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2. CAPÍTULO II IDENTIDADE: UMA NOVA CONSTRUÇÃO NO GRUPO

2.4 O GRUPO E SUA CONDIÇÃO OUTSIDER

O homem através do seu processo evolutivo cada vez mais esteve ligado às normas de conduta imposta pela sociedade. Guillaume Coury153 na abordagem das questões relacionadas à economia psíquica154, com amparo nos ensinamentos de Freud, aborda o “sofrimento do homem civilizado”. Nestas questões, relacionadas à economia psíquica, voltam-se os estudos a indicar que o homem protagonista desta sociedade, que segundo Norbert Elias155 está em processo de civilização, tem condições psíquicas para se adaptar ao meio em que está situado. Essas relações e adaptações a esta sociedade “civilizada” fazem com que os indivíduos passem por situações de grande sofrimento.

As sujeições que o indivíduo moderno se submete para conviver com as sociedades são diferentes das situações com as quais ele está habituado no seu meio individual. No grupo que estão inseridos esses usuários de drogas existem

153

COURY, G. Norbert Elias e a construção dos grupos sociais - da economia psíquica à arte de reagrupar-se. In: GARRIGOU, A.; LACROIX, B. Norbert Elias - a política e a história. São Paulo: Perspectiva, 2001.

154

Conforme esclarece Guillaume Coury, a economia psíquica se refere a um desconhecido diálogo entre Elias e Freud, “que buscava então uma explicação do sofrimento do homem civilizado” (Op. cit, p. 125).

155

Na obra “O processo civilizador” (1993, 2º vol.) Norbert Elias tem o posicionamento que o indivíduo, apesar de sua grande evolução em todos os sentidos, ainda não adquiriu a civilização plena, ou melhor, que ainda está num processo de civilização em decorrência de vários fatores. Um desses fatores citado por ele, por exemplo, são as guerras, as quais não retratam atos civilizados.

regras de conduta e costumes que devem ser seguidos. Há uma integração meramente parcial dos estranhos ao seu meio, ficando reservada a integração total do ambiente somente aos seus seguidores.

Cabe, todavia, esclarecer que esses indivíduos integrantes deste grupo de usuários de drogas na região156 onde residem são pessoas discriminadas de certo modo por aqueles moradores mais antigos que não utilizam drogas, os quais já têm toda uma estrutura social estabelecida pelo costume reiterado ao longo de muitos e muitos anos. No capítulo IV se abordará essa situação de discriminação, tendo em vista que em seus depoimentos reconhecem essa particularidade.

Considerando essa reprovação, essa discriminação, dos integrantes desse grupo de usuários de drogas pelos moradores antigos da região onde residem, tem-se esses indivíduos, segundo Norbert Elias157, como sendo os outsiders. Segundo Norbert Elias, os outsiders seriam todas aquelas pessoas que não são aceitas por um determinado grupo estabelecido numa determinada região, justamente por não partilharem as mesmas regras e pensamentos, e também por colocar em risco a própria estrutura organizada ao longo de vários anos ou mesmo gerações. Os grupos tendem a criar os seus costumes pelas práticas aceitas e reiteradas ao longo dos anos, de modo que os mantêm coesos e que, de certa forma, os deixam com uma sensação de segurança entre si, em face justamente do respeito a esse costume.

Por outro lado, esses indivíduos que reprovam os hábitos dos outsiders, que são contrários às suas atitudes, são denominados por Norbert Elias como sendo “os estabelecidos” e, para tanto, o conceituado autor esclarece as condições para o indivíduo participar deste grupo:

A participação na superioridade de um grupo e em seu carisma grupal singular é, por assim dizer, a recompensa pela submissão às normas específicas do grupo. Esse preço tem que ser individualmente pago por cada um de seus membros, através da sujeição de sua conduta a padrões específicos de controle dos afetos.158

156

A Vila Vilela, é uma região já bastante antiga, da mesma forma que muitos dos seus moradores. 157

ELIAS, N.; SCOTSON, N. J. L. Os estabelecidos e os outsiders – sociologia das relações de poder de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

158

Sendo assim, a condição de estabelecido exige que o seu integrante esteja submisso a um conjunto de normas, tanto àquelas decorrentes dos costumes reiterados pela própria comunidade quanto também por aquelas decorrentes da sociedade como um todo. Há que se ressaltar que os integrantes desse grupo, denominado “os estabelecidos”, ficam compelidos a rejeitar tudo o que vivenciam “como uma ameaça a sua superioridade de poder [...] e a sua superioridade humana, a seu carisma coletivo, através de um contra-ataque, de uma rejeição e humilhação contínuas do outro grupo.”159

Com efeito,

pode-se ver com mais clareza, por exemplo, o papel desempenhado nas relações estabelecidos-outsiders pelas diferenças entre as normas e, em especial, entre os padrões de autocontrole. O grupo estabelecido tende a vivenciar essas diferenças como um fator de irritação, em parte porque seu cumprimento das normas está ligado a seu amor-próprio, às crenças carismáticas de seu grupo, e em parte porque a não observância dessas normas por terceiros pode enfraquecer sua própria defesa contra o desejo de romper as normas prescritas.160

A relação “estabelecidos-outsiders”161 na Vila Vilela não chega às beiras de um extremo da intolerância, mas, conforme já se afirmou acima, esses usuários são discriminados com bastante freqüência, justamente porque suas atitudes incomodam os moradores mais antigos, e de certa forma também os mais novos. Há a sensação de preocupação com os estabelecidos pela ameaça constante de que esse comportamento dos outsiders acabe influenciando cada vez mais os adolescentes da região. E anexa a essa situação sempre vai existir a possibilidade do aumento da delinqüência e, por sua vez, o aumento constante dos problemas sociais.

Outro detalhe que merece ser trabalhado ainda em relação “estabelecidos-outsiders” na Vila Vilela reside na questão da balança do poder. Ou seja, nas mãos de quem repousa o poder, entendendo-se no sentido do controle da

159

ELIAS, N.; SCOTSON, N. J. L. Os estabelecidos e os outsiders – sociologia das relações de poder de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 45.

160

Ibid., p. 49 161

Designa-se aqui como estabelecidos os moradores antigos e os demais que seguem aqueles costumes que mantêm a regularidade e a uniformidade na organização social da vila; já os outsiders seriam os integrantes do grupo estudado, os quais têm um comportamento considerado anormal.

organização social. Para uma melhor compreensão, pode-se citar como exemplo a situação dos controles dos morros cariocas por conta dos grupos de traficantes, o que se configura na balança do poder que as regras são impostas pelos traficantes. Neste aspecto, na região da Vila Vilela essa situação não aconteceu e não há sinais de que isso venha a acontecer. O controle social está mantido por conta dos costumes reiterados pelos estabelecidos.

Os estabelecidos entendem que as regras, os seus costumes, consagrados por longos anos, de geração para geração, não podem ser abalados, muito menos descartados, posto que daí que subsiste a sua hegemonia. No capítulo IV fica evidente a preocupação dos estabelecidos com a violência que vem aumentando por causa do aumento do uso de drogas, e que isso inclusive já vem alterando certos costumes antigos.

A resistência a esses comportamentos, ditos anormais, que na Vila Vilela se traduz na discriminação, aplicada pelos estabelecidos em relação aos outsiders é que solidifica sua estrutura e o seu poder.