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Grupos de Interesse e defesa constitucional de privilégios

A literatura é unânime em afirmar que a Constituição brasileira de 1988 foi pródiga em garantir direitos e privilégios a grande número de grupos de interesses (também chamados grupos de pressão, lobbies, etc).

Bonavides (1996) diz que os grupos de interesse são uma realidade que tendem a ofuscar os partidos e os sindicatos, rumando para a institucionalização – como ocorreu com

os partidos no amadurecimento do sistema democrático – o que, aliás, já ocorreu nos Estados Unidos, onde a atividade dos grupos é bem mais aceita do que em outros países97.

Os grupos de interesse podem agir dentro e fora dos partidos. Em ambos os casos os grupos têm necessidade de se articular em torno dos parlamentares para defender suas posições na arena legislativa.

Segundo Barroso (1997) os grupos têm uma atuação transitória sobre o poder, apesar de freqüente, pois seus objetivos são, em geral, transitórios, pois buscam se aproximar do poder para conseguir influenciar suas opções. Já os partidos procuram adquirir o poder para, então, administrar os recursos disponíveis, como objetivo político permanente. Estes últimos teriam uma perspectiva global, voltada a interesses gerais, enquanto os primeiros estariam interessados na defesa apenas de seus interesses de grupo, portanto, portadores de uma perspectiva parcial, limitada pelo seu ponto de vista. Os partidos visam a representação do povo no Estado, no âmbito do público, e os grupos representam uma classe de pessoas no campo social, no âmbito privado. Por fim, os partidos têm um programa de atuação e detêm responsabilidade política, enquanto os grupos de pressão nem sempre expõem ao público seus verdadeiros objetivos e não são politicamente responsáveis98.

De acordo com Pasquino, há três formas de atuação dos grupos de interesse sobre a atuação parlamentar: a) os grupos de pressão controlam o partido, não só com financiamento de campanhas, mas chegando a escolher os dirigentes e determinando a política a seguir, o que “engessa” a atuação partidária, impedindo combinações que busquem um apoio mais amplo; b) os grupos de pressão são dominados pelos partidos, o que os impede de articular autonomamente as questões atuais da sociedade, ideologizando suas ações e diminuindo, assim, sua capacidade de fazer compromissos, e c) existe identidade de interesses entre alguns grupos e alguns partidos sobre temas importantes, mas jamais sobre todos os temas politicamente relevantes, mesmo porque os programas partidários não são redutíveis a tão-somente as pressões dos grupos.

No Brasil, alguns grupos de pressão têm atuação político-partidária, à direita e à esquerda do espectro político.

97

Ver FARHAT, Saïd. O Lobby. O que é. Como funciona. Ética e transparência na representação junto a governos. São Paulo: Editora Peirópolis, 2007.

98

BARROSO, Pérsio Henrique. Constituinte e Constituição: Participação Popular e Eficácia Constitucional (1987-1997). Dissertação de Mestrado. Disponível em <http://www.buscalegis.ufsc.br/arquivos/mestra00.pdf>. Acesso em 03 de julho de 2009.

São conhecidas as relações e a proximidade entre grupos de pressão e partidos políticos no Brasil Basta lembrar que o sindicalismo brasileiro teve fortes ligações com o PTB de Getúlio Vargas. O PSB pernambucano, quando liderado por Miguel Arraes, sempre teve fortes ligações, localmente, com a Federação de Trabalhadores Rurais (FETAPE).

Grandes grupos econômicos não só apóiam como financiam grande parte dos partidos. A União Ruralista Brasileira, criada para defender os interesses dos produtores rurais tem sólidas bases partidárias em partidos localizados à direita do espectro partidário, e as grandes construtoras do país costumam participar regularmente do financiamento das campanhas eleitorais.

Os movimentos de trabalhadores, por sua vez, utilizam, no plano político, partidos cujos parlamentares tenham sido apoiados eleitoralmente pelos sindicatos e entidades de trabalhadores ou partidos que possuem vinculação com áreas sindicais. Tal relacionamento pode ser melhor observado a partir da tabela a seguir:

Tabela 1.6 – Partidos com influência sobre organizações sindicais

PARTIDO Organização sobre a qual tem influência PT - Partido dos Trabalhadores CUT - Central Única dos

Trabalhadores

- PMDB - Partido do Movimento

Democrático Brasileiro

CGT - Confederação Geral dos Trabalhadores

CGT II - Central Geral dos Trabalhadores

PTB - Partido Trabalhista Brasileiro

CGT - Confederação Geral dos Trabalhadores

USI - União Sindical Independente PDT - Partido Democrático

Trabalhista

CGT - Confederação Geral dos Trabalhadores

CGT II - Central Geral dos Trabalhadores

Fonte: Barroso, 1997.

Os exemplos e relacionamento ente partidos e organizações são vários. A tabela acima apenas representa as relações mais sistemáticas na prática, muitas outras organizações têm relação com um ou mais partidos. No tocante à relação entre os grupos de interesses e os próprios parlamentares, a literatura é rica em pesquisas. A realização de um survey específico sobre esse tema forçosamente nos levaria a um excessivo afastamento do tema. Assim, recorri a um estudo realizado por Dalson Macedo, gentilmente cedido, mostrado na tabela a seguir:

Tabela 1.7 – Condições em que os grupos de interesse influenciam o comportamento dos congressistas

Autores (ano) Argumentos

Clawson, 1999; Langbein, 1986; Neustadtl, 1990; Sabato 1985.

Contribuições de campanha garantem demasiado acesso aos congressistas. Em especial quando o tema tem pouca visibilidade.

Choate, 1990; Godwin, 1988; Sabato, 1985.

Doações mudam a direção do voto do parlamentar (persuasão), principalmente em temas técnicos e especializados.

Clawson, 1999; Stratman, 1991; Fleisher, 1993.

Demandas particulares são atendidas em detrimento do interesse público. Isso é comum quando os benefícios são concentrados para os grupos de interesse e os custos são difusos pelo eleitorado.

Conway, 1991; Denzau e Munger, 1986; Malbin, 1984; Welch, 1982; Wilhite, 1988.

Quando a opinião publica é indiferente ao tema. Quando a opinião pública se posiciona na mesma direção da demanda do grupo de interesse que efetuou a doação.

Evans, 1986; Sabato, 1985. Quando o grupo de interesse além de fazer doações de campanha também faz lobby.

Fonte: Figueiredo Filho (2009)99.

Segundo Carlos Ari Sundfeld (2009), o traço central da Constituição de 1988 é haver instituído um constitucionalismo

[...] destinado a assegurar posições de poder a corporações e organismos estatais ou paraestatais. O conteúdo da Carta de 1988 é menos para proteger o cidadão frente ao Estado do que para defender essas corporações e organismos contra as deliberações governamentais e legislativas. (SUNDFELD, 2009, p. 15).

Sundfeld (2009) crê que a metodologia adotada para a formulação do texto constitucional abriu as portas para que os mais diversos lobbies de organizações estatais e paraestatais pudessem defender seus interesses.

Quanto mais organizadas fossem essas entidades, mais articuladas eram suas investidas para garantir a inserção ou manutenção de nichos de poder.

A Constituição seria, assim

[...] resultado do arranjo político que dividiu o poder e os recursos públicos entre organizações concretas, com interesses concretos: órgãos de ensino público básico, universidades públicas, órgãos e entes estatais da saúde, INSS, FUNAI, INCRA, Administração Fazendária, Banco Central, órgãos e entes ambientais, ministério e secretaria de cultura, forças armadas, tribunais de contas, dezenas de tribunais, procuradorias, defensorias, empresas estatais da época (TELEBRAS, VALE, PETROBRAS...), OAB, CBF, Sistema S, sindicatos, etc. Assim, p.ex., a garantia do direito os cidadãos à saúde (art. 196) é um prefácio do principal: atender às reivindicações das corporações públicas de saúde

99

Figueiredo Filho, Dalson Britto. O Elo Corporativo? Grupos de Interesse, Financiamento de Campanha e Regulação Eleitoral. Dissertação de Mestrado. UFPE, Recife: 2009

por recursos e por um certo tipo de organização, ou sistema único (art. 197 e seguintes.) (SUNDFELD, 2009, p. 15).

O mesmo autor arremata:

Em suma, os cidadãos que tiveram a atenção primária da Constituição foram policiais, fiscais tributários, militares, juízes, membros do ministério público, defensores, professores de universidades oficiais, profissionais de saúde pública e assim por diante. (SUNDFELD, 2009, p.15).

O autor defende a idéia de que os organismos e corporações estatais e paraestatais ganharam proteção na Constituição contra reformas administrativas ou reorganizações institucionais que possam vir a ser tentadas por meio de lei ordinária, tendo em vista as dificuldades impostas para adotar modificações por meio de reformas constitucionais.

Nossa Constituição seria, segundo Sundfeld (2009), um mecanismo de afirmação e proteção de direitos de organismos e corporações cujo efeito concreto é o de limitar o alcance de iniciativas administrativas, governamentais e legislativas.

Para Sundfeld, o texto constitucional engessa a ação do governo, diminuindo-lhe os poderes de que poderia dispor para enfrentar crises e favoreceu a judicialização, pois ampliou os poderes dos juízes e do Ministério Público (que passou a deter a iniciativa para praticamente qualquer tipo de ação judicial). Assim, “o germe da crise de governabilidade estaria lá, latente, sempre presente”100.

Brandão (2009), com suporte em Waldron (2004)101, vê o problema da presença de temas que não são de natureza constitucional como a positivação de privilégios. Ele chama esse fenômeno de “entrincheiramento constitucional de privilégios”:

A positivação constitucional de direitos se consubstancia em atitude que combina autoconfiança e desconfiança despropositadas: autoconfiança, no sentido de estar certo de que aquilo que foi retirado do processo deliberativo ordinário é, de fato, matéria de direito fundamental, assim como [a certeza]102 de que inexistirão controvérsias a respeito de sua interpretação e aplicação; desconfiança, pois está implícita na positivação constitucional a noção de que qualquer visão alternativa adotada pelo legislador em um ou dez anos será equivocada, de maneira que a perspectiva do seu autor deve ser colocada acima do alcance da revisão legislativa. (BRANDÃO, 2009, p. 261)

100

Para Sundfeld, o que evita as crises de governabilidade é a existência de um certo “compromisso com a governabilidade” que permite que, de tempos em tempos, module-se a Constituição, alterando-se esses elementos críticos, por meio de emendas constitucionais. Sundfeld, 2009. Op. cit.

101

WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press, 2004, p. 222. 102

Isso significa que grupos de pressão vão agir para evitar que temas de seu interesse sejam suscetíveis de reformas, e que a melhor estratégia de que dispõem para manter seus interesses intactos e, ao mesmo tempo, mantê-los a salvo de tentativas de reformas é inscrevê-los no texto constitucional103.

103

Ruslan Khasbulatov, presidente do Soviete Supremo durante a presidência de Boris Yeltsin, mantinha em seu staff um grupo de constitucionalistas cuja função era apontar quais os projetos de lei de sua autoria que conflitavam com a Constituição. Quando isso ocorria, Khasbulatov convertia o projeto de lei em emenda constitucional, submentendo-o ao procedimento respectivo. Isso lhe dava a possibilidade de usar o procedimento de emendas constitucionais como um instrumento de ação pública. In: BRANDÃO, Rodrigo. Op. Cit., p. 261.

2 SEGURANÇA PÚBLICA COMO POLÍTICA PÚBLICA

Neste Capítulo discuto a segurança pública como política pública. Inicialmente, apresento uma série de conceitos extraídos da literatura mais recente sobre o tema, no item 2.1. Em seguida, apresento as características que deve possuir uma política pública.

No item 2.2, verifico como algumas políticas públicas são tratadas na Constituição e na legislação infraconstitucional. Em seguida, analiso o processo de reformas constitucionais realizado no passado recente do país e ao, final, mostro que a política de segurança pública não foi alterada substancialmente.

O termo políticas públicas possui diversas concepções (jurídica, sociológica, administrativa). Para os objetivos deste trabalho, nossa preocupação está centrada em apenas dois aspectos conceituais: a política pública como decisão política estatal e como serviço público. Isso se dá pela necessidade de testar a hipótese de inadequação da política pública de segurança e pela tentativa de pontuar como a política pública de segurança vem sendo tratada no âmbito das demais políticas públicas de âmbito nacional.