluxo de benefícios que é garantido pelo dever de todos os beneficiários de um determinado grupo em respeitar as condições que protegem aquele fluxo” (p. 5-25). Segundo os autores, é fundamental diferenciar esses regimes de propriedade da ideia de “open acess” or “free-for-all”, tal como eles vinham sendo mal interpretados até então.

governança”; por vezes, uma única UC pode ser tratada como uma estrutura de governança.

Considera-se também a hipótese de haver complementaridade institucional entre diferentes estruturas de governança (Bonfim, 2007).

O quadro conceitual da IAD (Análise e Desenvolvimento Institucional), desenvolvido por Elinor Ostrom e colaboradores, é bastante ambicioso, e pretende explicar o comportamento humano, nas mais diversas situações de interação entre os seres humanos, através de uma moldura teórica que combina e tenta unificar diferentes teorias, tais como as da escolha racional, da ação coletiva, da propriedade comum e do capital social. Originalmente concebido como um framework sobre regimes de governança de recursos naturais de acesso comum (os common pool resources), o modelo vem sendo ampliado, sempre apoiado em pesquisas empíricas ao redor do globo.

Neste modelo, as regras compartilhadas pelos atores, e que regem a interação entre eles, desempenham um papel central. Elas são responsáveis por estruturar uma arena de ação ao ordenar os relacionamentos entre os participantes, definindo as posições dos atores e a virtualidade e a atualidade das ações, de forma a obter algum controle prévio e previsível sobre os resultados. Para os analistas institucionais, as arenas (ou situações) de ação representam o foco da análise. Nessas arenas, que também são influenciadas por outras variáveis exógenas, tais como as “condições biofísicas e materiais” e os “atributos da comunidade”, os atores se defrontam com dilemas sociais e tomam decisões em situações de incerteza, lançando mão das habilidades de cálculo limitadas e disponíveis nessas condições.

Compreender os processos de governança implica perguntar onde se originam as regras usadas pelos indivíduos em situação de interação. Os arranjos de governança não são únicos e não se aplicam indistintamente a todas as situações. Eles variam em função dos fluxos de custos e benefícios dos sistemas de recursos que estão sendo regulados, que, por sua vez, afetam mais de uma comunidade, simultaneamente, em diferentes escalas. É importante, afirmam os autores, investir na construção de “instituições aninhadas” (nested institutions), que ao mesmo tempo protegem os interesses de uma comunidade mais ampla e estabelece regulações mais flexíveis para comunidades menores que dependem diretamente do recurso (Ostrom, 1997; 2005).

O modelo faz distinção entre regras (compreendidas como ações requeridas, permitidas ou proibidas, sujeitas a monitoramento e sanção), normas (preceitos morais válidos numa determinada comunidade) e estratégias (planos de ação empregados pelos atores). O modelo assume ainda que, dada a natureza linguística das regras, os atores interpretam-nas e as

manipulam todo o tempo, segundo avaliações que fazem da maneira como agem os demais atores com quem se relacionam. No entanto, o modelo também prevê que as instituições, compreendidas como as regras do jogo, podem ser aperfeiçoadas para gerar confiança e reciprocidade, tal como a reputação usualmente regula as relações entre as pessoas em pequenas comunidades. Acredita-se, assim, que, é possível promover a cooperação e engajamento de indivíduos em ações voluntárias que geram bens públicos, e que os usuários de recursos comuns, por exemplo, têm disposição e capacidade para se auto-organizarem de maneira a proteger esses recursos da superexploração e destruição.

Se essas constatações são bastante alvissareiras, as pesquisas também demonstram que há certas condições, certos requisitos, sejam do recurso em questão, sejam dos usuários, que contribuem para criar um contexto mais ou menos favorável à organização dos indivíduos para a proteção dos

recursos naturais: “Os atributos dos recursos dizem respeito a seu tamanho, sua previsibilidade, a

presença de indicadores confiáveis e a existência de prejuízos reparáveis para o recurso. Os atributos dos usuários dizem respeito a sua dependência do recurso, seus horizontes de tempo, a confiança estabelecida entre si, sua experiência organizacional e a distribuição de interesses

dentro de uma comunidade” (Van Wey et al., 2009: 65-6).

O modelo teórico desses autores prevê que esses atributos interagem de maneira complexa, influenciando a maneira como cada um dos usuários dos recursos realiza cálculos de custo/benefício, comparando os “benefícios líquidos esperados para os casos de manter as

regras velhas com os benefícios que ele espera obter sob o novo conjunto de regras”, estimando três tipos de custos: “1) os custos iniciais de tempo e esforço para esboçar e

acordar as novas regras; 2) os custos de curto prazo de adotar novas estratégias de apropriação; e 3) os custos de longo prazo de monitoramento e manutenção de um sistema autogovernado” (Van Wey et al., 2009, p. 66).

Se os custos excederem os incentivos para a mudança é bem provável que ninguém investirá tempo e recursos próprios para criar novas instituições. Na realidade, o que é benefício para alguns pode ser percebido como prejuízo líquido para outros. Por isso é importante atentar para as regras de escolha coletiva adotadas de modo a garantir o sucesso das mudanças institucionais, que tendem a ser apoiadas por uns e objetadas por outros. Consensos em torno de certos temas e práticas favorecem o estabelecimento de coalizões. A adoção de novas regras depende de que uma dada coalizão saia vencedora, isto é, que os seus participantes vislumbrem um resultado positivo no balanço entre benefícios e custos esperados.

Além disso, há o papel desempenhado pela cultura, que molda os comportamentos dos indivíduos levando-os a tomar decisões nem sempre racionais. Segundo os autores: “A cultura

tanto reforça o comportamento irracional como limita a lista de opções de comportamento”.

Os atores desenvolvem percepções dos demais participantes dessas arenas de ação, e desenvolvem atitudes que afetam a maneira como se relacionam e sua propensão ao risco.

Além disso, os atores tendem a utilizar “formas de organização que lhes são familiares (em

vez de formas que necessariamente sejam as mais eficientes) para estruturar novas

organizações” (Van Wey et al., 2009, p. 67).

O quadro conceitual esboçado muito resumidamente acima foi elaborado tendo em vista a diversidade de situações e contextos existentes nos diversos pontos do globo no que tange à promoção e regulação da ação coletiva no terreno da governança ambiental. Evidentemente, como mencionamos, cada situação específica requer a consideração de variáveis de diversa índole, fatores que interagem de forma complexa e que afetam a decisão dos atores, tais como a cultura, as características ambientais locais, os ambientes socioeconômicos e políticos do país e da localidade, entre outros. A vantagem dessa abordagem é não considerar as atitudes

favoráveis em direção a valores tais como “justiça”, “democracia” e “equidade” como uma

característica inata dos atores, mas como uma variável que depende de vários fatores conjugados; isto é, as pessoas não são naturalmente democráticas, justas, ou preocupadas com a distribuição equânime dos benefícios, mas são orientadas a vivenciar situações e desenvolver disposições num ambiente mais favorável ao gerenciamento dos conflitos e à garantia da manutenção e acesso a um recurso natural que as leve a considerar as vantagens em ser justo, democrático e equânime.18

No discurso proferido por ocasião do recebimento do Nobel de Economia em 2009 – Beyond Markets and States –, Elinor Ostrom faz um balanço de sua trajetória intelectual e discute o

conceito de “governança policêntrica”, destacando a importância de temas como a confiança,

18 Roberta B. Sabbagh (2012), no seu mestrado defendido aqui nesta instituição, na nossa linha de pesquisa, apresenta uma boa discussão do debate entre as abordagens derivadas da nova economia institucional no que tange aos common-pool resources. A autora discute os “oito princípios que favorecem uma ação coletiva para a utilização de recursos de acesso comum, propostos por Elinor Ostrom”, à luz de dois estudos de caso de ocupação ilegal para residência em áreas hiperrestritas dentro do Parque Estadual da Serra do Mar (Cota 400 e Água Fria, no município de Cubatão, verdadeiros núcleos habitacionais que se formaram e consolidaram ao longo de décadas de descaso por parte do poder público) e do Programa de Recuperação Socioambiental da Serra do Mar, iniciado em 2007, de realocação dessas famílias que habitam irregularmente áreas de risco e de preservação ambiental, conduzido pelo governo do estado de São Paulo. Curiosamente, a autora conclui que, em alguns casos, a intervenção do Estado é mesmo de fundamental importância, e que nem sempre a performance das instituições locais favorece a ação coletiva voltada para o controle e uso racional dos recursos naturais por parte das populações ditas tradicionais.

a reciprocidade e a reputação – aliás, um conjunto de valores fundadores, temas clássicos da antropologia que vêm sendo retomados e modelizados pela teoria da escolha racional em economia (Ostrom, 2010). A contar pelo título do seu discurso, a autora continua apostando na construção de um modelo de comportamento humano que credita boa parte de sua existência à capacidade de cooperação e organização autônoma da sociedade e ao papel que o contexto e a comunicação desempenham na formatação da complexa estrutura motivacional dos seres humanos para a solução de dilemas sociais, tais como o gerenciamento dos bens de acesso comum, sejam eles naturais ou culturais, e, mais amplamente, dos arranjos de governança adotados em diferentes territórios. Vejamos abaixo qual o atual estado da arte desses arranjos para o nosso caso particular.