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Gramaticalização e o verbo PODER: hipótese explicativa

2.1 ASPECTOS TEÓRICOS

2.1.2. Sob o Olhar dos Estudos Linguísticos

2.1.2.6 Gramaticalização e o verbo PODER: hipótese explicativa

Saussure ([1916] 2000) recomenda a distinção criteriosa do que se deve considerar numa análise linguística pela noção de sincronia e diacronia no tocante às variações e centra sua atenção na sincronia. A GRAMATICALIZAÇÃO, definida por Ilari e Basso (2007, p. 153) como "o processo pelo qual uma palavra de sentido pleno assume funções gramaticais", é uma das variações que se localizam em uma verificação diacrônica, ou sincrônica, a depender do fenômeno analisado e dos objetivos a que se presta essa análise.

Voltando ao que se discutiu no tópico anterior, esse fenômeno refere-se a uma palavra que se localizava no nível lexical – de sentido pleno, pois remete a um referente no exterior linguístico – e que passa a desempenhar papel apenas de estruturação dos elementos lexicais de uma língua. A noção de sentido pleno, aqui apresentada, se refere à propriedade de funcionamento de um termo sem a dependência de outro de mesmo nível de funcionamento morfo-sintático, possuindo, portanto, relativa autonomia dentro sistema linguístico. Além disso, não se constitui elemento sufixal ou prefixal de outra palavra; ao contrário, agrega esse tipo de elemento em sua estrutura para o funcionamento das flexões pretendidas pelo usuário, a saber: gênero, número e grau; tempo modo e pessoa.

O sentido não pleno, por isso gramatical, se refere à ausência dessa propriedade em um elemento linguístico para se situar de forma autônoma. Dessa forma, é usado na língua para uma subcategorização ou não e/ou flexão dos elementos que gozam de autonomia. No caso do verbo, a propriedade de predicação especifica o seu funcionamento pleno (147), ou seja, residem na sua estrutura o sentido e as flexões de modo, pessoa e tempo, sem que essas informações flexionais ocorram em um verbo auxiliar (148) que o acompanhe no enunciado:

147. Ninguém vai (Vaux.) bulir (Vp) com Baleia. (Vidas Secas, de G. Ramos)

148. A caatinga estendia-se (V. Pleno) de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossos. (Vidas Secas, de G. Ramos)

Quando ao verbo falta essa propriedade, como é o caso dos verbos chamados de auxiliares, tem-se o seu funcionamento não pleno, pois servem para indicar flexão de um verbo principal (auxiliado) no qual reside o sentido verbal da oração. Nessa categoria se enquadram não apenas os canônicos verbos SER/ESTAR; TER/HAVER, mas também os que se configuram como acurativos (149) ou modais (150), como discutido no subtópico 2.1.1.3 deste trabalho:

149. Costumava chegar cedo à fila da merenda.

Nesse caso, o verbo em questão não atribui sentido lexical à oração, servindo-lhe apenas como suporte para sua estruturação frásica. Como explica Gonçalves et al (2007b):

O que era verbo pleno seguido por um complemento nominal ou nominalizado na construção-fonte passa a ser um marcador gramatical, seguido por um verbo principal, na estrutura auxiliar resultante. Portanto, o desenvolvimento lexical de auxiliares envolve uma mudança morfossintática pela qual uma construção lexical se desenvolve numa construção gramatical. (GONÇALVES et al, 2007b, p. 118)

Ainda Gonçalves & Carvalho (2007, p. 70), citando Lehmann ([1982] 1995), adota a sua definição de gramaticalização: "um processo que transforma lexemas em formativos gramaticais e formativos gramaticais em mais gramaticais ainda".

Isso mostra que existem graus de gramaticalização: Nesse sentido, há palavras que antes detinham todas as características de flexão e indicação de lexicalidade, por exemplo, e as perdem inicialmente em parte e depois completamente.

Dessa forma, um elemento pode ser localizado como mais ou menos gramatical, a depender do afastamento que sofreu do seu léxico. Essa disposição indica um processo de ocorrência desse fenômeno. Por isso, a gramaticalização é, portanto, um processo de mudança linguística já verificado com diversos verbos do Português Brasileiro, os verbos PASSAR e DEIXAR são exemplos desses e que foram estudados por Travaglia (2007).

151. De repente, ele passou a vestir-se melhor.

A maioria das ocorrências dos verbos PODER e DEVER em situação de auxiliaridade selecionados para essa tese ocorreu em estrutura de forma a indicar sua gramaticalização, como chama atenção OLIVEIRA (2008, p. 40), com base em Bolinger (1980,

apud Heine, 1993, p. 27): o fato de que "a partir do momento em que uma forma verbal

tenha como complemento um infinitivo, já se caracteriza um contexto amplamente favorável à gramaticalização".

Essa hipótese se confirma nos dados levantados para este trabalho: todos os usos do verbo PODER se deram mais à esquerda de um verbo no infinitivo, selecionador de um argumento interno, não flexionado (Quadro 05, na seção 2.2). A indicação de pessoa, número, tempo e modo que ocorreram nas sentenças cujo verbo PODER se fez presente foi desempenhada por esse verbo, tido tradicionalmente como auxiliar modal. Este é um dos pontos centrais de discussão desta tese, como já foi indicado antes.

É justamente seguindo essa linha de raciocínio que se põe o verbo PODER como foco deste estudo. O fato de esse verbo se esvaziar de seu sentido pleno e assumir função meramente auxiliar (modal?) no Português do Brasil. Nesse sentido, é intenção também discutir se esse comportamento de gramaticalização se desenvolveu em uso no Brasil ou se já foi trazido do Português Europeu. Sobre isso já se encontram alusões em Vitral (2006), citando PONTES, 1973; PERINI, 1977; VITRAL, 1987; LIGHTFOOT, 1979:

No caso desses verbos [auxiliares modais], não há, de forma produtiva, redução fônica dos itens – com exceção da forma /pò/, redução de /pòdi –, mas, no entanto, suspeitamos de gramaticalização em curso devido à existência, na literatura, de um debate acerca do estatuto desses verbos modais, ou seja, tratar- se-ia de verbos auxiliares ou de verbos lexicais (VITRAL, 2006, p. 151).

Dessa forma, indica-se também que se trata de uma ocorrência talvez recente, ou, pelo menos, o despertar para um olhar mais atento à estrutura sintática do verbo

PODER. Apesar dessa alusão, não se encontrou, no momento, uma investigação que comprovasse a gramaticalização desse verbo em menor ou maior grau, apenas algumas indicações desse movimento, como em Gonçalves; Lima-Hernandes; Casseb-Galvão (2007) e Vitral & Coelho (2010).

Essa comprovação teria um sentido fundamental na constituição de argumento para esta pesquisa, que vê outro aspecto do verbo PODER com carência de investigação, no sentido de sua categorização enquanto verbo modal, ou ainda uma subdivisão no quadro dos verbos modais31.

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