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2. BRASIL, DAS REFORMAS NEOLIBERAIS AO GOLPE DE ESTADO (1989-

2.1. Os governos de Lula da Silva

Luiz Inácio "Lula" da Silva, eleito presidente do Brasil em outubro de 2002, destacava-se no cenário político brasileiro desde as greves dos metalúrgicos do ABC paulista na década de 1970, no qual a construção do Partido dos Trabalhadores (PT) converteu-se no principal condutor político de um amplo movimento que congregava sindicatos urbanos e movimentos rurais, membros de Comissões Eclesiais de Base e Pastorais impulsionadas por setores da Igreja Católica, bem como intelectuais e militantes oriundos de diversas matrizes ideológicas no campo do pensamento de esquerda.28

Lula já tinha concorrido à presidência em 1989, quando havia um nítido crescimento da capacidade de luta da classe trabalhadora, e não saiu vitorioso por pouca diferença com seu adversário. Lincoln Secco (2018) faz uma síntese precisa do período histórico em que a liderança de Lula se converte em verdadeira metassíntese política de um amplo processo de retomada e reorganização popular e unidade das forças de esquerda.

No decênio 1978-1992, a liderança de Lula se construiu ao lado da CUT, MST e PT. O início foi uma onda de greves, recessão e desemprego. O final foi a interferência eleitoral que a Rede Globo perpetrou contra a sua candidatura e uma nova recessão. As greves tinham atingido o cume, mas a esquerda estava sob o impacto internacional da queda do muro de Berlim. Lula soube liderar a Revolução Democrática das "Diretas Já", da Assembleia Constituinte e da eleição de 1989. Mas aquela "revolução dentro da ordem" estancou no quadro das reformas e não transitou à "revolução contra a ordem", para retomar os termos de Florestan Fernandes. Assim, nos anos 1990 o sentido se inverteu. A luta social refluiu, mas o PT cresceu nas instituições. (SECCO, 2018, p.71)

Sobre o mencionado refluxo da luta social na década de 1990, vale pontura que um parâmetro que pode ser utilizado para avaliar a capacidade de luta e organização das classes trabalhadoras é o índice da quantidade de greves no Brasil, que vem sendo apurados pelo DIEESE29 desde a década de 1980. Os dados afirmam que no

28 Os filmes "ABC da Greve", de Leon Hirzman (1990), e "Peões", de Eduardo Coutinho

(2004), contém diversas imagens e discursos interessantes da época.

29 O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) é uma

período de agosto de 1988 foram registradas 292 paralisações em todo o país, e no mesmo período de 1989 o número de ocorrências ascendeu a 1.389, na esfera privada. Já nos anos seguintes, esses índices apontam uma queda que se intensifica a partir de 1995, sendo que em 2002 foram registrados apenas 298 movimentos grevistas, tida como a marca mais baixa da primeira década dos anos 2000.30 Nesse

sentido, podemos afirmar que Lula foi eleito em 2002 no auge do descenso da luta da classe trabalhadora.

Foi neste contexto que André Singer (2017, p. 21) localiza a eleição de Lula e do PT em 2002, em aliança com um partido de centro-direita (que indicou o empresário José de Alencar como vice-presidente) e com a assinatura da Carta aos brasileiros (como um compromisso de garantias ao capital). Segundo Singer:

Ainda em 2002, [...] Lula tinha menos intenção de voto entre os eleitores de renda mais baixa do que entre os de renda superior. Wendy Hunter e Timothy Power notaram que ‘no núcleo de apoio recebido por Lula nas suas quatro tentativas prévias de chegar à presidência, ocorridas entre 1989 e 2002, encontravam-se os eleitores com maior nível de escolaridade, concentrados principalmente nos estados mais urbanos e industriais do Sul e do Sudeste. Em suma, a base social de Lula e do PT expressavam as características da esquerda em sociedade cuja metade mais pobre pendia para a direita’. (SINGER, 2017, p. 21).

Todavia, não há dúvidas de que a vitória de Lula em 2002 foi um fato de imensa proporção histórica, tal como diz Aldo Fornazieri (2018, p. 23),

Na história do Brasil, o poder político e suas formas constitucionais e jurídicas sempre foram produto do trabalho usurpador das elites econômicas e políticas e expressão de seus interesses. Em nenhum momento dos processos fundantes desse poder o povo foi partícipe enquanto sujeito e sempre teve seus interesses e direitos excluídos dos arranjos legais e constitucionais que se efetivaram ao longo do tempo.

No início do primeiro mandato de Lula, as margens políticas de governabilidade eram bem estreitas, pois, junto à base eleitoral de apoio mencionada acima, se somaram: à ausência de maioria parlamentar no Congresso Nacional; e uma

pesquisas que subsidiem as demandas dos trabalhadores. Na sua página web é possível acessar o balanço de greves anuais desde a década de 1980 em diante. Disponível em: https://www.dieese.org.br/sitio/buscaDirigida?itemBusca=&comboBuscaDirigida=TIPO%7C1 352135159121 Acesso em: 29 set. 2019.

30 Uma vitória eleitoral num período de demissões e fechamento de empresas em que a

liderança de Lula ainda não estava assentada no subproletariado e nas parcelas populares de baixa renda.

legislação que protegia as principais regras do neoliberalismo, entre elas a manutenção da política macroeconômica sob o tripé metas de inflação, câmbio flutuante, e superávit fiscal.

Leda Paulani (2006) destaca três elementos fundamentais a respeito da política econômica no primeiro mandato: elevação do superávit primário, para além do exigido pelo FMI (de 3,75 para 4,25% do PIB); um aumento da taxa básica de juros (de 22 para 26,5% ao ano); e um brutal corte de liquidez, através do aumento do compulsório dos bancos.

Por isso, Armando Boito (2018) afirma que Lula promoveu a ascensão política da grande burguesia interna brasileira31 no interior do bloco no poder, sem romper

com a hegemonia do capital financeiro internacional.

Contudo, o principal é que, a partir do primeiro governo Lula, foi gradativamente se conformando uma frente política em defesa do crescimento econômico e da renda no Brasil, que reuniu classes sociais e frações de classe muito heterogêneas e assegurou a sustentação dos governos petistas por um longo período. Concordamos com Armando Boito Jr. (2018), que caracteriza o programa dessa frente política como neodesenvolvimentista, que em outras palavras significa dizer que é o desenvolvimentismo possível para um governo que não pode e não quis romper com o modelo capitalista neoliberal.

Nesse sentido, muitos autores afirmam que no primeiro mandato de Lula se praticou uma política econômica neoliberal de caráter ortodoxo, no âmbito macroeconômico, e que ainda houve um aprofundamento do processo de financeirização da economia brasileira (BOITO JR., 2007; FILGUEIRAS, 2006; PAULANI, 2006, 2012).

Por outro lado, André Singer (2018) afirma que quando Lula ganhou em 2002 percebeu uma janela de oportunidade para o reformismo fraco e aproveitou a brecha de maneira efetiva. Neste sentido, o autor ressalta as diversas conquistas democráticas e populares que ocorreram ao longo dos governos petistas, que incidiram fortemente na maioria da população, sobretudo das faixas menores de

31 Não podemos perder de vista que a fração chamada grande burguesia interna é

extremamente heterogênea, permanentemente atravessada de contradições. O setor industrial tem conflito com o capital bancário nacional, especialmente na questão da taxa de juros e as grandes empresas rivalizam com as empresas de médio e pequeno porte, disputando financiamento subsidiado do BNDES, apenas para citar os conflitos mais evidentes (BOITO JR, 2018).

renda:

Aumentou o valor real do salário mínimo, gerou milhões de empregos, criou o Bolsa Família, o crédito consignado, a Farmácia Popular, a extensão do Benefício da Prestação Continuada (BPC), o Programa Universidade para Todos (Prouni), o Minha Casa Minha Vida (MCMV), promoveu a ampliação do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), a construção de cisternas no semiárido, o reconhecimento dos territórios quilombolas e o incentivo à agricultura familiar, entre outras coisas. Embora mais de 90% dos empregos criados fossem de baixa remuneração, a renda média do trabalho se elevou em cerca de um terço entre 2003 e 2014, também graças a acordos coletivos vantajosos aos trabalhadores (SINGER, 2018, p. 24 e 25).

Dessa forma, um contingente que estava excluído da sociedade ingressou no mercado competitivo na condição de trabalhadores e consumidores. Isso ocorre por uma somatória de fatores, dentre eles destacamos o papel central da política de reajuste do salário mínimo num período em que se combinaram o crescimento econômico e a baixa inflação, possibilitando a recuperação do salário médio real, a partir de 2004, o que impactou positivamente a redução da histórica desigualdade social brasileira. A relação do salário médio com o salário mínimo caiu de 4,5 para 3 vezes no período, ao mesmo tempo em que o coeficiente de Gini reduziu de 0,59 em 2002 para 0,54 em 2009 (GEBRIM, 2017b).32

Neste contexto, além da recuperação da capacidade da luta sindical perdida na década de 1990, houve mais conquistas para as classes trabalhadoras. Segundo Armando Boito Jr (2018, p. 31),

em 2003, ocorreram 312 greves e 18% das convenções coletivas e dos acordos assinados entre trabalhadores e patrões estabeleceram um reajuste maior que a inflação passada. Ou seja, 82% dos trabalhadores e patrões permaneceram com salários congelados ou tiveram seus ganhos diminuídos. Após um crescimento contínuo desses dois indicadores, chegou-se no ano de 2013 ao total de 2150 greves, um recorde histórico no Brasil, e ao impressionante escore de 95% das convenções coletivas e dos acordos assinados com reajuste acima da inflação passada.

Embora tenha criado em seu governo as Parcerias Público-Privada (PPPs), em 2004, possibilitando a cessão de atividades estatais ao setor privado, o governo Lula mudou a política de compras do Estado e das estatais brasileiras, priorizando grandes

32 Além disso, os funcionários públicos voltaram a ter reajustes e até aumentos reais. Após o

prolongado período de congelamento durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, os concursos públicos foram reativados e o sistema de universidade federal se expandiu abrindo mais vagas para os estudantes e para os jovens docentes.

empresas nacionais, como no emblemático caso da indústria naval, que vende à Petrobras, gerando empregos e propiciando o desenvolvimento de tecnologia.

Por sua vez, na política externa dos governos Lula tiveram destaque: a integração regional da América Latina – que avançou através de múltiplas iniciativas, já mencionadas no capítulo anterior; e o papel ativo do Brasil na articulação dos BRICS, que se revelou uma movimentação geopolítica de grande envergadura na história do país, elevando as tensões com os EUA a um novo patamar.33 Esses dois

movimentos foram acompanhados pela evolução de uma política nacional de defesa. Por fim, destacamos a criação do marco regulatório do petróleo, ocorrida durante o governo de Lula, pois aquela foi a principal medida política que tocou na questão da propriedade e assegurou a soberania sobre as recém descobertas riquezas do pré-sal.34 Como aponta Bercovici (2017, p. 188), "a partir da descoberta

do pré-sal, a mesma argumentação utilizada durante a ‘campanha do petróleo’, na década de 50, foi acionada novamente contra a proposta de garantir uma maior presença do Estado no setor petrolífero".

O presidente Lula encerra o seu segundo mandato em 2010 com 87% de aprovação popular. O ciclo petista se mostrava sólido e com longa perspectiva de duração.