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O texto de 1872 sobre O Estado Grego mostra que influência ainda exerce sobre Nietzsche, nessa época, a imagem da Cidade orgâ­ nica grega. Na linhagem do helenismo piedoso de Schiller e do jovem Hegel, também Nietzsche vem celebrar, na Cidade ética, o necessário instrumento da arte, e a condição para que desabroche o gênio. Entre

Estado e obra d e arte, é natural a osmose: é ao Estado que o artista se dirige, e a tragédia é o ato de unificação do povo; em troca, a educação ministrada pela Pólis está subordinada à contemplação esté­ tica.1 Com alguma desenvoltura, Nietzsche chega mesmo a invocar Platão para apoiar sua tese: se quisermos considerar que foi uma “ la­ cuna contingente” (zufällige Lücke) a condenação da poesia na R epú­ blica, será possível destilar dessa obra uma “ doutrina secreta” , relativa à ligação do Estado com o gênio.

Com Humano, Dem asiado H um ano m uda o tom. já não se cogita da “obra de arte estatal” , nem de um Estado que possa se dedicar a produzir o gênio. Foi um certo açodamento honrar a Pólis clássica como uma organização guerreira na qual a escravidão possibilitava o florescimento da cultura — uma coletividade na qual o indivíduo só teria valor na medida em que contribuísse para a entrada do gênio em cena, . . O contrário é que é verdadeiro. A Cidade era uma das pri­ meiras figuras do “ rebanho” ; já consagrava o sacrifício do indivíduo à totalidade.

A pólis grega, com o todo poder político organizador, era exclu si­ vista e desconfiadíssim a fa ce à expansão da cultura; sobre a cultura, seu instinto atávico e violen to quase só tinha efeito s paralisantes e inibidores [. . . ] F oi a d esp eito da pólis que a cultura se desen­ volveu [ . . . ] E que ninguém alegu e o panegírico de P éricles: pois este não passa de um grande son h o otim ista, da ficçã o de que exista uma ligação entre a pólis e a cultura ateniense.2

Nesse texto, o fascínio pela cidade grega bruscamente tem fim, tal como a crença, que lhe estava ligada, numa fusão de cultura e

civilização. O que Nietzsche agora vai proclam ar é o "antagonism o abissal” entre estas duas. "A civilização quer coisa diferente do que quer a cultura — talvez mesmo o contrário desta” — , e os tempos mais promissores para a cultura são aqueles nos quais se rompem as imposições do adestram ento arcaico, quando ‘‘o indivíduo se atreve a ser individual e a se destacar” .3 Esta reviravolta na interpretação nietzschiana é bem sintomática da distância que, subitamente, Nietzsche toma da visão tradicional que a filosofia alemã tinha da Grécia. Assim, no texto sobre O Estado Grego, sua diferença face a Hegel ainda era apenas de opinião ou de apreciação: onde Hegel condena a escravidão e assinala a inexistência da “ liberdade subjetiva” , o jovem Nietzsche exalta o escravagismo e o “ totalitarism o” gregos.4 Mas, por sob essas divergências de apreciação, a imagem da Grécia que se impõe é uma só: vida-ética de massa e sem fissuras, belo fruto que a doença socrática começa a corromper. O ra, a partir de Humano, Dem asiado Humano,

ainda que ocorra a Nietzsche apresentar Sócrates como um exemplo da incom patibilidade entre a moral com unitária e o avanço do “ indiví­ duo” ,5 ainda assim, o antagonismo entre Anitos e Sócrates, entre o “substancial” e o “ subjetivo” , perde profundidade. Quando surge Só­ crates, a Cidade já encetou o trajeto no qual, logo, ela deixará de ser “ substancial” ; e sua execução não significa, de forma alguma, uma oposição por princípio do Estado à filosofia.

O que devemos com preender, antes de mais nada, é que a ruptura da vida-ética tornava possível o advento de um tipo de “ indivíduo” suficientemente senhor de si para tratar seus instintos como “ bons ser­ vidores” a sua disposição — de um homem autônom o na plenitude da palavra, capaz de m andar em si mesmo sem precisar recorrer a qualquer instância autoritária, de libertar-se do jugo de qualquer

Sittlichkeit que seja. A dissolução da Cidade, inevitável, poderia ter marcado essa virada: os deuses que se tornaram indiferentes, a fron­ teira que se apagou entre o Bem e o Mal, e assim o homem em con­ dições, finalmente, de assumir a si próprio, como por sinal comprova a eclosão da cultura sofistica.6 Ora, foi justam ente isso o que não aconteceu. Já na época de Péricles, a emergência do indivíduo anuncia a sociedade “ individualista” tal como hoje a entendemos. A sociedade que desfavorece “os grandes arquitetos, os grandes construtores” . Que aceita como um dado essencial, eterno, um “ indivíduo” sem condi­ ções de m andar, incapaz de instituir, inapto para qualquer emprego político — em suma, o “ indivíduo” que veremos desabrochar na

“ liberdade subjetiva”, no sentido de Hegel. Como nasceu, como triun­ fou esse sentido da palavra indivíduo, que unifica todas as variedades políticas modernas? É neste ponto que começa o processo de Nietzsche contra o socratismo. Este foi o vetor nefasto que se impôs à dissolução da Pólis. O vetor que, infelizmente, venceu a outra opção, a da sofistica.

Como a apresentação que Hegel e Nietzsche fazem da sofistica é praticamente a mesma, a divergência de suas apreciações resulta muito nítida. Para Hegel, o perspectivismo dos sofistas, sua capacidade de fazer variar os “ pontos de vista” e as “ razões” são a melhor prova de sua incapacidade para reconstituir uma vida ética, que agora só poderia ser centrada no “ pensam ento”. O “ pensamento” ainda não se tornara um princípio firm e o bastante, por isso os sofistas não sou­ beram que tinham a seu alcance o novo princípio ético: a consciência de si,7 Assim, Hegel aponta com clareza inigualável o que está em jogo no antagonismo entre a sofistica e o socratismo: será no indi­ víduo, será no universal, que se encontrará o novo princípio de fixidez (Festigkeit)? O ptando pela “ singularidade” , pelo “ arbítrio do sujei­ to” , o sofista — se damos crédito a Hegel — errou de ponto firme. . .

O que supõe que todo pensador, na decadência do arcaísmo, só podia estar procurando um “ ponto firm e” , um chão que não lhe fugisse — que todo pensador tinha de estar balbuciando a exigência cartesiana. Um “ ponto firm e” : nesse caso, um padrão invariável do justo e do injusto, do semelhante e do dessemelhante. . . Mas seria mesmo isso o que preocupava o sofista? Ou, na verdade, não será que é Hegel que não consegue conceber uma economia do pensamento ou das pulsões a não ser através da obediência a uma norm a? Dessa forma, ele reduz à dimensão de uma querela entre duas “ teorias do conhe­ cim ento” a escolha que se ofereceu à Grécia, entre dois modos de civilização. Não compreende que, longe de procurar um novo “ prin­ cípio firm e”, os sofistas esboçavam uma outra imagem do pensamento, livre de toda e qualquer autoridade. . . O ra, frente a essa questão, o que propunha o socratismo? Simplesmente: uma substituição de auto­ ridade. E Hegel, vez por outra, está bem perto de concordar com isso. Sócrates, com o sabem os, com bateu os sofistas sob todos os aspectos, não porque se lim itasse, sem mais [ohne weiteres], a opor ao racio­ cín io deles a autoridade e a tradição, mas m ostrando dialeticam ente com o eram insustentáveis m eras razões, e con ferin d o validade, em

contrapartida, ao Justo e ao Bem , e m ais geralm ente ao universal e ao con ceito de von tad e.8

Sócrates não pretendia opor “ sem mais” , aos sofistas, a autori­ dade e a tradição, mas sim uma nova form a de autoridade: é este o ponto de partida para a análise de Nietzsche. O surgimento da moral individual portanto só rompeu aparentem ente com a cidade arcaica, e mesmo com a barbárie: a moralidade individual prolonga e traduz a crueldade da “ moralidade dos costumes” , de modo que toda his­ tória sincera da Sittlichkeit não pode ser mais que um relato das metamorfoses da autoridade coercitiva. Sob a máscara de emancipa- dor, pois, Sócrates desviava os atenienses de uma autêntica libertação individual. Ele almejava o retorno à virtude antiga, queria tão-somente reform ular a autoridade. Por isso é aberrante interpretar como liber­ tação, ou mesmo promessa de libertação, o que na verdade consistiu no abortam ento da autonomia, no sentido estrito.9

Com o socratismo, é uma nova figura do “ estar-na-obediência” que começa a se impor. Se a civilização arcaica formava homens capazes de hierarquizar suas pulsões mediante a predominância con­ ferida a uma delas, o adestramento socrático submete o indivíduo a uma autoridade que é apenas a pura e simples negação de todas as pulsões. Assim se passou de um adestram ento mistificador (integra­ ção sonambúlica na cidade) a um adestramento mórbido, que inculca, num a vontade que já foi debilitada, a sensação de sua impotência e precariedade perante a autoridade. Aliás, a situação do século IV grego torna compreensível essa evolução. É o desencadeamento das pulsões que então fascina o pensador (cf. Tucídides): ele percebe que as instituições se tornaram incapazes de refrear aquele que Platão chama de “ homem tirânico” (e, Nietzsche, de “ homem anárquico”). Aos olhos de Nietzsche, essa hybris era apenas um sinal de inaptidão à era individualista que acabava de se iniciar — a confissão de

fraqueza de um ser que se sente atordoado por sua inesperada dispo­ nibilidade e não entrevê a possibilidade de um novo equilíbrio dos in stin to s.. . 10 Mas o diagnóstico de Platão era completamente distin­ to: nesse desencadeamento, o que via era apenas o efeito de uma falta de repressão. Assim, analisa com o decadente o sintoma da deca­ dência: pois o que caracteriza o decadente é o fato de ele tom ar os efeitos da fraqueza (vício, crim inalidade. . .) pelas causas do declínio e lutar contra aqueles mostrando-se cego a estas. “ Estar forçado a lutar contra as pulsões, eis a fórmula da decadência” — uma fórmula, por sinal, que só pode precipitar a decadência, pois se acredita com-

batê-la quando na verdade se utilizam valores e oposições de valores que já são seu resultado. “ O socratismo é o dissolvente dos instintos morais, na mesma medida em que pensa ser o restaurador deles” .11 O pensador decadente não concebe que a desordem das pulsões é coisa normal naquele que, subitamente liberto da velha coerção ética, dá os primeiros passos enquanto “ indivíduo” . Onde na verdade só existe um a economia ainda deficiente das pulsões ele vê frenesi, um mau princípio desenfreado. E por isso atribui a “ fraqueza” do indivíduo a uma falta de submissão, e não de organização.

Fraqueza da vontade é um a com paração que p od e induzir em erro. Pois não existe V ontade, e por conseguinte não há vontade forte nem vontade fraca. “V ontade fraca” é o resultado da pluralidade e desagregação das im pulsões, da falta de um sistem a que as articule. “V ontade forte” é o resultado da coord en ação delas sob a predom i­ nância de um a única im pulsão. N o prim eiro caso, oscilação e falta de equilíbrio; no segundo, precisão e clareza da d ireção.12

Por isso, a pedagogia decadente é incapaz de conceber uma me­ dida (M aaszhalten) que não derive de uma coerção im posta às pul­ sões. Ela diz respeito a um ser do qual está suposto que sua única alternativa reside entre o frenesi e a obediência. “ Fraqueza” , posta sub-repticiamente como um a priori antropológico — por conseguinte, submissão necessária a uma autoridade — , portanto, aprendizagem do universal como única fórmula possível de salvação: eis o caminho aberto pelo “ filósofo grego” . Exclui-se, prontam ente, que a medida possa ser alcançada pela supremacia de uma pulsão: como se pode ser salvo por uma “ paixão” ? Na República, é quando o rapaz deixa um desejo “ tomar a cabeça” dos outros que a liberdade se torna, para ele, o louco sinônimo de uma paranom ia, da desobediência ao nómos

repressivo. E sabe-se que a tirania é apenas a projeção, na escala da

pólis, do comando que assume um a pulsão única — entendamos (na língua dos fracos), de uma “ paixão” , da qual são exemplos a cupidez, a embriaguez, a obsessão sexual etc. Mas, para que se evidencie a parcialidade dessa análise, basta perguntarmos qual é o contrário da “ tirania” assim entendida. Será a sabedoria, concebida como harm o­ nia, m edida? Se assim quisermos. Mas uma harmonia e medida que somente são possíveis com base numa repressão. O homem que pre­ tende exercer o mando sem deter a areté, diz ainda Platão, assemelha- se ao doente irrazoável que “ age como um tirano” e “ não reprime a si próprio” . . . A criança mimada, o obcecado, o doente: são esses os únicos exemplos que o decadente pode oferecer do império de uma

pulsão. E assim só nos deixa a escolha entre dois destinos: ou a “ tirania", ou a “ castração” ; “ ou soçobrar, ou ser absurdam ente ra­ zoável” . “ Enquanto não possui a virtude, o melhor é que o homem — e não só a criança — se deixe governar por alguém melhor, em vez de governar ele próprio.” Até que o mando dos “ m elhores” o tenha ensinado não a m andar, é claro, mas a obedecer a “ si mesmo” na qualidade de “sujeito universal” .13

Assim se compreende melhor o que governa a aversão que Platão sente pela tirania (ou, Hegel, pelo despotismo): é a convicção de que

som ente um controle extrapulsional (poder razoável, razão individual) tem condições de deter a desmedida. Dominar só pode significar re­ duzir à impotência. Dominar-se só pode significar fazer “ guerra total” aos próprios afetos. Entre a bestialidade e sua negação (Vernichtung), não se considera, em absoluto, a eventualidade de uma dominação autóctone do indivíduo. Esmagar os afetos, por não ter força para utilizá-los, é a interpretação que se tornou corrente da H errschaft,14 Basta, porém, vislumbrarmos que outra solução era possível, para nos convencermos de que a hum anidade ainda tem a escolha entre dois modos de adestramento: ou continuar apostando na “ fraqueza” do homem (entendida no sentido dos fracos e dos pedagogos insidiosos que falam a língua deles), ou arrancar o indivíduo de sua fraqueza e ensiná-lo a equilibrar-se, sem precisar ele recorrer a essa solução de­ sesperada que foi, sempre, a repressão efetuada pelo nómos. Ou viver temendo a própria “ im oralidade” , ou atrever-se a provar, contra os “ moralizadores” , que o amoralismo é o contrário de uma queda.

Este é o primeiro motivo de suspeita que Nietzsche nos fornece contra o pensamento universalista, que tem no hegelianismo seu co- roamento. Dizemos de propósito suspeita, e não crítica — pois trata-se de operações bem distintas. O crítico é aquele que aborda o texto de frente, que se prende às incoerências do autor, às liberdades que toma ele com a documentação, à leviandade com a qual constituiu seus conceitos etc. Já o que suspeita não vai tão longe. É diante das palavras que ele se detém — procurando aquilo que quem as em pre­ gou sequer sentiu necessidade de esclarecer, a tal ponto lhe parecia inútil a precisão. A suspeita deixa à crítica o encargo de devassar o que os conceitos dissimulavam (interesses de classe, sentimentos in­ confessáveis, “ im pensado”); ela já tem muito o que fazer com o que passa p o r óbvio no cerne do texto. Um exemplo: se entendermos de

de si no século IV, perguntaremos até que ponto essa análise é histo­ ricamente correta, tentaremos detectar os preconceitos “ idealistas” que a m i n a m . . . Mas será isso o que im porta? Ou, pelo menos, o que urge? Não valeria a pena começarmos vendo como está marcado seu vocabulário e, em vez de submetermos seu discurso a um crivo que tem grande risco de estar orientado ideologicamente, simplesmente recuarmos no uso das palavras, retrocedermos para fora da área se­ mântica na qual o autor se instalou? Não procurar o que o pensador disfarçava, mas através de que “ interpretação” determ inada ele no­ meava as coisas.

O que devemos entender, quando Hegel fala do "nascim ento da consciência de si”? Uma mentira, uma mistificação que tem de ser denunciada? Não andemos tão depressa. Perguntemos, somente, o que pode designar essa expressão. Ela dá nome à época na qual o perigo maior foi atribuído aos afetos que rasgavam o indivíduo, e conjurado pelo esmagamento do individual.15 A esse respeito, basta darmos cré­ dito ao próprio Hegel:

C ensurou-se aos sofistas o fato de haverem favorecido as paixões, os interesses privados. Isso decorre, im ediatam ente, de seu m od o de cultura. Este fornece diferentes pontos de vista, e depois cabe ao sujeito decidir a seu talante porque não existem fundam entos firmes. A t está o perigo \darin liegt das G efährliche].16

“ Consciência” é o nome do “ instinto gregário individual"; o “ valor infinito do indivíduo” é nome do apagamento do individual pela espécie. Limar as asperezas individuais, moer a hum anidade em “ areia fin a”, eis a obra, ao longo da “ H istória”, daquele que “o filó­ sofo alem ão” chama de Espírito. E basta efetuar esta decodificação, para se perceber como seria ocioso pretender refutar o autor comba­ tendo as teses que ele formula. Se criticar quer dizer opor-se a, então não se faz a crítica dos dogmas cristãos, afirma Nietzsche. O que se faz é questioná-los. Da mesma forma, por que iríamos contestar, por exemplo, que “ a H istória” seja a realização da “ liberdade”? Ou que o universal transpareça na economia de mercado? Aqui, de nada serve atacarmos os enunciados. O melhor é perguntar: o que eles entendem por “ H istória”, por "liberdade”, por “ universal” ? Em que campo de avaliação essas palavras se enraizaram ? Antes de ser crítica, a inves­ tigação será puram ente filológica. Tentemos medir a flexibilidade e o tato que ela exige, tomando por exemplo a análise da palavra egoísmo.

Quem é aquele que “ os bons e os justos" pretendem m arcar, a ferro em brasa, com o nome de egoísta? É o que deseja garantir, às

custas de outrem, sua conservação e bem-estar, os quais eleva a inte­ resses suprem os. . . Assim, um egoísm o que não esteja inspirado por um objetivo eudemonista não teria sentido para “os bons e os justos” , pois esses, sem o saber, referem o egoísm o que denunciam a uma marca bem determ inada da palavra “ ego” . “ Egoísmo? Mas ninguém ainda perguntou: que espécie de ego? Todos, ao contrário, esponta­ neamente colocam um ego igual a qualquer outro ego [ . . . ] ” 17

Um bom exemplo dèssa ingenuidade vemos na análise deprecia­ tiva que o utilitarista propõe dos sentimentos morais. No princípio, pretende ele, “ as ações não egoístas foram louvadas e chamadas de boas por aqueles a quem eram dispensadas, quer dizer, aqueles a quem elas eram úteis [ . . . ] ” 18 Depois, essas ações term inaram por ser reputadas, incondicionalmente, boas. A ingenuidade dessa análise, observa Nietzsche, é dupla: por um lado, postula-se que os beneficiá­ rios da “ bondade” foram os juizes do que é “ bom ” ; por outro lado, considera-se como óbvia a sinonímia dos termos egoísta e interessado, não-egoísta e desinteressado. E é com base nisso que se tenta provar que, a despeito das aparências, o valor conferido aos atos desinteressa­ dos não afeta, em absoluto, o caráter fundam entalm ente interessado de toda e qualquer apreciação. Fazendo isso, o utilitarista imagina estar desnudando uma estratégia. Mas, na verdade, o que ele faz é forjar um romance ideológico, tal como La Rouchefoucauld, ou ainda como Rousseau, ao decifrar o discurso dos ricos. E, o que mais importa: ele se limita a reforçar, assumindo-a, a avaliação na qual se enxerta a mesma mistificação que ele denuncia. Seria m uito mais útil ele mos­ trar que o sentido corrente dos termos “ egoísmo” , “ ego”, ‘indivíduo” provém de uma avaliação que visa a anular o individual em sentido estrito, a saber, o hapax, o incomparável, “o inteiram ente único e inigualável” . E também devolver à luz outra m arca possível de “ ego” , que foi obscurecida por todo um trabalho de assimilação e igualização (ego = ego), agora incorporado em nós. Pouco im porta, então, o que se possa dizer do “ egoísmo” ou do “ individualism o”, enquanto falar­ mos de ambos no campo de segurança dentro do qual foi fixado seu sentido — enquanto entendermos essas palavras contra o fundo de ações havidas por comparáveis, de seres tidos por equivalentes, de bens considerados como intercambiáveis, e que assim continuamos a avaliar da mesma m aneira que aqueles que imaginamos desmascarar.

Ora, é essa segurança que o filólogo vem perturbar — ao desco­ brir, em contraste, um ego cujo egoísmo tanto os virtuosos quanto os que vituperam a virtude são incapazes de com preender. “ O egoísmo é coisa tardia e ainda rara [. . .1 Ainda é raríssimo existir um Ego” .19

Por isso, o procedim ento do filólogo é muito mais subversivo do que se ele também propusesse, a seu feitio, desenterrar o “ egoísmo” sor­ rateiro que apodrece todas as virtudes, numa linguagem que se con­

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