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Transitividade e intransitividade verbais

2.1 ASPECTOS TEÓRICOS

2.1.1 Sob o Olhar da Tradição Gramatical (TGr)

2.1.1.2 Transitividade e intransitividade verbais

Ao selecionar um objeto, seja direto ou indireto, o verbo caracteriza-se (BECHARA, 1999) como de função transitiva, ou de uso transitivo (89) e (90); ao contrário daqueles que não exigem complemento em forma de objetos. Por conseguinte, caracterizam-se como intransitivos; mas que, mesmo assim, é possível que ocorram em uso como de função transitiva, como em (91) e (92)17:

17

Novamente, é importante mencionar o fato de que a visão aqui é da TGr. No âmbito da TG, há objetos nulos (categorias vazias) para os verbos como COMER e FUMAR saturados no léxico (RAPOSO, 1992, p. 345).

89. O estudante bateu na mesa. Sujeito: o estudante

Verbo transitivo: bateu Objeto: na mesa

90. A paciente não tomou o remédio. Sujeito: a paciente

Verbo transitivo: tomou Objeto direto: o remédio

91. Comeu toda a minha comida. Sujeito: Ø

Verbo: comeu

Objeto: toda a minha comida

92. Robson ainda hoje não comeu. Sujeito: Robson

Objeto: Ø

Com base no que postulam no âmbito da tradição gramatical Bechara (1999); Cunha (1975) e Azeredo (2008), adoto a noção de que é critério para que um verbo seja classificado como intransitivo o fato de a ação designada lexicalmente por ele recair apenas

sobre o seu sujeito (93)18. Enquanto transitivo é aquele em que a ação recai sobre um segundo elemento que não é o seu sujeito (94)19:

93. O menino caiu.

94. A menina pulou a etapa mais importante do curso.

Como se vê em (93), a carga semântica (experienciador) de caiu direciona-se ao próprio sujeito [o menino], não é transferida para um segundo elemento. Diferentemente, em (94), a ação pular não se direciona para o sujeito [a menina], mas é transferida para outro termo, o objeto direto [a etapa mais importante da sua vida].

O verbo transitivo não consegue deter em si mesmo um sentido completo, enquanto o intransitivo detém essa propriedade. A esses elementos exigidos para complementação do sentido de certos verbos aplica-se o termo complemento verbal (objeto)20.

O comportamento sintático de transitividade, segundo Cunha e Souza (2007, p. 25), “denota a transferência de uma atividade de um agente para um paciente”. Ou seja, nesse contexto, há um ser ao qual se atribui o uso de um verbo para prática de uma ação, descrição de um estado21 – o sujeito sintático –, que se finaliza em outro ser, o objeto.

No entanto, “um mesmo verbo pode ser usado transitiva e intransitivamente, principalmente quando o processo verbal tem aplicação muito vaga.” (SAID ALI, apud

18 Inacusativo, para a Teoria Gerativa. 19

Acusativo, para a Teoria Gerativa.

20 Argumentos internos para a Teoria Gerativa. Essa função é resultado da subcategorização que verbos desse tipo exercem sobre seus complementos, obedecendo ao princípio de Projeção, previsto no âmbito da GU; flexível a alguns verbos de línguas naturais como o Português.

CUNHA e SOUZA, 2007, p. 26). Por isso, a transitividade não é propriedade que cabe a todos os verbos e mesmo aos que lhe cabem, essa propriedade não se dá a todo o momento, como é o caso do verbo COMPRAR e FUMAR, em:

95. Meire comprou uma bolsa nova.

V. Trans. Objeto Direto

95.a. A minha mãe não compra muito.

V. Intrans.

96. Marcos fumou dois cigarros hoje.

V. Trans. Objeto Direto

96.a Marcos fumou muito.

V. Intrans.

Além disso, interessa marcar aqui o fato de que “a oposição entre transitivo e intransitivo não é absoluta, e mais pertence ao léxico do que à gramática.” (CUNHA e SOUZA, 2007, p. 26). Isso dá garantia de que o estudo aqui recortado pode se localizar em uma análise também no campo da Lexicologia, pois a atribuição de exigência de um objeto vai ser determinada pelas relações de sentido que se estabelecem entre a estrutura sintática e o externo da língua, o extralinguístico. Confirmando o que defende Azeredo (2008) e ao que fez o importante acréscimo:

... não há uma fronteira rígida entre verbos transitivos e verbos intransitivos; o que há é um contínuo, em cujos extremos se encontram o verbo que sempre recusa complemento (ex.: nascer) e o verbo que sempre seleciona complemento (ex.: fazer). (AZEREDO, 2008, p. 215)

Para Bechara (1999, p. 415), a transitividade verbal se dá devido à propriedade de alguns verbos necessitar de “delimitação semântica.” Para isso se confirmar, são apresentados os exemplos (97) e (98), recolhidos de Bechara (1999, p. 415):

97. (26) O porteiro viu o automóvel. (É possível que diversas coisas sejam vistas)

98. (27) Eles precisam de socorro. (É possível precisar de diversas coisas)

Ainda para Bechara (1999), esses verbos arrastam uma quase infinitude de complementos possíveis ao elocutor, daí a necessidade de o locutor selecionar no léxico a que objeto se refere. Diferentemente, segundo ele, se dá a propriedade intransitiva de verbos, que se referem a realidades bem concretas e, por isso, “não necessitam de outros signos léxicos,” como em

99. Ele não trabalha.

100. José acordou cedo.

No entanto, é permitido, pelo menos nos sistemas verbais de línguas naturais como o PB, o Inglês (80), o Espanhol e o Francês, que verbos significativos sejam esvaziados da sua função lexical e assumam as marcas de flexão de outros verbos com os quais se associam para formar uma “locução verbal” (CUNHA,1975, p. 371), ou uma sequência verbal (PONTES, 1973):

101. I need to speak English.

102. Quiero ganar um premio.

103. Je veux chanter.

Dentre esses estão os chamados modais, pois transitam entre o funcionamento pleno e auxiliar; além disso, indicam, de forma também geral, a determinação de “valor de verdade de proposições”, em seus sentidos deônticos e epistêmicos, como em (104) e (105):

.

104. Quem aprende a gostar de ler sabe escrever a própria história.

(Revista Isto É, n. 164, 2011, p.3) 105. Governo americano proíbe o uso de formol no alisamento dos cabelos, mas

apesar dos alertas, no Brasil a prática continua disseminada.

(Revista Isto É, n. 164, 2011, p.3)

E além deles os acurativos (106), que para Bechara (1999),

... se combinam com o infinitivo ou gerúndio do verbo principal para determinar com mais rigor aspectos do momento da ação verbal que não se acham bem definidos na divisão geral de tempo presente, passado e futuro.

(BECHARA,1999, p. 231)

106. Tinha acabado de sair quando fui atingido.

...não formam locução verbal, mas, muitas vezes, se comportam sintaticamente como tal, isto é, segundo as relações internas que se estabelecem dentro do grupo entre o infinitivo e os termos que o acompanham... (BECHARA, 1999, p. 233)

107. Carlos mandou fazer uma carta de despedida.

Essas proposições “são, pois, extensionalmente motivadas, por dizerem respeito à verdade de estados de coisas” (KOCH, 2002, p. 73), assumidas pelo falante e relacionadas à informação que o mesmo processa. Ou seja, existe aí um comprometimento de quem fala com a situação do que se diz, como defende Camara Jr. ([1970] 2004, p. 98). Isso pode ser verificado nos exemplos abaixo com o verbo DEVER.

No exemplo (108), o verbo “devem” está funcionando como auxiliar do verbo “lutar”, designando-lhe tempo, pessoa e modo, além de indicar uma realidade metafórica Camara Jr. ([1970] 2004, p. 98). Nesse caso, se esvazia de seu sentido real e lexical, desvinculando-se da noção de dívida e assumindo a noção de dever, de necessidade:

108. Os que almejam um cenário melhor para todos devem lutar para colocá-la a serviço da sua construção. (Folha de S. Paulo- TD, 08 de agosto de 2008)

Em (109) e (110), tem-se o verbo “dever” em uso de significação plena, no sentido de que nele reside tanto a informação lexical quanto a flexão verbal de pessoa, modo, número e tempo, sem a recorrência ao auxilio de um verbo que lhe assuma o sentido semântico:

110. Há pessoas, quando não conseguem se controlar, devem quantias absurdas a bancos, a cartões de créditos e a financeiras

Nesse dado (109), apesar de não haver complemento expresso, o verbo DEVER assume o sentido lexical de dívida, e também assume as características de flexão. Essas duas propriedades garantem a ele o status de verbo pleno, como se vê também em (110).

Para Cunha (1975, p. 147), a transitividade dá-se quando o processo verbal é transmitido a outros elementos por não caber ao verbo integralmente. É o que se verifica com o verbo DEVER em (109): ele não se encontra na condição de auxiliar de outro verbo, até porque se encontra isolado na sentença; além disso, seleciona um argumento externo22 (pessoas) e um argumento interno23 (quantias absurdas) em forma de sintagma nominal. O fato de esse verbo (dever) funcionar como auxiliar em (107) e como pleno em (108) e (109) comprova a sua propriedade de verbo modal, do ponto de vista da sua estrutura.

As flexões dão conta das categorias de tempo, modo e pessoa em que se processam; respectivamente, se no presente, pretérito ou futuro; indicativo, subjuntivo ou imperativo; primeira, segunda e terceira pessoas, no singular ou no plural.

É importante marcar que, por mais que a intenção aqui seja tratar a modalização efetivada por meio do verbo PODER, contraposto ao verbo DEVER em função do seu comportamento estrutural e semântico, não é interessante esquecer que a seleção lexical desse ou daquele item se dá por opções do falante dentro de um contexto específico de atuação sócio-cognitiva.

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Função de sujeito sintático 23 Função de objeto

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