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Antes de prosseguir, torna-se pertinente a realização de algumas considerações acerca do matrimônio para que se entendam as expressões usadas pelos padres para classificar os batizandos nos registros batismais. A Igreja Católica instituiu o sacramento matrimônio na Europa, em 1563, a partir do Concílio de Trento (MACHADO, 2006). Desde então tentou normatizar a união entre homens e mulheres em torno deste sacramento passando a reconhecer como legítima apenas as uniões estabelecidas pelo matrimônio. Essa era a forma pela qual a Igreja tentava impor seu regramento social na Europa, a partir da monogamia e da união indissolúvel entre homens e mulheres (GOLDSCHMIDT, 2004).

No Brasil, porém, estas determinações ganharam uma tentativa de normatização somente a partir das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707. Com isso, observa-se nos assentos batismais que os filhos concebidos dentro do sacramento matrimônio eram considerados como filho legítimo. Para todos os outros que por ventura fossem provenientes de outros tipos de relações, fora do matrimônio, seriam classificados com as expressões mãe solteira, pai incógnito ou filho natural. Em todas estas situações os filhos eram considerados como ilegítimos. Assim, segue o gráfico abaixo:

Gráfico 5: Legitimidade Entre os Guaranis Missioneiros (Capela De Santa Maria, 1814-1822)

Fonte: Registros de Batismo. Santa Maria da Boca do Monte. Mitra Diocesana de Santa Maria (1814-1822).

Em muitas narrativas sobre as mulheres indígenas guaranis emprestava-se a estas a imagem preconceituosa da “mulher prostituta”. Auguste de Saint-Hilaire, em passagem pelo Rio Grande do Sul no século XIX, observou que muitas índias guaranis prostituíam-se com luso-brasileiros, sobretudo, com aqueles que eram soldados. Para Saint-Hilaire isso acontecia

45%

55% filhos legítimos

“porque as mulheres guaranis, não tendo nenhuma ideia de futuro, não podem possuir pudor” (1999, p. 156). O viajante, seguindo sua descrição sobre as mulheres guaranis, escreveu que “entregam-se ao primeiro que se apresenta, seja negro, seja branco, e a mais das vezes não exigem retribuição alguma” (1999, p. 157).

No entanto, os dados dispostos nesta pesquisa possibilitam contextualizar a visão do viajante. Pelo percentual de filhos legítimos (45%) podemos observar uma expressiva representatividade de famílias guaranis. Analisando apenas estes registros encontra-se somente um em que aparece mãe índia com pai branco. Estes dados indicam que praticamente não havia uniões mistas entre “brancos” e “índios”, ou mesmo entre “índios” e negros escravos pelo sacramento matrimônio. A ampla maioria dos registros é composta por filhos com pai e mãe indígenas naturais das Missões. Assim, observa-se a saída de muitas famílias de guaranis missioneiros da região dos Sete Povos, vindo a instalarem-se na Capela de Santa Maria.

Na mesma narrativa de Saint-Hilaire também há referências quanto à existência de alguns povoados compostos por famílias indígenas. De passagem pela Capela de Santa Maria, em 1821, ele registrou que nas “estâncias dos arredores de Santa Maria há índios desertados das aldeias. Os homens empregam-se como peões e tem consigo toda sua família” (1999, p. 173). Portanto, nem só de prostitutas se fazia a totalidade demográfica das mulheres indígenas. Como se vê, muitas delas conseguiram constituir famílias. O mesmo vale para os homens guaranis aos quais se reservou a imagem de sujeitos seminômades e errantes despossuídos de laços familiares.

Mesmo a prostituição não pode ser considerada como falta de perspectiva daquelas mulheres, ou ainda, entendida com base em juízos de valores de nosso tempo. Para Elisa Garcia (2007) a prostituição das mulheres guaranis fazia parte de estratégias para conseguirem recursos junto aos luso-brasileiros, usando de sua sensualidade como barganha. Contudo, como já foi destacado, nem todas viviam da prostituição chegando a constituírem famílias, como é o caso de algumas destas mulheres guaranis que viveram na Capela de Santa Maria. Na historiografia praticamente não há estudos sobre família indígena guarani missioneira, tomando o Rio Grande do Sul como destaque espacial. Isso acaba corroborando com a pretensa ideia de prostituição generalizada das mulheres indígenas guaranis.

O entendimento acerca dos filhos ilegítimos (55%) carece de maiores informações. Pode haver aí uma infinidade de relações não aceitas pela Igreja, fazendo com que o padre, por alguma razão, escondesse o nome do pai. Marta Hamaister (2006), ao trabalhar com os registros paroquiais de batismo da Vila do Rio Grande, entre os anos de 1738-1763, deparou-

se com situação semelhante. No caso dos indígenas da Vila de Rio Grande, Hamaister observou que os padres omitiam o nome das mães dos indígenas. Isso se explicaria pelo fato destes praticarem poligamia, coisa que era proibida sob pena de morte pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Devido a isso, os padres se adequavam à realidade do lugar escondendo o nome das mães para não revelar a prática.

Na Capela de Santa Maria, no entanto, aconteceu o oposto, havendo a omissão do nome dos pais das crianças indígenas. Como no caso trabalhado por Hameister em Rio Grande, não pode ser descartada a possibilidade de alguns indígenas praticarem poligamia, obrigando o padre a registrar o rebento como pai incógnito. Saint-Hilaire, em 1821, em conversa com um padre de São Borja soube “que frequentemente homens casados (guaranis) se apresentam para casar com outra mulher” (1999, p. 156). Estas uniões poderiam ser estáveis, porém, sem a concretização do matrimônio, o que não invalida a existência de famílias. No entanto, para a Igreja à época, apenas o matrimônio oficializava a união entre os cônjuges, tornando ilegal qualquer outra forma de união.

Todavia, é possível que pelo fato da instalação da Capela de Santa Maria ser recente, levando em consideração o período estudado por esta pesquisa (1814-1822), a Igreja ainda não tivesse conseguido gerir suas normativas referentes ao matrimônio. Essa condição ajudaria a entender a alta taxa de ilegitimidade que, hipoteticamente, tenderia a diminuir com o passar do tempo, na medida em que a Igreja iria obtendo sucesso no regramento referente ao matrimônio. A ilegitimidade, portanto, não pode ser entendida apenas pelo viés da anomia sexual. Existem alguns registros que permitem a constatação de uniões sem matrimônio. É o caso de dez batizados de filhos naturais em que o padre assentou oito como pai incógnito.

Ser filho natural significava que a união não era reconhecida pela Igreja e, claramente, há nesses assentos a omissão do nome do pai, pois não haveria como a mãe não saber quem era o genitor. Há outros registros assentados como “pai incógnito”, geralmente de mães solteiras, em que o padre diz que a mãe era agregada de outra pessoa. No registro do inocente José “índio”, filho de Joanna “china” e, de “pai incógnito”, o padre escreveu que a mãe era “agregada” de Thomazia da Costa.26 Nestes casos pode-se crer que realmente as mães eram

solteiras, podendo ou não saber quem era o pai de seu filho. Há assentos que apresentam a definição “china” que, por sua vez, torna-se distante da ideia de mulher prostituta, presente no imaginário social dos sul-riograndenses.

26 Registros de Batismo. Santa Maria da Boca do Monte. Mitra Diocesana de Santa Maria (1814-1822). Livro I,

Entre as mães solteiras, apenas 16, foram assentadas como “china”. Entre os filhos legítimos as “chinas” também figuram como mães em 10 registros. O que podemos perceber é que não há uma relação direta do ser “china” com a ilegitimidade. Entre os filhos naturais (3% dos registros), por exemplo, aparecem três chinas, dentro de um total de 10 registros com inocentes classificados como filho natural. Assim, totalizamos 29 mulheres indígenas assentadas como “china”, ou 7,5% do total de registros arrolados para batizandos indígenas. Também cabe destacar que entre os batizandos registrados como pai incógnito não há assentos pertencentes a mestiços, o que reforça a ausência de uniões mistas ou mesmo a intenção implícita em escondê-las.

Por outro lado, podemos refletir sobre a aparente preferência de matrimônios entre homens e mulheres guaranis, expressos nos registros de batismo, por meio dos filhos legítimos. Podemos nos perguntar por que havia, entre estes, maior parte com pai e mãe indígenas? A questão adquire maior significado, distribuindo o número de registros, envolvendo filhos legítimos, pelo número de povos missioneiros. Nota-se que a maioria era concebida dentro de casamentos entre pai e mãe do mesmo Povo, como podemos perceber com o auxílio do gráfico a seguir:

Gráfico 6: Filhos Legítimos de Guaranis Missioneiros com Pai e Mãe do Mesmo Povo (Capela de Santa Maria, 1814-1822)

Fonte: Registros de Batismo. Santa Maria da Boca do Monte. Mitra Diocesana de Santa Maria (1814-1822).

Como podemos notar, havia maior preferência por casamentos entre indígenas de um mesmo povo missioneiro, ou seja, entre guaranis naturais de um mesmo lugar. Dos 164 (100%) registros arrolados como filhos legítimos entre os indígenas, 121 (74%) deles

74% 26%

do mesmo Povo de Povo diferente

envolvem pai e mãe oriundos da mesma povoação. Isso pode indicar que estes lugares possuíram certa autonomia e, também – sobretudo – um modo próprio de vida. Cabe ressaltar que as Missões não foram formadas exclusivamente por indígenas do tronco linguístico guarani. Grupos do tronco jê também fizeram parte dos povoados missioneiros do Guairá. Além destes, charruas e minuanos também integravam as povoações missioneiras dos chamados Sete Povos. Em São Borja, no final do século XVII, havia indígenas minuanos, em meio a uma maioria guarani. Os povoados contavam, também, com uma grande diversidade dentro do grupo dos guaranis (BAPTISTA, 2009).

Talvez estes números expressem uma reiteração, através do tempo, das diferenças existentes entre os guaranis e, sobretudo, entre os povos missioneiros. De fato, pertencer ao mesmo povo era um fator importante para o casamento, visto que estes indígenas conservavam a possibilidade de andar livremente pelas paragens sulinas, podendo escolher cônjuges de outros lugares. Ser do mesmo Povo, também, poderia indicar a tentativa de conservar certas peculiaridades, como a necessidade destes indígenas de garantir a manutenção de um tipo de cultura própria. Para tornar esta informação mais precisa, seria necessária uma busca rigorosa em outras fontes. Todavia, os registros de batismos, mesmo longe de esgotar a questão, oferecem bons indícios para esta ideia.

É interessante notar que, mesmo os indígenas tendo seguido algumas normativas sociais estabelecidas pelos luso-brasileiros, o distintivo social “índio” não desapareceu. Na documentação trabalhada, a expressão “índio” acompanha todos os nomes de sujeitos oriundos da região missioneira. Mesmo que os indígenas seguissem as normativas sociais da sociedade luso-brasileira como, por exemplo, os sacramentos, dando aos seus filhos nomes latinos e não em guarani, como era previsto desde o diretório de 1758, mesmo sendo estes considerados juridicamente livres, a distinção prevaleceu.

O termo de abertura do livro I de batismos nos ajuda a pensar nesta questão, quando diz que:

Este livro há de servir para nelle se lançarem os assuntos dos batismos dos brancos, livres e captivos que buscarem na Capella Curada de Santa Maria da Boca do Monte, e vai numerado e rubricado da folha seguinte em diante com a minha costumada rubrica, de que uso, que diz = Santos = sem vício ou corria que duvida faça e neste livro sem incerramento, de que para constar fis esta declaração. (grifo nosso) 27

27 Termo de Abertura. Registros de Batismo. Santa Maria da Boca do Monte. Mitra Diocesana de Santa Maria

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