• Nenhum resultado encontrado

3.1. A PRENDER A LER : QUANDO E COMO ?

3.1.4. O GRANDE OBJETIVO DA LEITURA

Na nossa perspetiva, a compreensão do que se lê é o grande objetivo da leitura e essa compreensão é tanto melhor quanto mais apropriado for o texto à capacidade e ao interesse do leitor.

Ler é uma atividade cognitiva e linguística muito complexa que envolve o conhecimento de um código gráfico (no caso português o domínio do sistema alfabético) para a aquisição do significado de uma mensagem escrita, no contexto deliberadamente propositado do leitor (isto é, para aprender e se informar, para se divertir, para refletir). Esta perspetiva de leitura fortalece o sentido de interatividade entre o leitor e o texto e justifica a queda da perspetiva dicotómica de alfabetizado/analfabeto que demarcava a aprendizagem da leitura aos primeiros anos de escolaridade. A partir do domínio do sistema alfabético e da automatização consequente da decifração, a escola não se preocupava mais com o ensino da leitura. O aluno estava alfabetizado, logo, era suposto saber ler todo o tipo de material escrito que lhe fosse necessário.

Os últimos vinte anos obrigaram-nos a reconsiderar não só o conceito de leitura mas particularmente, o da aprendizagem eficaz desta competência. O próprio conceito de literacia, definido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), em 1956, como “alfabetização funcional” (Gray, 1956 cit. por Sim-Sim, 2001) e como um produto diretamente derivado da frequência de escolaridade, começou a apresentar aberturas teóricas e operacionais que foi preciso reequacionar. O baixo nível de leitura exposto pelos alunos que frequentaram a escolaridade durante largos anos exigiu investigadores e decisores políticos a procurarem explicações e soluções para o problema. É presentemente visível que as dificuldades de leitura, sentidas individualmente e divulgadas em muitos estudos efetuados, estão muito mais relacionadas com as exigências literácitas da sociedade atual do que com os baixos níveis de desempenho de leitura atingidos pelos alunos. Dito de um outro modo, na sociedade tecnológica em que vivemos assiste-se a uma crescente e urgente necessidade de subida dos níveis de literacia de cada um em particular e de todos, em geral. A rapidez, a abundância e a variedade da informação que nos chega online, a diversidade de textos em suporte de papel ou em suporte informático, criam a necessidade urgente de nos apropriarmos da informação com eficácia e agilidade, sem o que nos tornaremos rapidamente desatualizados. É neste contexto que faz sentido falar-se do conceito de literacia plena (cf. Sim-Sim, 1999) como uma supracapacidade geradora de desenvolvimento pessoal e social. É também neste contexto que o ensino da leitura deverá ser reconsiderado, colocando a compreensão do que é lido como o grande objetivo da aprendizagem da leitura.

Ainda que a decifração do sistema alfabético e a sua automatização sejam condições indispensáveis ao processo de leitura, o sustentáculo fulcral desta competência é o

significado que o leitor pode retirar dessa leitura, e a riqueza da recolha de significado deriva não só do nível de capacidade de leitura do leitor, mas também do propósito contextual. Um efeito perverso que há que prevenir é o uso de textos sem interesse para leitores principiantes, só porque se assume que as crianças devem ler apenas as palavras cuja representação gráfica conhecem. A informação retida num texto sem qualquer sentido significativo para o aluno destrói a apetência pela leitura e torna perigosa a própria atividade de leitura. Era um pouco o que aconteceria com o futebol se ensinássemos as crianças a jogar do mesmo modo que as ensinamos, muitas vezes, a ler, isto é, através de técnicas mecânicas e repetitivas, desprovidas de significado para o aluno. Se os aprendizes de futebolistas começassem por aprender as regras do futebol através da leitura dessas regras, treinassem remates e passagens de bola em séries sucessivas e repetitivas de exercícios e se apenas lhes fosse permitido jogar um jogo de futebol após anos e anos de treino de competências de remate e de defesa descontextualizadas, seria de esperar que o sucesso da nossa Seleção Nacional se equiparasse ao nível e consumo de leitura dos portugueses...

Para que a leitura seja uma atividade produtora de prazer, o leitor terá de se envolver com o texto e esse envolvimento gerará previsão do conteúdo a ler. Lemos melhor o que conhecemos e que, portanto, podemos adivinhar por antecipação. Daí a grande importância de conversar com o aluno sobre o que vai ler, fazê-lo relembrar o que já conhece sobre o tema ou levá-lo a aprender algo de novo sobre o assunto antes de iniciar a leitura. Ou seja, a leitura torna-se mais eficaz quando, ao ler, podemos usar o conhecimento prévio para dar um sentido mais profundo ao texto. O comportamento frequente das crianças pequenas ao exigirem que lhes seja lida a mesma história vezes sem conta baseia-se no mesmo princípio; ao conhecerem a história podem antecipar o desenrolar do conteúdo e, assim, prestar uma maior atenção aos detalhes que tinham abandonado em situações anteriores.

A exploração antecipada, e também posterior, do que foi lido permite ao leitor o reconhecimento de valores sociais, afetivos e culturais induzidos pelo texto e a reflexão consciente sobre esses mesmos valores. É evidente que, se os textos oferecidos aos aprendizes de leitor forem peças despidas de conteúdo significativo para eles, a leitura tornar-se-á num ato mecânico, aborrecido e sem interesse.

Um outro vetor que deveria regular a aprendizagem da leitura está relacionado com atividades de “ler” pela voz dos outros, isto é, ouvir um leitor fluente ler textos de que muito

goste. Aprender a interagir com o texto através de outrem é uma ligação para o desejo de ler cada vez mais autonomamente.

A promoção regular e sistemática, por parte da escola, de atividades e práticas de leitura eficazes favorecerá o que Stanovich (1986, cit. por Sim-Sim, 2001) designou por “Efeito de Mateus”, isto é, lê mais quem lê melhor e lê melhor quem lê mais – e assim se melhorarão os níveis de literacia do país e os hábitos de leitura dos portugueses.

Documentos relacionados