• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO III – CONSTRUINDO A LEI DO PISO: contradições e desafios

2.4 O governo federal rompe o Acordo

A assinatura do primeiro mandatário da nação, contudo, não representou um compromisso permanente do Estado brasileiro. Em outubro de 1994, o candidato a presidente da República Fernando Henrique Cardoso (PSDB/PFL/PTB) venceu o candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT/PSB/PCdoB/PSTU/PCB/PPS). A inexpressiva votação de Orestes Quércia (PMDB), Leonel Brizola (PDT) e Espiridião Amin (PPR) e outros candidatos de partidos menores daria a Fernando Henrique a vitória já no 1º turno das eleições. O resultado foi recebido com apreensão pelos trabalhadores organizados na CNTE e na Central Única dos Trabalhadores (CUT) que, massivamente, haviam se manifestado favoráveis ao projeto representado pela candidatura Lula. Não só isso: por meio das lideranças sindicais atuantes no PT, tinham logrado inserir a proposta de Piso no programa de governo.

Mesmo com essa preocupação, a CNTE solicitou audiência ao novo ministro da educação, professor Paulo Renato Souza. O ministro havia sido secretário de educação do estado de São Paulo, onde a relação institucional com o movimento se dera com poucos conflitos. Ao receber a Confederação, em fevereiro de 1995, solicitou um tempo para inteirar- se das discussões ocorridas no Acordo e no Pacto. Porém, não se comprometeu com o Piso, que deveria ser implantado no dia do professor, em 15 de outubro de 1995. A CNTE pressionou os demais integrantes do Fórum Permanente do Magistério e Qualidade da Educação, porém somente logrou a convocação de uma reunião no mês de junho daquele ano. A eclosão de greves em uma dezena de estados tornou propício o encontro, pois, na visão dos secretários de educação, a possibilidade de instituição do Piso daria resposta satisfatória às demandas salariais.

O governo manteve um calendário que incluía a reunião do dia 5 de junho e uma plenária do Fórum dias 27 e 28 de setembro. Nesse ínterim, seria realizado um seminário que avaliaria estudos realizados em grupos temáticos, com vários enfoques, sobre valorização profissional e qualidade da educação. Entretanto, o governo participava do Fórum já imbuído

do propósito de transformar o conceito de Piso em valor médio de salário. Essa ideia estava embutida em outra, que se concretizaria pela Emenda Constitucional nº 14, de 1996, e pela legislação que instituiu o Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef): um incremento na média salarial dos professores dos municípios e dos estados mais pobres da federação.

Ao aproximar-se a data prevista para a vigência do Piso, as evidências eram cada vez mais fortes no sentido de que a gestão de Fernando Henrique Cardoso se orientava por outra lógica. Em 13 de outubro de 1995, o MEC apresentou, na reunião do Fórum, um plano que, além de focar a atuação de estados e municípios no ensino fundamental, em detrimento da educação infantil e do ensino médio, restringia a participação da União no financiamento da educação básica. A CNTE, então, denunciou a ação do governo como de rompimento unilateral do Acordo e do Pacto e expôs os motivos aos integrantes do Fórum:

Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação Ao Fórum de Valorização do Magistério da Educação Básica

Constituído com a finalidade de dar conseqüência aos termos do Acordo Nacional de Educação para Todos, o Fórum Permanente de Valorização da Educação Básica representa um espaço democrático de discussão, legitimado pela representação de seus integrantes. Ao longo de vários meses, o Fórum discutiu formulações políticas e viabilidades técnicas no sentido de reverter o quadro caótico da educação – especialmente a básica – realizando exaustivo trabalho de pesquisa e de análise da realidade educacional brasileira.

Paralelamente, foram instalados Colegiados estaduais, onde entidades governamentais realizam a discussão, partindo de dois eixos básicos: o estabelecimento de Carreira e de Piso Salarial Profissional Nacional (PSPN) – vinculados a indicadores de qualidade – como pressupostos para a melhoria da educação na perspectiva da construção da cidadania.

Todo este esforço foi comprometido pelo projeto elaborado pelo Governo (Plano de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) que descaracteriza os principais pontos pactuados e desresponsabiliza a União dos encargos da educação básica, inclusive os constitucionais.

A CNTE, que participou do Fórum credenciada como representante de uma base se dois milhões de trabalhadores em educação e comprometida, perante a mesma, com a defesa intransigente da valorização profissional – através da Carreira Nacional de do PSPN – tem a responsabilidade ética e política de denunciar, publicamente, o rompimento do Acordo Nacional pelo MEC.

Ao mesmo tempo, reitera sua disposição de, juntamente com os demais integrantes do Fórum, desenvolver um grande esforço no sentido de reafirmar e de viabilizar os termos do Acordo, na busca de uma educação compromissada com a sociedade brasileira.

Brasília, 13 de outubro de 1995

O então presidente da CNTE se tornaria, posteriormente, deputado federal e, nessa condição, foi entrevistado pela autora, em 2008, para opinar sobre o a Lei nº 11.738/08. Na entrevista, Abicalil (PT/MT) mencionou o Acordo, esclarecendo que o mesmo fora “o resultado de mais de um ano de mobilização [porém] o governo que lhe sucedeu, com base no voto popular, mas, com uma orientação distinta [...] caminhou exatamente na direção avessa” (D-1).

A reapresentação da proposta de Piso ao governo, ao parlamento e à sociedade brasileira só seria possível uma década depois, tendo em vista a combinação de vários fatores. O primeiro deles foi a frustração da categoria, pois a CNTE havia envolvido lideranças de todo o país durante todo o processo de formulação da proposta. A decepção foi acompanhada de descrédito em relação a governos e ao poder legislativo. O segundo motivo foi o condicionamento dos estados e municípios à lógica do Fundef. Depois de instituído o Fundo, estados e municípios ficaram presos ao artigo que destinava 60% dos recursos ao pagamento de professores. Mesmo tendo a liberdade de gastar os outros 40% não contingenciados, a maior parte se restringiu aos recursos do Fundef, fator que nivelou salários a partir dos mais baixos.

A política de financiamento por meio da constituição de fundos se revelaria fundamental, anos depois, para a nova discussão sobre o PSPN. Quando o Fundef perdeu a validade – porque seu prazo de vigência era limitado –, tanto o governo federal quanto o movimento social entenderam que era o momento de dar um passo adiante. Foi, assim, possível recuperar a proposta de um fundo para toda a educação básica, o Fundeb, presente nas formulações da CNTE antes da instituição do Fundef. Por contar com esse novo fundo, prefeitos e governadores se mostraram mais receptivos à proposta do Piso Salarial Profissional Nacional para o magistério público da educação básica.

Houve, ainda, naquela conjuntura, uma razão política de grande impacto, representada pela reeleição de Fernando Henrique Cardoso, em 1998. Exercendo o mandato ao longo de oito anos, o governo pôde concretizar as políticas a que se dispusera desde o início. O governo rompeu com a lógica da social-democracia (orientação doutrinária do partido do presidente da república, o PSDB) e adotou um programa muito mais identificado com o ideário do PFL (depois DEM), seu parceiro estratégico. Esse programa se caracterizou pelo incentivo à privatização do ensino técnico e tecnológico, pela expansão das vagas privadas nas universidades, pela focalização dos programas de educação e pela priorização do ensino fundamental (o que não seria problema, se isso não ocorresse em detrimento da atenção ao ensino médio e à educação infantil). Porém, apesar das restrições feitas pelo

movimento sindical, as políticas de educação do Governo Fernando Henrique obtiveram o apoio de outras esferas da administração e de influentes setores da mídia brasileira.

A construção de outra proposta, portanto, teria que ser feita em outros patamares. Impunha-se, como ponto de partida, a rearticulação do diálogo entre o movimento, o governo e o parlamento brasileiro. Em termos estruturais, tornava-se imprescindível a superação do Fundef, por meio de um mecanismo mais amplo de distribuição de recursos e de responsabilidades entre os entes federados. Por último, havia a necessidade de mudança de direção das políticas públicas, envolvendo o financiamento e a cooperação entre os entes federados.

3 O PERCURSO DA LEI Nº 11.738/08