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157008854 Gerard Lebrun 1988 O Avesso Da Dialectica OCR

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GÉRARD LEBRUN

O AVESSO DA DIALÉTICA

HEGEL À LUZ DE NIETZSCHE

Tradução:

RENATO JA N IN E RIBEIRO

______

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Oadoi d« C a t a lo g a ç ã o na P u b lic a ç ã o ( C IP ) In lo rn a clo n a l (C A m a ra B f a s ila lra d o Llv ro , S P , B r a s il)

L c b r u n . C e r a r d , 1 9 3 0

-0 avesso da d i a l é t ic a : Hegel â luz de Nietzsche / Gérard Lcbrun ; tradução Renato Jan in« R ib e iro. — São Paulo : Companhia das L e tra s, 1988.

ISBN 85-7164-007-6

1. Dia lé tic a 2 . Hegel, Ceorg Wilhelm F rie d rich , 1770-1831 3 . N ie t z sc h e , F rie d rich , Wilhelm , 1844- 1900 I . T ítu lo . 1 1. T it u l o : Hegel > luz do

Niettschs-índices para catálogo sistemático: 1 . D i a lé t i c a begelian a s F il o s o fia alemã 193 2 . F il o s o f ia alemã 193

Copyright © Gérard Lebrun Tradução do Prefácio:

Cláudio Marcondes

Capa:

Ettore Bottini

a partir de Elementos mecânicos sobre

fundo vermelho (1924), de Fernand Léger

Revisão:

Olga Cafalcchio Adalberto CoUto Elvira da Rocha

1988

Editora Schwarcz Ltda.

Rua Tupi, 522 01233 — São Paulo — SP Fones: (011) 825-5286 e 825-6498

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ÍNDICE

Prefácio ... ... ^ i. A verdadeira teodicéia...

II. O poder sem a fo rça ... 65

m . A grande suspeita ... IV. A doçura de temer ... 167

v. O tema do círculo... ... 213

vi. O círculo dos círculos ... 243

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PREFÁCIO

Os ensaios reunidos neste livro dizem respeito à dialética hege- liana. Não se trata de isolar a armação desta, pois a “dialética” não é algo que se possa resumir de uma vez por todas: como indica por vezes o próprio Hegel, sua estrutura varia conforme seus momentos (por exemplo, em cada uma das três partes da Lógica). Trata-se ape­ nas de analisar algumas amostras da dialética com um objetivo bem preciso: determinar certas opções que ela, sem o dizer, implica. Pri­ meiro, opções ontológicas, cuja detecção muitas vezes exige referência aos clássicos gregos. Mas também — e inseparavelmente — opções antropológicas, que o perfeito funcionamento da maquinaria hegeliana contribui para dissimular ao leitor. Não que exista aí qualquer desleal­ dade por parte do autor. Acreditamos que o efeito de dissimulação se deva à própria natureza dessa "ginástica” conceituai, denominada “dia­ lética” pelo menos desde o Parmênides de Platão, e que consiste em deixar que se explicitem significações que o "entendimento são” não sonharia em questionar, pois as supõe “bem conhecidas”, como disse ironicamente Hegel. Por isso, todo discurso dialético deve, antes de tudo, ser compreendido como um jogo, destinado a desiludir o leitor aturdido — e todos nós o somos, necessariamente. O “Um”, o "Mes­ mo”, o “ Outro” . . . aparecem, numa primeira aproximação, como sig­ nificações no mínimo estáveis para quem confia na linguagem corri­ queira: a tarefa do dialético é, portanto, tomar flutuantes tais signi­ ficações, e nos fazer descobrir em cada uma delas um ninho de aporias e de contradições. Nessa metamorfose dos conceitos, que à primeira vista parece levar direto ao ceticismo, se elabora o Saber ao qual o “entendimento” era, por natureza, incapaz de ter acesso. Este é o movi­ mento da dialética: uma pedagogia que parte da idéia de que os alunos se encontram na total ignorância do significado das palavras que em­ pregam. Se é assim, talvez nos perguntem: por que tomar como hipó­

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tese de trabalho este que é um jogo trucado? Por que levantar uma suspeita de princípio contra um discurso que pretende eliminar todos os bloqueios e dissipar todas as miragens do falar cotidiano? Por que essa obra de desmistificação deveria ser silenciosamente mistificadora?

Todavia, se levarmos em conta esses escrúpulos, seria impossível empreender qualquer questionamento do discurso hegeliano. Para nos distanciar dele, teríamos de escolher entre apenas duas posições: ou continuar dirigindo a Hegel as objeções do "entendimento”, que ele próprio teve o prazer de refutar antecipadamente, ou então concluir que seu sistema não passa de uma montagem de sofismas, de um gigantesco Vernünfteln. A quem recusar essas atitudes, resta o comen­

tário, com sua facilidade e seu risco. Facilidade, pois o comentador

se dá a garantia de nada encontrar além dos problemas locais de inter­ pretação, os quais não colocarão em causa a pertinência, admitida previamente, do discurso. Risco, também, pois, uma vez aceita a vali­ dade das regras do jogo, estamos destinados a reutilizar indefinida­ mente uma linguagem sobre cujo valor nunca nos perguntamos. A isso se deve a monotonia de muitos dos bons comentários sobre Hegel: ao intérprete nada resta além de falar, por sua vez, o “hegeliano” e de nos apresentar em câmara lenta a mutação das significações. Em suma, ao procurar manter-se fiel à dialética, ele acaba se deixando levar por ela e, por conseguinte, opera sobre meros conceitos, sem jamais referi-los a qualquer experiência.

Na verdade, a própria dialética constrange o comentador a adotar essa solução. Desde Sócrates, o dialético faz crer (ou acaba por fazer crer) ao senso comum que só ele tem possibilidade de encontrar a exata definição do conceito que os homens sequer haviam procurado. Somente ele, do fundo de sua douta ignorância, será capaz de fazer entrever o que é o Justo, o que é o Belo, incondicionalmente e sob todos os aspectos. Pois essas palavras devem certamente designar algu­ ma coisa sub specie aeternitatis. Mas aqueles que as empregam (por­ que são estragados pela educação da cidade, inteiramente tomados pela vida prática etc.) nunca experimentaram a necessidade de trazê-las à luz. O dialético, portanto, se encarrega de remar contra a corrente e de afastar seus ouvintes do uso comum da linguagem: ao deslocar os conceitos usuais, ao dissipar as pobres convicções que os induziam, ele conduzirá o interlocutor da incultura até o saber absoluto. Essa é a paidéia presente tanto na alegoria da Caverna quanto na Fenome-

nologia. E esse esquema pedagógico é responsável por grande parte

do êxito da dialética, pois se adequa de modo admirável ao espírito de uma “filosofia” convertida em disciplina universitária. Há um bom

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tempo os velhos “sistemas filosóficos” deixaram de atrair professores e estudantes, tendo sido deixados de boa vontade à dissecção dos his­ toriadores estruturalistas. A dialética, por outro lado, conserva seu poder de sedução. Quaisquer que sejam as dificuldades acarretadas aos discípulos pelos “ longos desvios” platônicos ou pelas reviravoltas hege- lianas, elas também lhe trazem a certeza de que esse árduo périplo será recompensado e que ele já se encontra no caminho do saber, que sua ingenuidade inicial já ficou longe atrás de si.

Desse modo, a dialética (assim como, é verdade, a fenomenologia) sustenta a convicção, que não deve desgostar ao filósofo-aprendiz, de que a aquisição do “saber filosófico” exige que se tome distância frente aos saberes “ingênuos” que nos satisfizeram até então. Os ho­ mens, assegura-nos o dialético, nunca souberam dizer o que era o Justo, o Belo, o Piedoso... E eu lhes dou os meios para que realizem bem essa investigação. Pois, enfim, por que o Belo, o Justo, o Pie­ doso . . . deveriam poder ser determinados no absoluto? Do simples fato de pensar que existam essências e que elas sejam formuláveis, poderíamos muito bem sucumbir à pior ingenuidade, à qual somos conduzidos, precisamente, pelo emprego irrefletido da linguagem. Os homens não sabem, literalmente, o que dizem: este é o ponto de par­ tida do dialético. Mas, é isso o importante? Talvez o que importa seja que os homens consideram as palavras como instrumentos teóricos, deixando assim aos filósofos o cuidado de estipularem o “conheci­ mento” contido em tais sinais. Dessa superestimação da linguagem, dizia Berkeley, nascem os problemas filosóficos: “ nós mesmos levan­ tamos a poeira e depois reclamamos de que nada conseguimos ver”. Essa frase assinala uma linha divisória entre os filósofos. Ou bem continuamos a acreditar que existe algo para se ver atrás da nuvem de poeira, e que a "razão”, empregada de modo conveniente, pode nos colocar em presença das “próprias coisas” . . . ou, então, não nos arriscamos mais a “levantar a poeira” e, recusando a herança dos clássicos gregos, procuramos apenas desmontar as armadilhas que nos coloca todo logos. Não é certo que este outro modo de pensamento seja outro modo de “filosofar”, visto que implica a dissolução das ilusões que tomaram possível o advento de uma “filosofia" que se considerava como o saber supremo (pense-se em Nietzsche, mas tam­ bém em Schopenhauer e em Bergson). Em todo caso, ele faz surgir questões desrespeitosas. Afinal, era o bom senso dos atenienses tão desprezível quanto dizia Platão? É tão evidente assim que a atitude de “entendimento”, da qual Hegel nos liberta, nos confina em certe­ zas abstratas?

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líssas questões não se colocam quando estamos presos ao jogo da dialética. Desnecessário dizer, portanto, que, para nós, o “enten­ dimento” fixou indevidamente as significações e introduziu oposições falaciosas. E, sobretudo, não mais sonhamos em examinar o valor dos conceitos conforme nos foram transmitidos pela tradição. Nossa tarefa é somente fazer com que se dissolvam e, com isso, reaver sua “ver­ dade’', assim como a tarefa de Sócrates, nos diálogos, é desmontar os argumentos de modo a provocar, naqueles que os sustentam, o senti­ mento de seu não-saber. Essa busca exclusiva da “ verdade” nos dis­ pensa de qualquer reflexão prévia sobre o sentido usual das palavras. Por que este conceito está marcado desse modo? Por que o uso desta palavra prevaleceu sobre ele? Hegel deixa ao filólogo, ao historiador do fortuito, essas questões indignas da filosofia. A dialética nos afasta dessa curiosidade filológica, pois supõe que os homens sempre falaram de uma ou outra maneira. Nada se pode esperar dessa micrc história, a filologia, quando se trata de fazer surgir o conceito da coisa, e a dialética, de modo mais geral, faz apenas com que voltemos as costas aos historiai, isto é, às investigações positivas. Nasce assim um dog- matismo mais insinuante do que aquele que procede por Axiomas e Teoremas e que, melhor do que este, nos assegura que só depende de nós fazer com que se manifeste o discurso da Verdade. Refúgio ines­ perado para a teologia.

Não há dúvida de que poderíamos observar que, ao se contestar desse modo a pertinência da dialética, acaba-se lançando suspeitas sobre todo o empreendimento filosófico. E por que o negar? Se en­ tendemos por "filosofia” a atividade de pensamento que, por seus próprios recursos, deveria nos fornecer um regramento definitivo dos conceitos abstratos, sim, é da filosofia que desconfiamos, e especial­ mente de sua pretensão (dialética ou fenomenológica) de ultrapassar em rigor ou pelo menos rivalizar com as disciplinas formais. No en­ tanto, por qual obstinação léxica deveríamos vincular a sorte da filo­ sofia à crença na existência de um iogos que seria determinado em última instância por um método dado? Por que deveria a filosofia, para merecer crédito, tomar o lugar, doravante vago, da teologia? Filosofar poderia muito bem consistir em interrogar a experiência que temos das palavras, e em restituir a suas diversas origens as signifi­ cações cuja verdade os filósofos pretendem reencontrar com um “dis­ curso sério”. Não mais explicitar o sentido (que, desde sempre, espe­ rava ser enunciado), mas investigar os acasos de sua formação.

Esse é o espírito com que tentamos, aqui, analisar alguns temas hegelianos, simplesmente para mostrar que a dialética permanece ine­

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vitavelmente presa a certas escolhas semânticas. Quando submetida a esse tipo de exame — que, bem entendido, ela recusa por princípio — percebemos que sua radicalidade é apenas aparente, visto que ela realizou, sub-repticiamente, uma bem determinada flexão em seus con­ ceitos, em vez de extirpar todo pressuposto com seu mero exercício. Percorrer essa dimensão é descobrir que há um ponto de vista a partir do qual a razão hegeliana se expõe ao mesmo tipo de crítica que ela própria dirige sem cessar ao “entendimento”. É começar a desvendar o avesso da dialética. Ela também é parcial. Ela também oculta seus pressupostos. Ela não é o metadiscurso que pretendia ser em relação às filosofias de “entendimento”.

De onde viria essa afinidade entre a razão especulativa, a des­ peito de sua pretensão subversiva, e o que ela denomina "entendi­ mento”? Para compreender isso, lembremo-nos de que o “entendimen­ to” é o nome, com freqüência pejorativo, que Hegel dá à “ razão” dos clássicos, compreendida como faculdade de descoberta e de possessão de princípios. Kant, em certo sentido, manteve essa “razão” em seu

lugar, ainda que mostrando, é verdade, sua incapacidade de nos pro­

porcionar, por si mesma, qualquer conhecimento, e que sua operacio- nalidade se restringe a uma área estreitamente delimitada, ali onde (sob o nome, precisamente, de “entendimento”) ela apenas articula a intuição sensível. Quando opera como razão stricto senso e nos agui- Ihoa em direção ao incondicionado, ela não pode ser mais do que uma fonte de dissabores: a história da metafísica basta para indicar isso. O pós-kantismo, como se sabe, restituiu os direitos dessa “razão” que Kant havia criteriosamente distinguido do entendimento, mas que havia caluniado de modo desastroso, pelo menos enquanto razão teó­ rica. Vítima de seu preconceito em favor do "entendimento” (em certo sentido, desde então, pejorativo), Kant não havia feito justiça à na­ tureza da razão. A velha metafísica certamente não tinha mais motivo de ser: nesse ponto, o diagnóstico kantiano era justo. Mas o saber absoluto, longe de ter se tornado impossível, podia enfim tomar im­ pulso, pelo fato de que a razão cessava (graças a Kant) de ser con­ fundida com o entendimento, e o saber filosófico com as ciências positivas. No fim das contas, o sismo kantiano colocou a descoberto, de modo inesperado, o saber absoluto, que os maiores pensadores “dogmáticos” haviam apenas anunciado vagamente. Kant havia assi­ nalado o final desses ensaios infelizes. Mas, sobretudo, havia liber­ tado, e disso não tinha dúvida, o local do verdadeiro saber de si da razão. Entre os “dogmáticos” (no sentido de Kant) e Hegel, existe, portanto, em comum, essa convicção de que a razão não é uma

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facul-dndc apenas encarregada de formar os conceitos, mas um poder de conhecimento original. Esse ponto, aliás, não havia sido contestado por Kant. .Ele havia simplesmente negado que o homem, ser finito, pudesse conhecer algo por meio da razão pura. Mas admitia a validade desse modo de conhecimento para seres constituídos diferentemente...

Essa confiança no poder original da razão não basta, certamente, para caracterizar a dialética hegeliana. Mas pode nos oferecer uma pista que nos permitiria contornar esta última. A hipótese é a seguinte. Se o sistema hegeliano é vulnerável, isso não se deve a seu dogmatismo (no sentido comum) nem a seu idealismo, ou, ainda, ao fato de que Hegel teria tratado superficialmente as ciências de sua época. Para encontrar a falha na couraça, precisamos nos convencer de que toda crítica a Hegel é vã, se se começa por aceitar a razão como uma fonte de conhecimentos por meio de meros conceitos. Pouco importa, assim, que acusemos Hegel de dar uma imagem deformante, ou mesmo ca­ ricata, dessa razão pura. Pois, enquanto nos mantemos nessa posição — que o enorme impacto de Kant, diga-se de passagem, abalou menos do que poderíamos crer — , o sistema hegeliano permanece inexpug­ nável. Podemos muito bem acusá-lo de charlatanismo, mas não o re­

futaremos. . . Isso se passa de outro modo, contudo, se o exame do

hegelianismo é comandado pela exigência de se colocar em questão a

própria noção de um conhecimento pela razão pura (em vez de criticar

o alcance desta, como o fez Kant). Desde logo, a aposta se torna tudo ou nada, pois já não se trata mais de refutar. “ Não se refuta uma doença dos olhos”, dizia Nietzsche a propósito do cristianismo; mas também poderia ter dito isso a respeito de toda a filosofia. Não se refuta um "sistema de razão”. Tudo o que se pode fazer, é reencon­ trar, bem ou mal e por subterfúgios, as escolhas léxicas nas quais ele se baseou e que traduzem, sem margem de dúvida, tomadas de posi­ ção eminentemente infra-racionais. Nem mesmo diremos (ou não dire­ mos, sobretudo) que o avesso da dialética é uma ideologia, pois o próprio emprego dessa palavra ainda supõe a crença em uma “razão” canônica, passível de deformação ou confusão. Mais vale falar de uma estratégia filológica inconfessa, conveniente como resposta a certas exigências vitais de ordem e de segurança. É dessa estratégia que ten­ tamos recuperar alguns momentos.

Pelo menos, essa é a direção para a qual apontam esses textos. Devo confessar que era outro o projeto inicial: tratava-se de testar a dialética com a ajuda de analisadores emprestados a Nietzsche. Isso teria resultado em outro livro, destinado tanto à releitura de Hegel quanto à verificação da confiabilidade dos conceitos nietzschianos.

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Mas não teria sido também um livro fora de prumo? Foi a conclusão a que cheguei, por diversas razões. Primeiro, Nietzsche não conhecia Hegel o suficiente para que essa investigação fosse justificada. Segun­ do, o leitor poderia imaginar que minha intenção fosse apresentar Nietzsche como vencedor por pontos num pugilato. Por fim, podemos encontrar em outras partes, além do Zaratustra, o tipo de desconfiança que tentamos despertar aqui em relação a Kant e Hegel. Por certo, é a contribuição de Nietzsche à qual me refiro nestas páginas, com o objetivo de determinar os parti pris contidos no texto de Hegel — e são alguns aspectos de sua “grande suspeita” que tento retomar. Mas a leitura de outros grandes autores poderia igualmente nutrir uma suspeita bastante próxima: Berkeley, Hume, Schopenhauer, Bergson. Isso eu apenas compreendi após ter escrito estes ensaios. A ponto de ter me censurado um pouco por haver abandonado estes últimos auto­ res por tempo demasiado enquanto estudava outros que não faziam “meu gênero” — seja dito para pastichar Proust.

Não se veja presunção nem desrespeito nessa confissão. Nem por um instante sonho em desviar alguém da meditação de Kant ou de Hegel. Guardemo-nos apenas de esquecer, ao lê-los, que a “ razão”, o "Conceito”, a “ Idéia” são palavras que indicam, também, certas acei­ tações e certas recusas. Sim, guardemo-nos de ler essas palavras como se elas não tivessem uma face oculta.

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A VERDADEIRA TEODICÉIA

I

Antes de tudo o mais, devemos saber o que é Deus, tal como Ele se revelou na religião cristã. Os que nada sabem de Deus recebem, na Bíblia, o nome de gentios. O Deus cristão é O que se revelou aos homens. Não é a moral que constitui o que há de mais elevado no cristianismo, pois também os gentios se caracterizaram por uma grande elevação moral. Nós temos de conhecer o que é o agir de Deus; senão, seremos como os atenienses, que ergueram um altar em honra do deus desconhecido.

Hoffmeister, Ph. Geschichte, p. 261.

“Na História-Mundial, somente podemos considerar os povos que constituem Estados.” Essa frase de Hegel1 já foi lida como se indicasse que a formação dos Estados modernos seria o objetivo da História — cuja missão estaria cumprida uma vez realizado esse fim ... Mas a relação entre a História e os Estados singulares que a pontuam não é tão simples assim: se é certo que o Estado é a realização “ terrena” da liberdade, que se elabora no curso da História, resta porém que os Estados, enquanto instâncias singulares e finitas, necessariamente se mostram inadequados ao movimento da História. À primeira vista, esta tese pode parecer abstrata. Tentemos esclarecê-la, para começar a determinar o que há de específico na Necessidade * histórica hege- liana.

(*) Para deixar clara a distinção em francês dos significados de besoin (exigência nascida da natureza ou da vida social; estado de privação, falta, carência) e de nécessitê (obrigação ou coerção inelutável, encadeamento neces­ sário na ordem das razões ou das matérias — eventual mas raramente também um besoin imperioso), foi utilizado, na tradução de ambos os termos por “necessidade”, o recurso da inicial minúscula para a primeira acepção e da maiúscula para a segunda. (N. T.)

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Sendo a História a formação do Espírito sob a forma do advir

[Geschehen], da realidade natural imediata, nela os graus da evolu­

ção são princípios naturais imediatos, e, sendo naturais, estão dis­ persos enquanto pluralidade, de modo que, além disso, a cada povo caiba um de tais graus: s u p existência geográfica e antropológica.2

Assim, a História-Mundial explicita a finitude que jaz no cora­ ção de cada povo, enquanto individualidade natural, ao passo que a organização estatal contribui, ao contrário, para obscurecer essa fini­ tude. Nesse sentido, podemos dizer que a História trabalha ao avesso da estatização. Um povo, mesmo depois de se organizar enquanto Estado, continua às voltas com a natureza ou com os povos vizinhos, e é por isso que ele é propriamente histórico: porque o fato de se entregar a tais acasos já o expõe ao envelhecimento, à morte. Tanto quanto os indivíduos, os povos também estão sujeitos ao destino bio­ lógico, também comprovam “a impotência da vida”.3 E é por isso que o desenvolvimento de um povo nada tem a ver com o desenvol­ vimento do Espírito, pois o Espírito não morre de morte natural; sua “ velhice” é maturidade, não senilidade.4 Por isso, sua “evolução” não admite nenhuma comparação biológica ou, mais geralmente, intramun- dana. Hegel acrescenta que o Espírito, na História-Mundial, se retoma "apagando sua própria mundanalidade”.5

O que, exatamente, quer ele dizer com isso? Para o entendermos, precisamos nos reportar ao sentido original que a “finitude” adquire quando é “finitude do Espírito”. Se a consciência se diz “finita” na medida em que se refere a um objeto, já o Espírito é “finito” na medida em que contém uma determinação que não foi posta por ele — ou seja, enquanto ignora que o elemento no qual vive foi criado por ele mesmo. Enquanto não se torna livre.

I . . . ] É para o Espírito livre que o próprio [Espírito] produz, a par­ tir de si mesmo, as determinações do objeto que se desenvolvem e transformam — que o próprio [Espírito] torna objetiva a subjetivi­ dade, e subjetiva a objetividade. As determinações que ele conhece habitam o objeto, é verdade, mas ao mesmo tempo é certo que foi ele quem as pôs. Nele, nada existe que seja exclusivamente ime­ diato.6

Se é este o Espírito em sua liberdade, entende-se que o Espírito de um povo jamais possa se libertar por completo: um povo sempre age com base em dados que não escolheu, e que limitam nessa pro­ porção a explicitação de seu princípio (é por isso que o fato de “ser a Inglaterra uma ilha” determina a história inglesa, porém não dá

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razão de seu lugar na História-Mundial). Acrescentemos que Hegel submete o saber-de-si a um nível tão alto de exigência que fica impos­ sível que o Espírito de um povo consiga apreender algum dia, “o em-si e o para-si de sua razão”. Saber-se significa ter consciência de que todas as determinações próprias simplesmente constituem meios a ser­ viço da auto-revelação do Espírito — e o Espírito de um indivíduo geográfico não pode chegar a essa consciência de uma autoprodução integral. Somente pode chegar a tanto o Espírito que se libertar de sua forma limitada, que recusar toda possibilidade de fixação defini­ tiva, em qualquer entidade que seja. É por isso que Hegel enfatiza, com freqüência, que o Espírito tanto é inscrição numa figura finita

quanto permanente apagamento dessa mesma figuração.7

O movimento do Espírito consiste, pois, em furtar-se perpetua­ mente a si mesmo, enquanto se finitiza, em renegar suas próprias fixa­ ções. E por aí compreendemos o que irá distinguir a historicidade e

evolução orgânica: esta é elaboração de si por si, tendo a forma da

calma diferenciação de um princípio; naquela, ao contrário, “o Espí­ rito opõe-se a si em si mesmo; é ele que constitui o verdadeiro obstá­ culo que ele próprio tem de vencer; se na natureza o desenvolvimento é uma produção [Hervorgehen] pacífica, no Espírito ele é um com­ bate árduo e infinito contra si mesmo. O que o Espírito quer é atingir seu próprio conceito, porém é ele mesmo quem o oculta a seus olhos [. .. ] ” 8 Esse tema ressurge na idéia revolucionária de uma sub­ versão integral e interminável das condições de existência (“Escavas fundo, velha toupeira...”), mas que, para Hegel, não passa de co­ mentário à noção de manifestação (Offenbarung), quando esta é pen­ sada no máximo de sua pureza: o Espírito, manifestando-se, não revela algo que teria ficado no escuro — longe de constituir mero interme­ diário, de ser figurativo, ele é a contínua supressão de toda figura na qual poderíamos sentir a tentação de hospedá-lo.9 Se assim não fosse, se o Espírito não colocasse sempre cada uma de suas criações como uma nova matéria (Stoff) a que se opõe, a que deve transformar, seu movimento não seria infinito: ele bem poderia “aquietar-se” (befrie­

digen) numa de suas produções — e assim poderíamos conceber a

possibilidade de uma fixação privilegiada, de um povo eleito. E, com isso, a História deixaria de ser V/ELT-Geschichte, História-Mundial, isto é, refutação necessária de uma soberania por outra, de um impé­ rio por outro. Melhor ainda: todo vetor que quiséssemos dar à evolu­ ção, toda razão que alegássemos para a Grécia ter sucedido à Pérsia, e Roma à Grécia, incorreria na suspeita de não passar de uma maneira pedante para esconder o fato de que só existem deslocamentos

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con-tingentes de uma formação a outra. . . Para que seja de outro modo, é preciso então que a sucessão histórica não se funde mais nos Espí­

ritos particulares, porém em seu apagamento. O “progresso”, então,

não significa que determinado Volksgeist foi atingido (pois seria im­ possível provar que ele é superior aos que o antecederam), porém simplesmente que determinado Volksgeist foi eliminado, que foi reco­ nhecida sua insuficiência específica — e que o Espírito deu, portanto, mais um passo. Se temos a certeza de que o progresso não é repeti­ tivo, porém explicitador, é porque o Espírito não se autoproduz pro­ duzindo suas formações finitas, mas no gesto contrário, no de renegá- las uma após outra. Não é o poderio dos impérios, mas sua morte, que dá a “razão” da História.

O sucessivo desaparecimento dos impérios, e não o quadro de sua sucessão, como tema da História: é esta a condição, no entender de Hegel, para que a História seja um sistema descrevendo a neces­ sidade absoluta de um desenvolvimento, pois só há desenvolvimento necessário quando o devir é manifestamente outra coisa que não uma

mera passagem. E é por isso, em contrapartida, que “a natureza orgâ­

nica não tem História". Essa fórmula da Fenomenologia é menos banal do que parece à primeira vista, desde que a recoloquemos em seu contexto: o da crítica das taxionomias. Ela não quer dizer que a sucessão monótona dos indivíduos biológicos é incompatível com toda narração de res gestae, mas que a sucessão das figuras orgânicas so­ mente pode ser articulada por um “movimento contingente” — que portanto essas figuras não se prestam a nenhuma sistematização exaus­ tiva, a nenhuma determinação integral (as variedades de uma espécie poderiam ser outras, ou mais numerosas. . .), e que no reino orgânico é impossível encontrar o equivalente de uma Weltgeschichte, isto é, da “vida do Espírito que se ordena até dominar o Todo” .10 Em outras palavras, o que dá originalidade à Weltgeschichte não é, de forma alguma, a contingência e a imprevisibilidade das mutações, nem os lances da sorte que a atravessam, porém, muito ao contrário, a pos­ sibilidade de uma inteligibilidade integral, de que jamais serão capa­ zes as figuras orgânicas. Para uma canônica de Entendimento isso constitui, é óbvio, um paradoxo que já frisa o absurdo. Mas não é precisamente um sinal da miopia do Entendimento o fato de que ele pensa todo “sistema” à imagem de um “quadro da Natureza”, a so­ brevoar formas simplesmente dispersas? Ao passo que o único Sistema capaz de dar conta do lugar e função de cada formação é o que re­ colhe as formas desaparecidas em um “reino dos Espíritos” — e não uma organização, inescapavelmente artificial, de formas externas umas

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às outras. .. O que significa que o único tipo de devir a desposar o movimento do Conceito nada tem em comum com a transição indife­ rente de uma forma a outra: só pode ser um devir que endosse a instabilidade da figura que ele acaba de transgredir — um devir

expressamente nadijicante. É por isso que a História só constitui sub­

vertendo: porque nela o caráter necessário do Conceito se impõe em estado puro. Se a natureza o máximo que pode é "exprimir”, “pres­ sentir” ou ainda "adivinhar” o Conceito, a História o expõe enquanto

tal. Ou, ainda: ela é “realização da Idéia”. Sob a condição de não

imaginarmos que se trata de uma Idéia platônica apoderando-se, gra­ dualmente, do mundo. “ A Idéia realizar-se” quer dizer que o Conceito deixou de se ocultar, que ele não se inscreve numa exterioridade na qual a duras penas tentaríamos divisar seus vestígios — mas que a objetividade só o exibe no ato de desaparecer. O devir histórico men­ cionado na filosofia da História não passaria de uma trivial imagem mobilista, se ele não fosse a ilustração da relação original que a Idéia tem com sua objetividade, como vemos analisada no final da Lógica: a única “objetividade” que convém à Idéia é a que se suprime.

Enquanto objetividade, ela traz consigo o momento da exterioridade do Conceito: ela é pois o aspecto da finitude, da alteração, do fe­ nômeno, encontrando, no entanto, precisamente, seu desaparecimento no fato de retornar à unidade negativa do Conceito [ . . . ] Ainda que a Idéia tenha sua realidade numa instância material [M ateriatur), esta não é um ser abstrato, consolidado perante o Conceito; ela é

apenas devir [nur als Werden], simples determinação do Conceito

mediante a negatividade do ser indiferente.11

O devir histórico, portanto, não é mais o transcorrer das coisas, o passar do tempo, porém a abstração do finito que se suprime. É pois numa objetividade em devir, que se abole e recolhe nele, que o Con­ ceito se manifesta sem equívoco — e não quando penetra num ele­ mento que se conserva estranho a ele. Pois nesse caso ele não age mais como arché no sentido forte do termo: archein é transmitir a força sem precisar se deslocar, é dominar uma realidade sem ter de "passar” nela * (tornaremos a encontrar esse tema no âmago da filo­ sofia do Estado). Do Conceito, é lícito afirmar que ele “passa à reali­ dade”, mas "é de modo que ele a engendre, não de modo a retornar a uma realidade já disponível e existindo fora dele”,11 O Conceber

(*) A regência verbal não usual em português (passar em no lugar de passar a) é proposital, como o leitor notará pelo sentido que assume o verbo. (N. T.)

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não é, absolutamente, como uma autoridade que viesse submeter um elemento rebelde — e é pelo fato de o neoplatonismo ter rompido com essa representação formalista que Hegel veio a exaltá-lo como uma “mudança radical” no filosofar grego. Decorre, dessa convicção especulativa, a recusa de toda epistemologia que se resigne a princi­ piar de uma separação entre forma e conteúdo. Conceber não é fazer aumentar o domínio da forma; não é melhorar o código, introduzir um pouco mais de ordem no fenômeno. Os classificadores bem po­ deriam ter êxito em sistematizar, com meticulosidade crescente, as formas zoológicas e botânicas; mas com isso tudo o que fariam seria mostrar um pouco melhor como o Conceito se propaga numa objeti­ vidade que não foi criada por ele — não daríamos um passo sequer rumo à compreensão de como ele se move. Ao contrário: até aumen­ taria a tentação de representar o Conceito como um universal tão poderoso que pode ser reconhecido de alto a baixo na escala dos seres,13

Certamente é este o ideal de inteligibilidade que governa os sa- beres chamados por Hegel de “representativos” ou “positivos”. E também a história dos historiadores procura fornecer esse tipo de compreensão: “ igualmente a história pode ser compreendida e narrada de modo que, nos acontecimentos singulares e nos indivíduos, trans­

pareça [hindurchleuchtet] sua significação essencial e sua necessária

conexão”.14 O historiador tem todo o direito a proceder dessa forma, porém sua metodologia continua sendo pré-conceitual: consiste em referir o acontecimento ou instituição singular a um invariante que, quando muito, permite restringir ao máximo sua fortuidade, Ora, a Necessidade do Conceito é completamente diferente. E é por isso que, quando se trata da “escrita-histórica”, Hegel parece preferir a simples narrativa, “a intriga” — como diria, hoje, Paul Veyne — , a uma história erudita, “refletida”, que traz sempre em seu bojo o risco de não passar de uma exposição pedante e estéril, porque parte do falso princípio segundo o qual mostrar o funcionamento da Necessidade é reduzir o espaço ocupado pela contingência. Ora, a dialética hege- Iiana, nesse ponto, encontra-se a mil léguas de nossas ciências huma­ nas; é, na sua essência, anti-sociológica: a Necessidade, tal como ela a entende, não tem de superar ou contornar a contingência do con­ teúdo histórico, não tem de obrigar com toda a força o sublunar a exibir um pouco mais de regularidade. É por isso que, se temos de escolher, mil vezes Walter Scott, antes de qualquer livro de sociolo­ gia. . . A verdadeira compreensão histórica jamais se alcança contra a contingência e a suas expensas. É o que afirma esse texto metodo­

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lógico da Enciclopédia, que deveria ter cortado pela raiz tantas repre­ sentações sumárias do que seria a Necessidade histórica para Hegel.

Ainda que a contingência não passe de um momento unilateral da realidade e não deva ser confundida com esta, ela tem contudo um direito no mundo objetivo, enquanto forma que é da Idéia. Isso se aplica, em primeiro lugar, à natureza: a contingência se mostra por assim dizer livremente, na sua superfície, e isso temos de reconhe­ cer, a despeito da pretensão errônea de alguns filósofos, para os quais as coisas só podem ser de tal modo e de nenhum outro. Porém a contingência também pode ser reconhecida no mundo espiritual [ . . .] Quando se trata do Espírito e de sua ação, devemos tomar cuidado para que não nos induza em erro o impulso bem-intencio- nado do conhecimento racional, que bem gostaria de apresentar como necessários fenômenos que são apenas contingentes — ou, como se diz, gostaria de construí-los a priori f. . .j É verdade que a Ciência e a filosofia têm por tarefa conhecer a necessidade por sob a capa da contingência. Contudo, disso não devemos inferir que o contingente resulta de nossa representação subjetiva, e que portanto basta afastá-lo para alcançar-se a verdade. Quando a Ciência, mo­ vida por esse impulso, segue unilateralmente uma tal direção, então justifica a crítica de ser ela um jogo gratuito, um pedantismo estéril.15

De resto, o historiador, se quisesse a todo custo achar sentido às custas do acidental, estaria trocando de gênero, pois confundiria his­ tória e poesia. Aristóteles já observava isso na Poética: compete à poesia, não à história, ordenar as ações e situações com base num universal. E Hegel repete quase com as mesmas palavras essa distin­ ção entre conteúdo poético e conteúdo histórico. O poeta tem o dever de transformar o individual em tipo; mas esse direito o historiador não possui, pois, por sob o tipo substancial que pode orientar sua explicação, ele não demora a encontrar o formigar dos acontecimen­ tos que se furtam a toda e qualquer conexão (ohne inneren Zusam­

menhang). Se desprezasse esse elemento acidental e se ativesse apenas

ao que pode ser unificado por um sentido, ele desconheceria a espe­ cificidade do gênero que está praticando.'6 Mas, disso, segue-se que devemos dar razão a Aristóteles quando este afirma que a poesia é “mais filosófica” do que a história? é evidente que não. Se o indi­ vidual que interessa ao historiador escapa em tão grande medida à dominação do eidos, não cabe porém concluir que o histórico seja apenas o mais baixo grau do sublunar.

Por que Aristóteles pensou assim? Por que, seguindo-o, a tradição dita “racionalista” identificou sem maiores formalidades Geschichte e

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Historie, compreensão do passado e cronologia dos acontecimentos?

Porque ele e ela caíram na cilada de uma alternativa simplória, uma dessas alternativas do Entendimento: ou as propriedades de um con­ teúdo podem ser deduzidas de um universal ou resultam do jogo das causas externas — e, como este é o caso do conteúdo histórico, ele só pode ser relegado ao campo do factual, do événementiel, abando­ nado pois aos caprichos da tuché. . . Na base da desvalorização do objeto histórico temos, pois, apenas um ideal bastante limitado de inteligibilidade — um ideal dominado pela oposição abstrata de dois pólos: epistemé/doxa. “ Saber”, assim, significaria sempre pôr a aci- dentalidade em xeque, de algum modo, ou fazê-la recuar: abstrair seria o mesmo que expulsar o inessencial — compreender, expelir o fortuito. Mas, assim, o Entendimento também reconhece o ser positivo e indelével disso que ele expulsa.17 Consegue mais uma vitória sobre o sublunar, conquista-lhe mais uma província, porém apenas para confirmá-lo, afinal, em seus direitos. Ora, ao contrário dessa epistemé voluntarista e conquistadora, o movimento do Conceito não faz avan­ çar a razão nem recuar o acaso: deixa que este se negue, que o inessencial se confesse como o que é. Assim, Hegel pode a um só tempo reconhecer a contingência intrínseca do conteúdo histórico e fazer da Weltgeschichte a curva da Necessidade — porém da Neces­ sidade nadificante, que nada mais tem a ver com a progressiva impo­ sição de uma figura de sentido. Não fosse assim, que inconseqüência seria um pensador da Necessidade histórica proclamar, alto e bom som, que a História-do-Mundo não se repete, que é risível considerá-la um campo de experiências e que jamais houve “lições da História”. Se o pensamento hegeliano da História-do-Mundo se inspirasse em alguma intenção epistêmica, que absurdo seria. . . Porém, se admiti­ mos, com Michel Serres, que a epistemé clássica consiste em assumir quer um espaço de jogo (Leibniz), quer um adversário de jogo (Des­ cartes versus o Gênio Maligno), veremos com nitidez que o movimento do Conceito nada tem que se possa comparar com uma epistemé, pela simples razão de que ele se situa fora de qualquer jogo.ig Daí a estra­ nheza desse discurso sobre a História tão afastado da sociologia quanto da crônica — a estranheza, igualmente, desse “objeto” que ele cons­ titui: nem região epistemológica, nem tema de narrativa. Dizer a His­ tória não é dissolver sistematicamente o factual nem assumi-lo: é compreender o factual como uma dissolução necessária.

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Assim podemos entender melhor por que o Conceito jamais se fixa em qualquer formação particular que seja — povo ou Estado. Um Estado determinado pode, no máximo, dedicar-se à realização de seu princípio — e tal operação, localizada e finita por definição, não pode coincidir com a atividade infinita, portanto unicamente dissol­

vente, do Espírito-do-Mundo. Ela visa, ao contrário, a retardar essa

dissolução, a prolongar o máximo possível uma particularidade que o Espírito deve destruir para se realizar. De modo que a palavra

atividade (Tätigkeit) não detém o mesmo sentido quando designa o

trabalho do Conceito e o fato de um povo, ou Estado, perseguir um interesse histórico determinado. Entre a atividade nadificante do Es­ pírito-do-Mundo e a conservação em seu ser de cada um dos Espíritos particulares, existe por definição uma defasagem: do ponto de vista da História-do-Mundo, os Estados não passam de momentos evanes- centes. Acerca desse ponto, que é fundamental, basta comparar as últimas páginas da Filosofia do Direito com as páginas finais do texto sobre o Direito Natural para se medir a evolução do autor — ou, mais exatamente, a mutação a que ele submete o conceito de História, ao deixar de pensá-lo em função da “bela vida ética”, para compreen­ dê-lo em função do “Estado moderno”. No Direito Natural a ênfase está na adequação de cada ethos ao Espírito-do-Mundo, na vitalidade de cada qual e não na sua finitude — e Hegel denuncia a idéia de uma “não-concordância do Espírito absoluto com sua figura [Nicht­

übereinstimmung] ”.19 Um ethos se constitui organizando as condições

geográficas históricas que lhe são dadas — penetrando-as, “vivifican- do-as”. Cada um deles é pois mais uma estase do que um momento do Espírito-do-Mundo. “ [ ...] Em cada figura o Espírito-do-Mundo tem uma sensação de si mais surda ou mais aguçada, porém sempre absoluta, e em cada povo, sob cada conjunto de costumes éticos e leis, sua essência, e nela ele desfrutou de si mesmo”.20 E o texto ter­ mina com a enigmática menção à "figura absoluta” na qual a Idéia da vida-ética deverá realizar-se — forma esta que não pode ser “nem a falta-de-figura do cosmopolitismo. . . [nem] a vacuidade de um Estado internacional e da República mundial”.21 Parece então, com base nessas páginas, que a realização da Cidade orgânica será a única tarefa que a História deva cumprir. Por isso, o Espírito-do-Mundo é apresentado como totalizador, e não como negador, de seus momen­ tos: sua pulsação ainda não é histórica. Para que se torne tal, certa­ mente precisará, como afirma Bernard Bourgeois, que o curso do tempo apareça “como um processo criador de autodiferenciação de si”.22 Mas essa criatividade não estará mais ordenada face a qualquer

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obra determinada, a qualquer objetivo finito (realização da vioa-ética, ou Estado perfeito). Pois, ao contrário da historicidade organicista, a História-do-Mundo se limita a fazer justiça, sem nada elaborar, além do sentido. .. Vamos reler a página na qual o Estado é apresentado como a realização terrestre da liberdade, do “fim-supremo-absoluto” cujo desdobramento é a História:23 poderemos constatar que Hegel não diz que a constituição dos Estados é o fim visado pela História, e que ele evita representá-la como uma prática finalizada. Se utiliza o termo “fim-supremo” (Endzweck) a propósito do Espírito-do-Mundo, ele não apresenta esse “fim-supremo” como um objetivo a atingir.24 Não exis­ te “fim-supremo” da História que se assemelhe, sequer de longe, ao que pôde ser sonhado por conquistadores ou fundadores de impérios — nem existe nada, ao termo desse singular percurso, que possa sa­ tisfazer a curiosidade dos que perguntam “para quem, para que fim [se fazem] sacrifícios tão imensos”. Em suma, o fato de ser “a ver­ dadeira teodicéia” não faz da História-do-Mundo uma super-“intriga” — daí, a severidade de Hegel para com o providencialismo antropo- mórfico de Görres.25 Daí, acima de tudo, sua convicção de que a His­ tória propriamente dita somente se deixa vislumbrar nas épocas de crise e de "colisões”, quando a referência às normas éticas e morais se toma vã e os objetivos finitos dos homens se vêem submergidos por uma situação nova. £ somente então que surgem possibilidades propriamente históricas: “tais possibilidades contêm um universal de

uma outra espécie [ein Allgemeines anderer Art] do universal que

forma a base consistente de um povo ou Estado; esse universal é um momento da Idéia produtora”.26 Os “grandes homens” se improvisam como intérpretes dessas possibilidades novas. E as páginas dedicadas ao papel dos “grandes homens” são exemplares para mostrar como a Necessidade histórica, tal como Hegel entende, não apenas rompe com qualquer epopéia providencialista, como ainda escapa a todas as redes demasiado humanas nas quais seriamos tentados a inscrevê-la, a lê-la.

Com efeito, a existência dos “grandes homens” documenta a de- fasagem entre a História e a instituição. “ Empresários do gênio do

mundo", “ indivíduos da História-do-Mundo”, eles somente aparecem

quando há grande subversão — passagem de uma ordem instituída a outra, destruição e fundação de impérios. “ [ ...] Eles haurem seus fins e vocação não apenas do transcurso pacífico das coisas, ordena­ do, santificado pelo sistema vigente [das bestehende System] [. . . ] mas do Espírito interno, ainda subterrâneo”.27 Assim, mesmo que eles fundem ou dirijam um Estado, sua ação ultrapassa a esfera do Estado — e é por isso que devemos dizê-la heróica. Pois a era heróica é a

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era “pré-legal”, a idade anterior à era prosaica do Estado (staatslose

Zustand), e propícia à eclosão das individualidades geniais.28 Ora, o

“grande homem”, nisso igual aos heróis míticos ou trágicos, escapa aos critérios de toda moralidade constituída. Se realiza o universal, é por vocação, não por obediência — e deve apenas a si mesmo a lei que o governa. Enquanto no Estado, onde o universal reina a céu aberto, onde “a vitalidade do individual parece suprimida, ou secun­ dária, ou insignificante”, o “grande homem” marca o ressurgimento do indivíduo pré-estatal — do indivíduo substancial que não está submetido ao universal, porque ainda não se separou deste. . . Seria um grande erro imputar-se a alguma nota “romântica” (bastante rara no autor) essa interpretação do homem histórico. É mais correto dizer que ela é a contraprova da convicção de que a História-do-Mundo e a sucessão dos Estados são coisas muito diferentes. Por sob a histori- cidade estabilizada no Estado, há pois a historicidade subterrânea e subversiva, a História-do-Mundo, que sempre termina por refutar o instituído — e é dela que as individualidades históricas são como que os mandatários.

Podemos indagar, é verdade, se esse mandato que o Espírito-do- Mundo lhes confere não reduz a uma simples aparência a genialidade dos “grandes homens”. Pode-se dizer que são, mesmo, responsáveis pelo que fazem? E, se têm faro para “as coisas cuja hora chegou”, não será sinal de que são inspirados, mais do que heróis? “Eles pare­

cem [scheinen] haurir sua obra de si mesmos, e seus maiores feitos

produzem estados de coisas e relações mundanas que parecem ser realização e obra apenas deles”.29 E, assim, nos “grandes homens” a sorte, a oportunidade prevalece sobre a genialidade: simplesmente

aconteceu que seus fins particulares coincidissem com o que o curso

das coisas exigia. .. Por esse viés, é evidente que a análise hegeliana está mais perto de um fatalismo do que da exaltação de alguns indi­ víduos, membros de uma elite: será ela que Nietzsche visará, ao cri­ ticar esses que só vêem, “em todos os grandes homens, a expressão mais exata das leis da história, as borbulhas visíveis à tona do rio”.10 E, no entanto, os “grandes homens” não foram, tampouco, os fantoches de uma finalidade sobre-humana. Se “toda a sua natureza consistiu apenas em sua paixão”, isso não quer dizer que eles estives­ sem possuídos por um Fatum. Devemos notar que Hegel, na Estética, insurge-se contra essa concepção do herói trágico. Sófocles errou (afir­ ma) ao introduzir Héracles, no seu Filoctetes, à maneira de deus ex

machina, parecendo pois fazer de seu herói mero joguete de “um arbí­

trio externo”. "O conteúdo divino deve aparecer justamente como o 29

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que é mais intimo aos indivíduos".31 E não haveria pathos trágico se a vocação do herói lhe fosse ditada por um poder superior, em vez de ser o centro que unifica todos os seus gestos (o amor fraterno de Antígona, a paixão amorosa de Romeu, que transparece até mesmo no duelo com Teobaldo). Ora, o homem histórico é tão pouco agido quanto o herói patético. E sua inconsciência não vem de ele, porventura, des­ conhecer a força superior que o manobra. Em que, aliás, consiste tal inconsciência? Louis Althusser dá uma resposta bastante adequada, à sua maneira, quando afirma enxergar, nessas páginas da Filosofia da

História, Hegel confessando que é “ impossível” a “ previsão histórica” :

“os grandes homens não percebem nem conhecem o futuro [. . . ] não passam de adivinhos que, incapazes de conhecer, apenas pressentem a iminência da essência por vir [ . . . ] ”.32 E disso o autor conclui — com toda a razão — que a História hegeliana, tornando impensável um saber relativo ao futuro, veda igualmente uma “ciência da polí­ tica”. Tem razão, dizíamos. Mas sob uma condição: a de acrescentar­ mos que a previsão política sequer poderia interessar a Hegel enquanto

filósofo da História-do-Mundo. É somente o futuro a curto prazo de

uma formação política determinada, ou a solução para uma situação conflitual particular, que pode favorecer algum tipo de previsão — mas não a História-do-Mundo, que, por definição, excede todas as configurações finitas em cujo interior a previsão pode ter sentido. Na escala da História-do-Mundo, nenhum modelo de “ Necessidade” dos que nos são familiares tem como funcionar, porque ela não é um devir que vai se tornando inteligível graças a certos dados (relações de força, estratégias, recursos de Estados etc.). E é justamente por isso que, na melhor das hipóteses, só podemos imputar seus progres­ sos e reviravoltas à ação, inconscientemente racional, dos “grandes homens”. O que é um modo de relembrar que o Entendimento é in­ capaz de dominar esse processo que devasta, que nada edifica. É so­ mente à margem da História que o Entendimento pode conseguir — e isso de maneira bem localizada — “explicar” ou prever, porém esse modo de inteligibilidade se evidenciará impróprio ao se tratar de al­ guma grande modificação no “curso das coisas”. Traduzindo: da obra de um “grande homem” .. . Que fosse inevitável ruir o Império, na China, ou o regime do Kuomintang, isso o Entendimento histórico (ou seja, sociológico) ainda pode explicar mediante uma combinação de causas. Porém, como compreenderá, partindo delas, que a China tenha se transformado numa nação líder do Terceiro Mundo? Daquilo para isso, que continuidade — inteligível — éíe poderia descobrir? Como a História poderia albergar a previsão e as estratégias bem dirigidas,

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essa História que só aparece sob a forma da ruptura? E, no vocabu­ lário hegeliano, para formularmos — neste caso — que só existe ruptura, diremos, simplesmente, que Mao é um “grande homem”. Só que isso não implica, absolutamente, que consideremos o mundo fa­ dado a um nacional-comunismo cujos desígnios começariam a se rea­ lizar em Mao. A obra de um "grande homem” jamais enuncia tanto assim: ela apenas nos incute a sensação de que o trabalho do Espírito- do-Mundo não tem medida comum com nenhuma política finita, com nenhum desempenho no finito. E é por isso mesmo que a ação histó­

rica, no sentido forte do termo, tem de ser meio cega.

Os “grandes homens”, é verdade, recebem também o nome de “clarividentes” (Einsichtigen), e disso poderíamos inferir que eles adi­ vinham o futuro do mundo da mesma forma que decifrariam os enig­ mas de um oráculo. Mas isto só seria verdade caso a História seguisse um vetor que o Entendimento finito pudesse conhecer previamente, pelo menos em tese, pelo menos de jure. E isto só seria verdade se o Espírito-do-Mundo fosse autor de um roteiro ao qual alguns hiper- lúcidos pudessem, ocasionalmente, ter acesso. A crítica de Louis Althusser tem pelo menos o mérito de mostrar que, contrariamente à lenda escolar, não é isso o que se deve censurar em Hegel, e sim o fato de haver pensado tão cabalmente a História mediante a categoria do Presente que ele termina — no que nos aparece como um grande paradoxo — neutralizando-a enquanto processo articulado e, portan­ to, objeto de ciência. Contudo, por que enfatizar tanto que os “grandes homens hegelianos” jamais podem ser mais do que adivinhos? Tanta ênfase seria um modo de lastimar que a História-do-Mundo não con­ sista num texto legível, consignado em algum álbum da deusa? Não lançaremos essa suspeita contra Louis Althusser. É de outra coisa que ele constata a falta: de uma historicidade que propiciaria um recorte determinista. Hegel, porém, não julgaria essa exigência como essen­ cialmente distinta de uma exigência providencialista: para ele, ela não passaria de uma outra maneira de submeter a um código de inteligi­ bilidade finita uma Necessidade histórica que é de outra natureza. E então, para concluir? O que pode ser essa “ Necessidade” dialética, a um só tempo destruidora dos conteúdos finitos e articuladora da verdade deles? E o que devemos agora perguntar, para depois poder­ mos decidir o que acaba vencendo, afinal, na conceitualização hege- liana: ou a mutação de sentido que a noção de “Necessidade histó­ rica” sofre, ou a sobrevivência, apesar de tudo, contra tudo, do tema teológico.

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üs providencialistas (escreve Hegel) “pensam honrar a Providên­ cia Divina ao excluírem dela a Necessidade”. Em outras palavras, à "Necessidade cega”, ao fato de que determinadas condições produzem "coisa completamente diferente”,33 eles opõem a operação da vontade divina sub raíione boni. Assim, fica clara uma divisão: por um lado, a má Necessidade criticada por Aristóteles, o engendramento — que jamais poderá ser representado por uma ligação apodítica — do con­ seqüente pelo antecedente (a construção dos alicerces não acarreta, necessariamente, a edificação do resto da casa); por outro lado, uma finalidade técnica que nunca falha em seu desempenho. Essa divisão é recusada por Hegel. Recusada com tanto vigor que ele até parece reconhecer que a História, num sentido, é o reino da "Necessidade cega”. O ator histórico, com efeito, é exatamente o contrário do homem-que-sabe, do bom técnico platônico, e a ação histórica é uma finalidade inevitavelmente embaralhada pela irrupção da "Necessida­ de”. Nela também se encontra, sempre, a mesma descontinuidade entre antecedente e conseqüente que caracteriza a “Necessidade cega”: “na História-do-Mundo, os atos dos homens geralmente resultam em algo

diferente do que foi projetado... [Os homens] é claro que realizam

o que é de seu interesse, mas nesse movimento algo mais, e diferènte, também é produzido”.34 Nessas condições, seria ocioso querer analisar exaustivamente uma ação histórica, considerada como uma seqüência finalizada, ou como um encadeamento de seqüências finalizadas — não importa que dimensão se atribua aos atores (indivíduos, ou clas­ ses, ou grupos de pressão), não importa que móveis se dêem à sua conduta (interesses econômicos, ou ambição imperialista, ou egoísmo de classe etc.). Sejam quais forem os protagonistas (a “burguesia ne- gocista” e o “proletariado”, Luís xv e Frederico n ), a História-do- Mundo passa bem longe de seus projetos e da colisão de seus projetos. E, se tentarmos encontrar nela, a todo custo, linhas de finalidade "técnica”, a decepção será inevitável: os comportamentos finalizados, nesse campo, só podem ser comportamentos desviados pela tuché, se­ qüestrados para bem longe de sua meta, no rumo de “algo inteira­ mente diferente” do que fora visado pelo autor. O ator histórico hege­ liano é o mau demiurgo, que se deixa dominar pela fortuna — ou o aprendiz de feiticeiro, o criminoso que “não quis fazer isso”, tal como o incendiário cujo exemplo encontramos na Filosofia da His­

tória: ponho fogo à casa de meu inimigo, das vigas as chamas sobem

à estrutura, dessa casa passam a outra, e assim arde a cidade inteira.. . O exemplo faz-nos pensar o que diz Aristóteles da acidentalidade no mundo sublunar: “A coisa acidental é produzida e existe, não en­

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quanto ela mesma, porém enquanto outra coisa-, a tempestade foi a causa de você descer em Egina, coisa que você não queria”. O Espí­ rito-do-Mundo não passaria, então, do Gênio Maligno do sublunar? Se temos de escolher, é melhor responder pela afirmativa do que conceber um Deus autocrata dirigindo o curso do mundo a seu ta- lante, e cujos desígnios não fossem completamente impenetráveis aos atores da História. Pois não é por falta de reflexão que estes ignoram o que fazem. Entre sua conduta e a “finalidade” do Espírito-do- Mundo, há uma diferença bastante profunda. Tão grande que só ela nos permite perceber a finalidade histórica: medindo como o fim que

acaba de se realizar tem tão pouco em comum com os objetivos que

o tempo visou, medindo que distância há entre a política belicista de Poincaré, em 1914, e a dissolução da Áustria-Hungria e o nascimento da União Soviética, que são, se assim podemos dizer, seu “resultado” em 1918. Apenas graças a esses descompassos é que o Espírito-do- Mundo se deixa entrever.35 E, quando Hegel compara sua marcha à de um gigante, “irresistível, de movimento tão imperceptível quanto o do sol, tomando os caminhos melhores e os piores”, é com o fito de acentuar a desproporção entre o que efetivamente se realiza e a vã agitação dos atores.36 É por isso que, do ponto de vista hegeliano, será menos errado ver no curso do mundo a vitória da tuché sobre a razão finita do que nele enxergar a atividade de uma teleologia divina,

porém ainda técnica, ainda em dimensão humana, da qual os homens

poderiam, de direito, ser cúmplices ou testemunhas. Ê por sua própria essência que toda prática finita é inadequada à "atividade infinita do Fim”: por ser instrumental, por ter de ajustar meios bem ou mal escolhidos ao objetivo que ela se propõe. . . 37 É também por definição que o que é “substancial”, numa ação histórica, se mantém opaco a quem toma parte nela. E é por isso que ninguém jamais terá direito a se declarar depositário do Saber-de-Si do Espírito. E ainda por isso que o estadista que acreditava praticar a política do “mal menor” não é, propriamente, culpado de não ter sabido que realizava uma “trai­ ção” objetiva. É verdade que a Razão na História pretende ser a refutação cabal da tese de Hume segundo a qual as ações podem ser louváveis ou censuráveis, porém não há sentido em dizê-las razoáveis ou não.38 Mas é tão grande a disparidade entre a finalidade humana e a histórica, que fica difícil conceber como um agente histórico possa ser responsabilizado pelo que é racional ou irracional em sua con­ duta. O “mestre-escola” é ridículo — quanto não se reiterou isso, após Hegel — quando pretende julgar "moralmente” “os indivíduos excepcionais da História-do-Mundo”. Mas não seria menos ridículo

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querer, a todo custo, justificar moralmente esses indivíduos39 ou, mais ainda, querer converter o erro histórico em crime de direito comum. A homonímia da finalidade no finito e da finalidade histórica pelo menos protege Hegel do fanatismo da “responsabilidade objetiva”. Seria ridículo sequer imaginarmos que o “julgamento da História” algum dia fosse pronunciado no recinto de um tribunal de justiça.

Essa desproporção entre finalidade histórica e finalidade humana porém não impede Hegel — é verdade — de afirmar que “a Provi­ dência Divina se porta como a astúcia absoluta com relação ao mundo e a seu processo” — e essa imagem parece remeter-nos diretamente à teleologia tradicional e a Bossuet.40 PorCm a semelhança é enganosa, pois, de Bossuet a Hegel, temos pelo menos uma diferença — Deus não está mais incumbido de dirigir os nefócios do mundo, sua ativi­ dade não pode mais ser descrita em termos de causação, por isso sua “astúcia absoluta” não é sinal de uma onipotência técnica. É claro que podemos dizer que o Espírito-do-Mundo se serve das paixões humanas como um construtor se serve de materiais, para impor-lhes uma destinação que não estava em sua natureza. Porém a analogia não diz respeito à realização da obra. Se há semelhança entre o Espírito-do-Mundo e o técnico, ou o usuário da máquina, é somente na medida em que este “se conserva e se preserva intacto” por trás das forças naturais que agem em seu lugar: “o Espírito-do-Mundo não se move no jogo exterior das contingências — é mais correto dizer que ele é o determinante absoluto, que se mantém firme frente às contingências que utiliza e domina”.41 Passado esse ponto, a compa­ ração com o produtor humano não tem mais cabimento, porque o Espírito, realizando o fim que é seu, nada produz, nada transforma; não realiza nenhum fim determinado, nem mesmo por procuração, ao contrário da atividade humana finalizada, que deve efetivar seu obje­ tivo num objeto — que continua sendo exterior a ela. Portanto, a “astúcia absoluta” do Espírito não consiste em fazer os homens exe­ cutarem um trabalho que ele poderia realizar diretamente, se não fosse tão engenhoso... Não é a habilidade do Espírito como artesão ou engenheiro que a “astúcia” deve fazer-nos admirar, mas o fato de sua atividade ser o oposto de uma intervenção, de uma violência.*2 Mais radicalmente ainda do que em Aristóteles, o fim visado é não-poético. São os homens, e somente eles, que fazem a História, ao passo que o Espírito é o que nesse fazer se explicita. A História-do-Mundo se­ guramente não é obra da Providência industriosa, como pensavam os teólogos circunscritos ao Entendimento.

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