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Max Roberto Pereira Ribeiro A ALDEIA DE SANTA MARIA: GUARANIS MISSIONEIROS NO EXTREMO SUL DO BRASIL (1814-1822)

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Max Roberto Pereira Ribeiro

A ALDEIA DE SANTA MARIA:

GUARANIS MISSIONEIROS NO EXTREMO SUL DO BRASIL (1814-1822)

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Max Roberto Pereira Ribeiro

A ALDEIA DE SANTA MARIA:

GUARANIS MISSIONEIROS NO EXTREMO SUL DO BRASIL (1814-1822)

Trabalho Final de Graduação apresentado ao Curso de História, Área das Ciências Humanas, do Centro Universitário Franciscano – UNIFRA, como requisito parcial para aprovação no Curso de História.

Orientadora: Prof. Dra. Nikelen Acosta Witter

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Max Roberto Pereira Ribeiro

A ALDEIA DE SANTA MARIA:

GUARANIS MISSIONEIROS NO EXTREMO SUL DO BRASIL (1814-1822)

Trabalho Final de Graduação apresentado ao Curso de História, Área das Ciências Humanas, do Centro Universitário Franciscano – UNIFRA, como requisito parcial para aprovação no Curso de História.

Prof. Ms. Janaina Souza Teixeira (Unifra)

Prof. Dra. Nikelen Acosta Witter – Orientadora (Unifra)

Prof. Ms. Paula Simone Bolzan Jardim (Unifra)

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Agradecimentos

Gostaria de agradecer em primeiro lugar a minha família por fornecer os meios materiais e imateriais para a realização desta pesquisa e, sobretudo, a conclusão da graduação. Por toda a paciência e compreensão nos momentos em que tive que ler e escrever e não dar atenção suficiente, viajar para longe e apresentar trabalhos. Aos professores do Curso de História da UNIFRA por terem contribuído com minha formação acadêmica, em especial, a prof. Dra Nikelen pela orientação deste trabalho, por sua paciência e interesse em sempre buscar em seus alunos o que há de melhor neles. Isso faz dela um grande exemplo de profissional.

Agradeço a professora Ms. Paula pela orientação no estágio curricular, pelas suas pertinentes observações quanto minha prática pedagógica e pelas boas conversas após as aulas. Aos colegas e amigos André, Leandro e Marcelo pelas reflexões sempre acompanhadas de cerveja após as aulas e pelos confrontos no futebol virtual do computador (sempre muito disputados). Ao prof. Dr. e amigo (pena que ele é colorado) Luís Augusto Farinatti pelas aulas inesquecíveis e por ter me feito ler Giovanni Levi (leitura alucinógena, difícil e que faz graduandos largarem seus empregos para, enfim, serem historiadores).

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RESUMO

O presente estudo dedica-se a investigar a aldeia indígena composta por guaranis missioneiros que existiu na Capela de Santa Maria, durante a primeira metade do século XIX. Na historiografia há poucos trabalhos que levam em consideração os guaranis fora do contexto missioneiro. Assim sendo, objetiva-se verificar como eles se estabeleceram em meio à sociedade luso-brasileira. Para isso deve-se levar em conta a tomada definitiva da região missioneira, pelo Império Português, a partir de 1801. Observa-se neste processo a retirada de muitas famílias de indígenas missioneiros daquela região. Parte delas se estabeleceu nas cercanias da Capela de Santa Maria, como é possível perceber pelos registros paroquiais de batismos do Livro I (1814-1822). Estes assentos constituem o principal corpo documental desta pesquisa. Inspirou-se nos métodos da demografia histórica francesa para traçar algumas características desta população, como migração, legitimidade e compadrio entre os indígenas missioneiros. Pela análise seriada destes registros, é possível notar que o abandono da região missioneira e a busca por novas áreas, fazia parte de uma estratégia familiar.

Palavras-chave: Santa Maria; Guaranis Missioneiros; Batismo

ABSTRACT

This study is dedicated to investigate the Guarani Indian village consisting of missionaries who lived in the Chapel of Santa Maria during the first half of the nineteenth century. In history there are few studies that take into account the Guarani Misiones out of context. Therefore, the objective is to see how they settled in the midst of the Luso-Brazilian society. To this must be taken into account in making the region final missions, the Portuguese Empire from 1801. We observe this process the removal of many families of indigenous missionaries in that region. Some of them settled in the vicinity of the Chapel of Santa Maria, as you can see the parish records of baptisms of Book I (1814-1822). These seats are the main body of documents of this research. Inspired by the French methods of historical demography to trace some features of this population such as migration, cronyism and legitimacy among the indigenous missionaries. For the serial analysis of these records, you can note that the abandonment of Misiones region and the search for new areas, was part of a family strategy.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 7

2 OS GUARANIS: HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA 10

3 SANTA MARIA INDÍGENA 24

3.1 GUARANIS MISSIONEIROS E SEUS DESCENDENTES 35

3.2 O COMPADRIO ENTRE OS MISSIONEIROS 41

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 48

5 FONTES 51

6 BIBLIOGRAFIA 52

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INTRODUÇÃO

Em 1801, um grupo de luso-brasileiros chefiados por José Borges do Canto anexou o território dos chamados Sete Povos das Missões Orientais aos domínios da Coroa portuguesa. A região ficava a oeste do atual estado do Rio Grande do Sul, na margem oriental do rio Uruguai.1 Com a expansão da fronteira luso-brasileira e, anexação definitiva dos povos

missioneiros, os indígenas guaranis, que ali viviam, retiraram-se daquela região espalhando-se pelo sul da América. Parte desta população passou a viver em pequenos povoados, espalhados pelo Rio Grande do Sul (MENZ, 2001). Entre estes, estava a Capela de Santa Maria, localizada na Fronteira do Rio Pardo à época.2

O presente estudo ocupa-se em investigar os indígenas missioneiros que residiram nas imediações da Capela Curada de Santa Maria, durante a primeira metade do século XIX. Para esta investigação foram usados os registros paroquiais de batismos, assentados no Livro I, constituindo o principal corpo documental desta pesquisa. Os registros foram redigidos a partir do ano de 1814, data de abertura da Capela, estendendo-se até abril de 1822, data em que o Livro é encerrado, perfazendo um total de 1234 cerimônias de batismo.

O uso de fontes paroquiais consagrou-se na França, a partir da década de 1950, através dos estudos da demografia histórica (FARIA, 1997). O método empregado pelos demógrafos para tratar destas fontes foi o quantitativo. O uso seriado destes registros permite acompanhar, ao longo do tempo, as taxas de natalidade, masculinidade, legitimidade e ilegitimidade, origens da população através da naturalidade, representatividade da população livre e escrava, crescimento populacional entre outros.

No Brasil os métodos da demografia histórica foram introduzidos na década de 1970, através dos estudos de Maria Luiza Marcílio, na obra A Cidade de São Paulo- povoamento e população, de 1973. A partir disso, os registros de batismos foram empregados em diversas áreas da pesquisa histórica. Além dos trabalhos já consagrados no campo da demografia histórica eles são utilizados sob diversas metodologias pela história da família, história da escravidão e, também, nos estudos acerca da construção de hierarquias sociais.

Contudo, esta pesquisa não constitui um trabalho propriamente demográfico. Há a inspiração a partir do método serial característico da demografia histórica. Este tipo de metodologia, no entanto, tende a desconsiderar os nomes dos sujeitos históricos. Com isso, esta pesquisa buscou inspirações em um dos presupostos metodológicos da micro-história

1 Ver mapa em anexo na página 54.

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italiana, o qual sugere que se preserve o nome dos sujeitos nas fontes. Conforme Carlo Ginzburg “as linhas que convergem para o nome e que dele partem, compondo uma espécie de teia de malha fina, dão ao observador a imagem gráfica do tecido social em que o indivíduo está inserido” (1989, p. (175).

Assim sendo, esta pesquisa conta com estas duas linhas teórico-metodológicas. A união delas permitiu a construção de um banco de dados, nominal, em uma planilha tipo Excel For Windows, distribuída em 52 campos analíticos. Eles correspondem a todas as informações, reiteradas ao longo do tempo, presentes no corpo do assento, como por exemplo: nome do batizando; nome de sua mãe e seu pai, nome do padrinho e da madrinha; condição jurídica (livre ou escravo) do batizando; cor da pele; naturalidade dos pais; condição jurídica dos pais e dos padrinhos; nome dos avós e naturalidade dos mesmos, entre outros.

Depois de armazenar as informações no banco de dados, referente a todos os assentos registrados no Livro I, empregou-se o modo filtro do Excel For Windows para trabalhar, exclusivamente com os registros pertencentes à batizandos indígenas, totalizando 393 celebrações de batismo. Depois de definido o universo de pesquisa, este trabalho utilizou informações como o nome destes batizandos, legitimidade, cor e condição social (livre ou escravo – no caso dos indígenas todos são livres), nome dos pais, naturalidade cor e condição social dos pais. Quanto aos padrinhos, os registros oferencem o nome a cor e a condição social e, às vezes, se estes são casados entre si.

Para completar os casos em que não há referência no assento de batismo, quanto a relação dos padrinhos, realizou-se uma busca nos registros de casamento da Capela de Santa Maria. Estes registros encontram-se planificados em um outro banco de dados em Excel For Windonws.3 Cruzamos os nomes presentes no banco de dados de batismos, com os nomes presentes nas cerimônias de matrimônio, de modo a completar a informação que nem sempre é fornecida no texto do batismo. Também foram pesquisadas outras fontes de modo qualitativo.

O objetivo foi reunir maiores informações acerca dos guaranis missioneiros. Para tanto, foi realizada uma busca no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, localizado na cidade de Porto Alegre, no fundo Autoridades Militares. Esta busca foi feita nas correspondências dos homens que ocuparam a comandância da Capela de Santa Maria, entre

3 Este banco de dados foi cedido pelo acadêmico Leandro Goya Fontella do Curso de História do Centro

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os anos 1811, data em que foram redigidas as primeiras correspondências, até o ano de 1825, correspondendo ao limite desta pesquisa.

Depois de tratar as fontes e estabelecer a metodologia a ser empregada, este trabalho encontra-se dividido da seguinte forma: no primeiro capítulo realiza-se uma revisão bibliográfica juntamente com a problematização da historiografia referente aos guaranis missioneiros. No segundo capítulo apresenta-se um pouco da historicidade da Capela da Santa Maria, sua origem “mítica”, a história oficial e, também mostra-se as evidências acerca da aldeia composta por guaranis missioneiros. No terceiro capítulo apresenta-se as características da população missioneira, residente na Capela de Santa Maria, a partir dos dados seriados, observando à representatividade dos indígenas missioneiros nas cerimônias batismais, bem como a origem geográfica desta população. Apresenta-se também as taxas de legitimidade, e as relações sociais estabelecidas por estes através do compadrio.

Espera-se, com este estudo, contribuir com o quadro dos últimos anos, em que a historiografia, buscando por novas respostas, conferiu maior protagonismo histórico aos guaranis missioneiros que estiveram presentes em vários eventos ocorridos na América Meridional. Trata-se de uma parcela importate da população sulina a qual ainda sabemos escassas informações, se levarmos em conta o contexto do século XIX. Partindo dos registros paroquiais de batismos, tem-se a oportunidade de resgatar um pouco desta história, quase esquecida, acerca dos indígenas que transmigraram dos Sete Povos rumo ao que viria a ser o Rio Grande de São Pedro.

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OS GUARANIS: HISTORIA E HISTORIOGRAFIA

Muitos foram os que se ocuparam de escrever sobre os guaranis. Desde os tempos coloniais os escritos, naturalmente, obedecem cada um ao interesse e ao tempo específico de sua produção. O primeiro escrito que se tem notícia sobre os guaranis é datado de 1528. Foi durante a expedição de conquistadores espanhóis ao Paraguai que, Luis Ramirez, explorador que à época acompanhava a expedição de Sebastião Caboto, observou que:

Aqui con nos otros está otra generación que son nuestros amigos, los cualles se llaman Guarenís por otro nombre Chandrís: éstos andan dellamados por esta tierra, y por otras muchas, como corsarios a causa de ser enemigos de todas estotras naciones

[…] son gente muy traidora […] estos señorean gran parte de la India y confinan

con los que habitan la Sierra. Estos taen mucho metal de oro y plata en muchas planchas y orejeras, y em hachas com que cortan la montana para semprar: éstos comem carne humana (apud: MELIÀ, 1987, p. 21).

Os guaranis, antes do contato com os espanhóis, ocupavam a região do leste do Paraguai, indo até ao oeste do Paraná e Santa Catarina e espalhavam-se até a desembocadura do rio da Prata. Viviam organizados em famílias extensas, compostas por até sessenta famílias nucleares e seguiam a liderança do “pai da linhagem”. Estas famílias viviam em aldeias que, por sua vez, faziam parte de uma organização mais ampla, estruturadas na forma de províncias (guará). A divisão territorial correspondia às áreas de caça e das terras para plantio (SOARES, 2007).

Dentro dos guarás, ou províncias, se promoviam festas com os parentes e aliados consolidando, com isso, importantes alianças políticas visando à defesa do território (MARTINS, 2007). Os guaranis viviam em constante estado de guerra, e, por esta razão, a busca por alianças era tão importante. Tinham entre os seus maiores rivais os guaicurus, que assaltavam as aldeias guaranis em busca de comida e mulheres. Este fato favoreceu a formação de alianças entre guaranis e espanhóis. Os guaranis estabeleceram as primeiras alianças com os europeus, vindos de Espanha através do cuñadazgo.4 Contando com esta ajuda, os guaranis puderam combater os guaicurus (DAMIANI, 1996).

Como se pode perceber no trecho da narrativa elaborada por Luiz Ramires, os europeus registravam tudo o que era estranho para eles como, por exemplo, o canibalismo e, também, os elementos com os quais se identificavam, tais como a busca por metais preciosos. Segundo o modelo explicativo proposto por Bartolomeu Meliá (1987), as narrativas

4 O cuñadazgo era uma prática cultural guarani que estabelecia alianças com grupos estrangeiros à tribo por meio

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elaboradas durante os primeiros contatos entre europeus e guaranis, caracterizam o que o autor chama de etnologia de conquista.

Este contexto, na perspectiva de Meliá, pode ser dividido em dois momentos distintos: o primeiro seria aquele em que os espanhóis identificaram os guaranis como possíveis aliados; o segundo momento seria aquele em que os guaranis passaram a combater a presença dos espanhóis, resistindo ao sistema da encomienda.5 Devido a este intenso estado de conflito entre indígenas e espanhóis, a Coroa espanhola apostou no trabalho da Compainha de Jesus. Fundada em 1542, por Ignacio de Loyola, tinha por missão levar o evangelho para o mundo.

Uma década após o surgimento da Ordem, os missionários jesuítas desembarcaram nas terras do novo mundo. Na América portuguesa eles espalharam-se pelas regiões da Amazônia e São Paulo. Nos domínios espanhóis, os missionários instalaram-se no Paraguai, que recebeu o nome de Província jesuítica do Paraguai, e Guairá, hoje atual estado do Paraná. Mais tarde, espalharam-se pela Argentina, atravessando o rio Uruguai da margem direita para a esquerda em 1682, indo em direção ao que ainda viria ser o Rio Grande do Sul.

O trabalho evangelizador, porém, era árduo. Os jesuítas que atuaram no Paraguai, por exemplo, optaram pela prática missional itinerante. Alguns grupos como os guaranis eram seminômades, fixando aldeias por um curto espaço de tempo no meio da mata. Os padres jesuítas, com isso, iam até estes povoados com o intuito de levar a fé católica. Diferente dos jesuítas que atuaram no Brasil, no Paraguai o sistema empreendido foi o de redução,6 no qual havia tentativas de não se permitir o contato entre indígenas reduzidos e colonos hispano-americanos (BOGONNI; BONNICI, 2007).

As reduções, neste contexto, marcaram uma nova fase da colonização na América, em que se tentou incorporar as populações indígenas aos projetos “civilizatórios” dos europeus, sobretudo, pelo cristianismo (DAMIANI, 1996). Desde 1492, data da chegada dos colonizadores espanhóis na América Central, até o ano de 1528, a Espanha não possuía um sistema efetivo de fiscalização de suas colônias, nem uma política clara de integração das populações indígenas. Com isso, os espanhóis espalharam-se da América Central até a América do Sul, praticamente dizimando as populações indígenas, sendo estes os responsáveis pelo maior déficit demográfico da história da humanidade.

Segundo os estudos de Todorov, no momento da chegada dos europeus, a população indígena contava com 80 milhões de indivíduos. Três décadas depois a cifra era de apenas 10

5 A Encomienda era um sistema de trabalho forçado implantado pelos colonizadores espanhóis, em que se usava

mão-de-obra indígena.

6 No Brasil, os jesuítas adotaram o sistema de aldeamento, proporcionando contato de indígenas e colonos

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milhões (apud: FERREIRA, 1992). Depois da catástrofe demográfica, a Coroa Espanhola, a partir de 1530, empenhou-se em centralizar a administração de suas colônias em torno de um órgão chamado Companhia das Índias. Neste sentido, houve uma maior preocupação com as populações indígenas da América. Ao invés de submetê-los pela força, optou-se pelos jesuítas e o cristianismo. Contudo, mesmo depois de iniciado os trabalhos dos inacianos, em 1609, a violência colonial e, as doenças vindas de além-mar continuavam abatendo as populações indígenas do continente americano.

O missionário limenho Antonio Ruiz de Montoya, encaminhado ao Guairá em 1611, registrou em sua obra Conquista Espiritual, os abusos praticados por Bandeirantes (mamelucos del Brasil) e espanhóis encomendeiros.7 Esta obra foi levada para Espanha em

1639, sendo entregue aos superiores da Compainha de Jesus e ao rei da Espanha. A finalidade era mostrar como funcionavam os trabalhos apostólicos desenvolvidos pelos missionários através da catequese. Montoya também registrou que “vem sendo minha pretensão conseguir a paz entre espanhóis e índios” (1985, p. 19).

Nesta época, as reduções do Paraguai eram constantemente atacadas por bandeirantes, grupos indígenas não cristianizadas e, também, por espanhóis que tinham o intuito de levar os guaranis como escravos. Estes, por sua vez, eram muito estimados por sua mão-de-obra especializada nas mais variadas técnicas de produção, servindo assim de bom pretexto para o apresamento. Frente a estes acontecimentos, Montoya argumentou que os trabalhos apostólicos eram de grande valia para a Coroa Espanhola. Segundo o missionário, o evangelho era capaz de “amansar leões, domesticar tigres, e fazer de feras selváticas homens e até mesmo anjos” (1985, p. 168).

Em outro trecho de Conquista Espiritual, o padre relatou que “por armas essa gente foi inconquistável; conquistou-a, contudo aquele varão apostólico8 apenas com o Evangelho, e com a caridade e paciência de Cristo” (1985, p. 176). Além de buscar legitimidade para os trabalhos de evangelização junto aos guaranis, Montoya buscava mostrar que estes indígenas eram súditos leais da Coroa. Com isso, o missionário tecia argumentos a ponto de conseguir armas para as reduções. Fato que se concretizou e, em 1641, os guaranis reduzidos derrotaram os bandeirantes na batalha de M’bororé.

Depois de terem derrotado os bandeirantes, os guaranis cristianizados conquistaram importante papel na defesa e construção de cidades na região platina. Os guaranis formavam

7MONTOYA, Antonio Ruiz de. A Conquista Espiritual feita pelos religiosos da Companhia de Jesus nas

Províncias do Paraguai, Paraná e Tape. Porto alegre: Martins Livreiro, 1985.

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uma espécie de força militar auxiliar que complementavam as forças hispano-americanas (DAMIANI, 1996). Durante vários conflitos entre Espanha e Portugal, no século XVII, houve participação destas milícias compostas por guaranis reduzidos. Eles atuaram, por exemplo, durante os combates dos hispano-americanos contra a presença portuguesa nas margens do rio da Prata. As Coroas Ibéricas, buscando legitimar suas posses na região platina, construíram fortificações, como a Colônia do Sacramento (1680, domínio português) e Montevidéu (1723, domínio espanhol), ambas localizadas na margem esquerda do rio da Prata.

Estas fortificações eram características do período colonial e materializavam a presença do colonizador (ROMERO, 2004). A partir daí, houve a intensificação das disputas pelo controle da região platina, fazendo com que a Coroa Espanhola lançasse mãos das milícias compostas por guaranis reduzidos nos combates contra os portugueses da Colônia do Sacramento. O local funcionava como um posto avançado dos lusitanos na Bacia do Rio da Prata e, assim, conquistaram a animosidade dos espanhóis. Entre os anos de 1735-1737, os exércitos guaranis missioneiros, praticamente, dizimaram as forças portuguesas da Colônia. A situação só foi controlada por meio de um tratado de paz assinado entre Portugal e Espanha no mesmo ano de 1737 (NEUMANN, 1996).

O avanço lusitano no extremo sul da América passou a ser problematizado pelos jesuítas, que resolveram retomar os trabalhos de evangelização na região do Tape, mais precisamente nos territórios das Missões Orientais – os chamados Sete Povos –, interrompidos devido ao ataque dos bandeirantes.9 A catequese e a fundação de novas reduções possuíam, também, papel estratégico para a Espanha, que garantia, com isso, a defesa e o povoamento de suas fronteiras na América Meridional.

Neste contexto, em 1682, padres jesuítas e indígenas guaranis cristianizados atravessaram o rio Uruguai, vindos da redução de Santo Tomé (um dos 30 povos), hoje território argentino. Assim, surgiram os chamados Sete Povos das Missões Orientais, no oeste do território onde seria o Rio grande do Sul. A primeira redução foi a de São Nicolau, fundada em 1687. No mesmo ano foram fundadas as reduções de São Miguel e São Luiz. Na sequência seguiram São Borja (1690), São Lourenço (1691), São João Batista (1698) e Santo Ângelo (1706).10 Estes povoados integravam as trinta reduções jesuíticas espalhadas pelo extremo sul da América.

9 Nome como era chamado o território onde seria o futuro Rio Grande do Sul no período colonial.

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No ano de 1692, chegou à redução de Japeju (Yapeyu) o missionário tirolês Antonio Sepp. Ele deixou interessantes relatos em sua obra intitulada Viajem as Missões Jesuíticas e Trabalhos Apostólicos. A narrativa, basicamente, apresenta registros do cotidiano de uma redução, mencionando também a atividade dele como missionário. No ano de 1697, padre Sepp foi enviado à redução de São Miguel para dividi-la. Na época, a redução contava, segundo ele, com mais de 6000 almas. O padre partiu acompanhado de 750 famílias para fundar a nova redução de São João Batista. O padre registrou que:

Bem árdua, na verdade, me era esta tarefa, a mim que conhecia quantas e quão grandes fadigas demandava a formação de novas colônias deste gênero. Não menciono já as antigas colônias dos romanos em Tito Lívio; pois, naquele tempo, se agenciavam as cousas com homens dotados de razão. Agora, porem devo tratar com índios sem a mínima organização política, prudência e perícia nos negócios (1980, p. 198).

O missionário atribuía a “falta de racionalidade” dos guaranis ao comportamento de crianças. Segundo ele “os índios imitam tudo, desde que tenham um molde ou modelo” (SEPP, 1980, p. 144). Quando os guaranis não correspondiam ao esperado, Antonio Sepp registrou que: “Ainda domingo passado tornou-se absolutamente necessário passar uma sova em alguns índios que não haviam amanhado a terra e nem haviam procurado encontrar o arado” (1980, p. 146). Antonio Sepp justificava sua atitude dizendo que isso era “como um pai castiga aos filhos” (1980, p. 149).

No decorrer do século XVIII, as Coroas Ibéricas remanejaram suas fronteiras e, em 1750, assinaram o Tratado de Madrid. Nele, Portugal firmava acordo de entregar a Colônia do Sacramento e, em troca, receberia as Missões Orientais, constituídas pelos Sete Povos, sob domínio espanhol. No entanto, o projeto levou a insurgência dos guaranis missioneiros, que não aceitavam passar para o lado da Coroa Portuguesa, culminando na Guerra Guaranítica (1754-1756). Devido à resistência dos indígenas missioneiros, Portugal e Espanha uniram seus exércitos para por fim aos embates na América Meridional.

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A chamada Guerra Guaranítica foi um dos grandes eventos na história da América Meridional e, por tal razão, gerou grande volume de escritos. Existem diversas representações históricas sobre o episódio, que correspondem cada um à época e ao propósito de seu produtor. Moysés Vellinho (1975), por exemplo, em sua obra Fronteira, dedicou suas homenagens a Gomes Freire reservando a ele todo êxito nas ações militares durante a Guerra Guaranítica. O autor esforça-se no sentido de dar ao Rio Grande do Sul, uma “brasilidade” quase inata. Neste sentido, a existência dos indígenas torna-se pouco relevante, frente à dilatação das fronteiras por parte dos portugueses.

Tau Golin (1999) realizou a transcrição do “Diário da Expedição e Demarcação da América Meridional e das Campanhas das Missões do Rio Uruguai”, de José Custódio de Sá e Faria. 11 A narrativa é composta por informações pormenorizadas sobre a Guerra

Guaranítica. Com base neste diário, Golin concluiu que “aos índios restaram as alternativas da integração, da miscigenação ou a volta ao modo de vida quase neolítico, levando para as aldeias no interior das florestas, alguns instrumentos materiais, herança dramática do contato com os ibero-americanos” (GOLIN, 1999, p. 559).

Eduardo Neumann (2004), ao estudar os confrontos de 1753-1756, percebeu que a insurgência dos povos missioneiros revelava a existência de outra fronteira na América Meridional – a fronteira indígena. Os estudos sobre este evento, excepcional na história da América, conhecido como Guerra Guaranítica, reservaram destaque apenas às disputas entre Portugal e Espanha, desconsiderando a participação indígena nos conflitos. Neumann, ao perceber isso, elaborou um modelo explicativo chamado de Fronteira Tripartida.

Para este historiador, havia três fronteiras que estavam para além de limites territoriais. Indígenas, espanhóis e portugueses formavam uma fronteira humana, em que a negociação era constante. Não só portugueses e espanhóis, como também os indígenas buscavam e traçavam estratégias, de modo a garantir algum proveito. Para a historiadora Elisa Garcia (2007), os portugueses usaram da estratégia de atrair os guaranis, levando estes a passarem para o lado português, durante a Guerra Guaranítica. Isso explicaria o porquê de nem todos os povos missioneiros terem insurgido contra o Tratado de Madrid, havendo adesão de alguns e resistência de outros.

Segundo Garcia (2007), os portugueses se esforçaram para aumentar seu contingente populacional na fronteira meridional. Com isso, a disputa não seria apenas territorial, mas também de material humano, propriamente, os guaranis missioneiros. Neste sentido, os

11 Engenheiro do exército português, que participou da comissão de demarcação junto com o Governador Gomes

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portugueses passaram a garantir vantagens para os guaranis que se tornassem seus aliados. A ideia central era diminuir o número de súditos da Coroa espanhola na região, convertendo-os em novos súditos para o rei português.

Com base nisso, em 1757, Sebastião José de Carvalho e Mello, futuro Marquês de Pombal, escreveu o Diretório dos Índios, transformado em decreto em 1758, sendo aplicado em todo o Brasil Colonial. O propósito deste decreto era integrar as populações indígenas, impondo-lhes a língua portuguesa, a religião católica e a educação aos moldes europeus, servindo de modelo, também, para o tratamento das populações indígenas no século XIX (GARCIA, 2007).

Entretanto, para a realização deste projeto, cada Comandante Geral das Capitanias deveria fundar aldeamentos para a execução do diretório, como previa as determinações pombalinas. No Rio Grande do Sul se tem notícias da existência de dois povoados que seguiam as orientações do Diretório. Eram as Aldeias de Nossa Senhora dos Anjos (atual Gravataí, fundada em 1763), composta por guaranis oriundos da região dos Sete Povos, e luso-brasileiros e, a Aldeia de São Nicolau do Rio Pardo (próximo a Rio Pardo, fundada em 1757), formada exclusivamente com indígenas missioneiros (GARCIA, 2007).

Fabio Kuhn (2007) investigou o funcionamento da Aldeia de Nossa Senhora dos Anjos, durante a administração do Governador José Marcelino de Figueiredo (1769-1780). Os guaranis participavam da administração da aldeia por meio de seus principais (caciques). Os guaranis, homens, também integravam as forças militares, enquanto que as crianças iam para a escola. Existia um colégio para os meninos e um recolhimento para meninas. Estes duraram três décadas. O objetivo principal das escolas era ensinar o português para as crianças (GARCIA, 2007).

Nelas, era proibido falar o idioma guarani, contudo, nunca houve o abandono da língua. Também havia o incentivo aos casamentos mistos, com o propósito de apagar as diferenças entre indígenas e luso-brasileiros. Entretanto, a presença guarani não agradava aos colonos estabelecidos próximos à aldeia. Estes reclamavam dos indígenas que ficavam dispersos e que, segundo os depoimentos da época, apresavam gado de terceiros e praticavam outras atividades consideradas ilícitas a época. (GARCIA, 2007).

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que a retirada dos indígenas também fizesse parte das estratégias destes, independente do governo José Marcelino de Figueiredo.

Em 1761, Portugal e Espanha assinaram um novo tratado anulando as cláusulas de 1750. Este tratado recebeu o nome de tratado de El Pardo, em que as Coroas Ibéricas reabilitaram as antigas posições na América Meridional. A Colônia do Sacramento, posse portuguesa nas margens do Rio da Prata, foi devolvida a Portugal. As Missões Orientais, por sua vez, foram entregues a Espanha. Isso ocorreu em virtude do não cumprimento do Tratado de Madrid. Portugueses e espanhóis não conseguiram efetivar a demarcação da nova fronteira, devido à resistência dos indígenas guaranis que habitavam as Missões Orientais.

Os espanhóis, no entanto, invadiram a vila de Rio Grande (possessão portuguesa), em 1763, localizada no litoral sul do atual estado do Rio Grande do Sul. A situação só mudaria em 1777, quando os portugueses retomaram a vila. Novamente, houve acordo, entre as Coroas Ibéricas, firmado pelo Tratado de Santo Ildefonso, assinado naquele mesmo ano. Neste tratado houve certa reiteração das cláusulas do Tratado de Madrid. Portugal, reclamando a invasão de suas possessões na Vila de Rio Grande, teria de entregar a Colônia do Sacramento para garantir posse sobre, praticamente, todo o Rio Grande do Sul.

A série de tratados assinados e desfeitos entre Portugal e Espanha, afetaram diretamente os povos missioneiros. Transmigrações e mudanças constantes de subordinação alteravam a dinâmica dos guaranis. Os portugueses, preocupados com a povoação de suas fronteiras, desde o Tratado de Madrid, vinham oferecendo certas barganhas aos guaranis missioneiros para que passassem para o lado do Rei português (GARCIA, 2007). A região missioneira, palco de inúmeras disputas, encontrava-se sob administração laica, desde a expulsão dos padres jesuítas das colônias espanholas, em 1768 (WILDE, 2004).

No entanto, o território ainda se encontrava em domínio espanhol. A administração dos povos conservava, de certo modo, a mesma configuração administrativa dos tempos jesuíticos, até 1801. Em 15 de junho daquele ano, havia rumores sobre uma declaração de guerra da Espanha a Portugal. Foi um curto período beligerante entre as Coroas Ibéricas, conhecido como Guerras das Laranjas.12 Contudo, não houve muito empenho de Portugal e Espanha neste conflito, mesmo assim, a reação luso-brasileira foi quase imediata.

Por meio de um edital do Governador Sebastião da Veiga Cabral da Câmara, houve o perdão aos desertores, pedindo que estes se apresentassem para a guerra. Foi então que José

12 Sob pressão da França napoleônica, em 1801, a Espanha ocupada pelos franceses, declarou guerra a Portugal.

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Borges do Canto apresentou-se para os préstimos do exército português. Sua missão era tomar de assalto os Sete Povos Orientais. Para a investida, Borges do Canto arregimentou Gabriel Ribeiro de Almeida, filho de Manoel Ribeiro de Almeida, com a índia guarani Maria da Silva. Também houve a participação voluntaria de Manoel dos Santos Pedroso (Maneco Pedroso), sesmeiro na região do povoado de Santa Maria.

Gabriel era mestiço e falava bem o guarani. Segundo o próprio Canto, o sucesso da campanha às Missões se deu devido às habilidades de Gabriel (GARCIA, 2007). Assim, os milicianos de Borges do Canto sitiaram São Miguel considerado o centro dos Sete Povos. Houve alguns confrontos isolados, entretanto, os povos missioneiros em sua maioria, foram convencidos pelas ofertas feitas pelos luso-brasileiros. Depois da rendição do Povo de São Miguel, os Sete Povos das Missões Orientais passaram para os domínios da Coroa portuguesa.

Os eventos de 1801 renderam um bom número de obras, que se dividem nas mais diversas representações históricas. Evidentemente, cada uma obedece ao propósito de seu produtor e de sua época. No século XIX, José Feliciano Fernandes Pinheiro (Visconde de São Leopoldo), considerado o pioneiro em tentar escrever uma história para o Rio Grande Sul, empenhou-se em construir uma versão histórica, predominantemente, militar. Em sua obra, Anais da Província de São Pedro, o autor argumenta no sentido de mostrar a bravura e valentia dos milicianos que participaram da tomada das Missões:

Assim, por um golpe de audácia, um punhado de homens, sem armas, sem apetrechos, nem munições, que foi preciso ganhar valorosamente aos próprios inimigos, anexou esta Província aos domínios portugueses, e felizmente neste, como nos demais pontos da fronteira, a mesma guerra nutriu a guerra, e os sucessos foram fornecendo meios para novos sucessos (SÃO LEOPOLDO, 1982, p. 144).

Por muito tempo, a história do Rio Grande do Sul foi contada com base neste tipo de representação histórica, servindo de modelo para muitas outras representações posteriores. Em 1882, Alcides Lima escreveu História Popular do Rio Grande do Sul. Esta obra foi escrita a pedidos do Clube 20 de Setembro, onde Lima era sócio junto com outros republicanos, como Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros. No capítulo dedicado as Missões, Lima escreveu que: “As Missões Jesuíticas nada mais foi do que a escravidão disfarçada dos índios” (1983, p. 27). Para Alcides Lima, os guaranis foram escravizados pelos jesuítas porque neles não havia virtudes.

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Séculos. Basicamente, os volumes exaltam o teor “civilizatório” dos jesuítas junto aos guaranis. Teschauer avançou no sentido de colocar a história das Missões como parte da história do Rio Grande do Sul. Para ele, o verdadeiro início da sociedade sul-riograndense teria sido, em 1682, quando jesuítas e guaranis missioneiros atravessaram o rio Uruguai, vindos de Santo Tomé, para fundar as Missões Orientais (os chamados Sete Povos).

Em 1927, Jorge Salis Goulart escreveu a obra, A formação do Rio Grande do Sul. Este livro tornou-se emblemático em sua época, sendo premiado pela Academia Brasileira de Letras. Goulart inicia seu livro falando sobre o povoamento do Rio Grande do Sul, sem fazer qualquer alusão às populações guaranis. Entretanto, diz que a sociedade sul-riograndense era composta por três raças: a branca; preta e indígena. Goulart defendia a idéia de que o Rio Grande do Sul seria o estado mais próspero da federação, devido à concentração de uma maior parte de população branca, em relação a outros estados.13

Aurélio Porto, na década de 1940, dedicou uma obra inteira às Missões Jesuíticas, intitulada, História das Missões Orientais do Uruguai. Porto se opôs a idéia de Teschauer, dizendo que as Missões só fizeram parte da história do Rio Grande do Sul, a partir de 1801, momento da tomada daquela região pelos luso-brasileiros. No entanto, o autor manteve viva a imagem dos jesuítas como propagadores da “civilização” entre os indígenas guaranis. Aurélio Porto e Carlos Teschauer contrastavam um forte antagonismo presente na historiografia sul-riograndense.

Para Ieda Gutfreind (1998), durante a primeira metade do século XX, havia quem defendia a origem do Rio Grande do Sul em um contexto de colonização lusa (matriz lusitana), e outros que defendiam uma origem espanhola (matriz platina). Embora os trabalhos ligados à matriz platina tenham admitido as Missões Orientais como parte da história do Rio Grande do Sul, a abordagem se referia apenas ao território e não aos indígenas guaranis, ou seja, dava importância ao lugar e não aos sujeitos que lá viviam.

A partir dos anos 1970, a historiografia inspirada no materialismo histórico avançou no sentido de não tratar as Missões Orientais como espaço vazio. As discussões propostas pela matriz lusitana e matriz platina, tratavam esta região como território vazio, ou lugar passível de ser conquistado.14 A historiografia baseada no materialismo histórico conseguiu

13A idéia de três raças está na obra de Gilberto Freire Casa Grande e Senzala, publicado no ano de 1933. Este autor esboçou uma origem da nação brasileira a partir da miscigenação harmoniosa entre brancos indígenas e negros africanos.

14Na historiografia tradicional, de cunho historicista, as obras se referem às Missões Orientais como terra de

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romper com essa idéia, elucidando uma versão histórica em que os guaranis se faziam presentes naquele contexto.

Entretanto, estes trabalhos não conseguiram oferecer um maior protagonismo histórico aos guaranis missioneiros. Clovis Lugon (1977) chamou a organização dos povos missioneiros de “república comunista cristã dos guaranis”. Décio Freitas (1982) se referiu as Missões como “socialismo missioneiro”, reiterando a versão de Lugon. Estes trabalhos, porém, colocaram os guaranis como agentes sociais passivos na história da América. Há ainda destaque para os trabalhos inacianos, diminuindo assim o protagonismo dos indígenas missioneiros. Observa-se que há a projeção das Missões como a “época de ouro” na história do Rio Grande do Sul, e dos guaranis missioneiros, justamente, pela capacidade dos padres inacianos em “civilizar” os guaranis.

Moacyr Flores (1996) também reproduziu esta ideia. As Missões, em sua narrativa, são representadas como o ápice da história dos guaranis, que depois da expansão lusa, teriam se aculturado em meio à sociedade colonial brasileira:

O contato da cultura guaranítica com a ocidental cristã, que dominava uma tecnologia mais avançada, provocou o esfacelamento dos mitos e crenças, a destruição do consenso social e da moral indígenas, resultando uma sociedade missioneira com padrões europeus, principalmente na religião, pois na época a evangelização era universal e não conhecia fronteiras (FLORES, 1996, p. 242).

Após a tomada definitiva da região dos Sete Povos foi implantada a administração de militares portugueses. Aos guaranis foram asseguradas garantias de que não haveria abusos por parte dos luso-brasileiros. Todavia, os próprios administradores exigiam gado, armas, e alfaias das igrejas missioneiras como prova de fidelidade ao rei português.15 As pilhagens seguiram ano após ano e, consequentemente, exauriram as riquezas missioneiras. Depois de algum tempo os guaranis começaram a se retirar das Missões Orientais, em virtude do empobrecimento e exploração dos administradores lusos.

Maximiliano Menz (2001) afirma que, com a expropriação do gado e da terra, os guaranis missioneiros iniciaram um movimento de retirada daqueles territórios. Estes teriam se espalhado pelo interior do Rio Grande do Sul, vivendo em pequenos núcleos populacionais. Em 1801, havia 14.010 almas nas Missões, trinta anos depois, apenas 372 guaranis. Para Menz, alguns guaranis dos Sete Povos, teriam se assalariado em meio à sociedade colonial, por terem perdido seus meios de produção. Assim, o historiador conclui que os guaranis passaram a integrar a economia sul-riograndense, vendendo sua mão-de-obra.

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O viajante francês, August de Saint-Hilaire, pode ter observado algum destes povoados, em 1820, conforme registrou em sua passagem pelo Rio Grande do Sul:

Há aqui duas choupanas construídas razoavelmente e habitadas por índios. Nenhuma plantação nos arredores; mas tudo leva crê que haja algumas, pois há nas palhoças bastante milho e abóboras. Esses homens só falam o guarani e, em consequência, estou privado de lhes perguntar uma porção de coisas (1987, p. 320).

O trecho retirado da narrativa de Saint-Hilaire chama atenção para a falta de estudos sobre o processo de diáspora e integração dos guaranis missioneiros à sociedade oitocentista sul-riograndense, iniciado a partir de 1801. Trata-se de uma parcela significativa da população sulina, que sabemos muito pouco dentro deste contexto de dispersão. A grande maioria dos estudos concentra-se à luz da experiência missioneira (séculos XVII e XVIII) e, também, sobre a Guerra Guaranítica.

Atentando para a possibilidade de estudar os guaranis missioneiros no contexto de dispersão, encontramos evidências que apontam para a existência de aldeias ou povoados de guaranis missioneiros espalhados pelo Rio Grande do Sul. Segundo Maximiliano Menz existem “notícias de pequenas aldeias em Alegrete, Cruz Alta, São Vicente, Torres, Caçapava e Santa Maria” (2001, p. 103).

Também é possível encontrar nas obras de memorialistas como Daudt Filho (1949) pistas sobre aldeia indígena, já referida nos registros de batismo, no povoado de Santa Maria da Boca do Monte, em princípios do século XIX. Romeu Beltrão (1950), também memorialista, afirma que a partir de 1801 chegaram famílias guaranis provenientes das Missões Orientais. João Belém (1933) ofereceu a cifra de cerca de 50 famílias vindas das Missões, que teriam se instalado no povoado de Santa Maria.

Depois deste percurso historiográfico, é possível observar que a historiografia missioneira – ou historiografia guarani missioneira – divide-se em três temas. Os escritos separam-se entre aqueles que: abordam a experiência missioneira (1609-1750), o período pós Guerra Guaranítica, ou período de demarcação e remanejamento da fronteira meridional (1750-1801) e o terceiro tema que consiste no entendimento da dispersão dos povos missioneiros das Missões Orientais pela América meridional, a partir de 1801.

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que além do incremento territorial, os portugueses acrescentaram 14.000 índios à totalidade da população do Continente de São Pedro que, em 1802, contava com 36.000 habitantes. “Estes números dão uma idéia do impacto demográfico dessa incorporação e confirmam a importância do substrato guarani missioneiro na formação social do Rio Grande do Sul” (2007, p. 45).

Destes sabemos pouco, ou quase nada. O quê poderia se dizer de suas estratégias dentro de uma trajetória histórica marcada por adversidades? Pensando nesta questão, a presente pesquisa, procura estabelecer protagonismo histórico aos guaranis missioneiros, seguindo a tendência dos últimos anos, em que várias áreas da pesquisa histórica, ocupam-se de reescrever a história do extremo sul do Brasil. Entendendo que “índio” constituía uma categoria social em contraste com o mundo ultramarino lusitano e depois com a sociedade luso-brasileira, poderíamos compreender estes estudos dentro daquilo que se chama de história vista de baixo. Consagrada desde a década de 1960, pelos trabalhos de E. P. Thompson, ela influenciou o fazer dos historiadores em muitas partes do mundo (SHARPE, 1992). Sua abordagem remonta as experiências pretéritas de pessoas “comuns”, sobretudo, daquelas que se encontravam nos extratos sociais mais baixos dentro das hierarquias estabelecidas por uma determinada sociedade.

Não seria necessário dizer que dentro de uma socieadade fortemente hierarquizada como era a sociedade luso-brasileira do século XIX, o primeiro elemento de distinção social era a condição jurídica. Os indígenas eram livres, entretanto, não eram considerados em uma mesma condição social a dos “brancos” luso-brasileiros. Podemos considerar “índio” como uma categoria social hierarquicamente inferior aos “brancos”. Encontra-se sustentação empírica para esta afirmação usando os textos de batismo escritos pelo Cura da Capela de Santa Maria.

Os registros de batizandos “brancos”, são mais extensos do que os de escravos e índios, apresentando um número maior de informações como, por exemplo, o nome dos avós dos batizandos, tanto paternos quanto maternos e seus respectivos locais de nascimento. Os assentos batismais pertencentes a indígenas e escravos do Livro I, nenhum apresenta nome dos avós. O texto batismal em sí, traz as hierarquias existentes à época, expressas e codificadas no número de informações referentes aos batizandos. Os “índios”, por possuírem menos informações que os “brancos”, são entendidos por esta pesquisa como socialmente inferior dentro daquela sociedade, embora sua condição jurídica fosse a de livre.

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SANTA MARIA INDÍGENA

Santa Maria é uma cidade localizada na região central, mais precisamente entre a Serra Geral, e a planície que forma o relevo da depressão central, no estado do Rio Grande do Sul. Com aproximadamente 269 mil habitantes, Santa Maria é, atualmente, a sexta cidade mais populosa do estado. Caracterizada por uma economia de prestação de serviços, ela atrai muitos estudantes por ser também um polo educacional. Além das riquezas materiais, a região central faz parte da rota paleontológica, onde foram descobertos fósseis de animais que viveram a duzentos milhões de anos.

Santa Maria, também, é conhecida como “terra de Imembuí”. Trata-se de um conto escrito por Cezimbra Jacques16 no final do século XIX, sendo adaptado por João Belém, em 1933.17 Segundo este conto, Santa Maria era habitada por índios minuanos. Nesta tribo nasceu uma índia chamada Imembuí, que se tornou uma jovem muito bonita, despertando a atenção dos índios de sua tribo. Entretanto, Imembuí não dava chances ao amor de seus pretendentes.

Eis que um dia, durante um ataque de bandeirantes, que levavam índios como escravos para São Paulo, sua tribo conseguiu rechaçar a investida, aprisionando um português de nome Rodrigo, por quem Imembuí viria a se apaixonar. O destino de Rodrigo seria a morte, mas Imembuí interviu pedindo a seu pai, o cacique Apacani, que não matasse o português. A índia casou-se com Rodrigo, que passou a ser chamado entre os índios minuanos, de Morotin passando, então, a viver dentro dos costumes destes indígenas.

Do amor entre a índia Imembuí, e o português Rodrigo (Morotin), teria se originado a cidade de Santa Maria. A narrativa é reproduzida para crianças do Ensino Fundamental da cidade, apresentada como parte da história de Santa Maria. O leitor pode se questionar: porque ainda se conta esta lenda ou “história” não científica para estas crianças? Para nós, porém, interessa dizer que o conto pode ser considerado um dos raríssimos elementos que fazem referência à existência de povos indígenas na região, que ainda se faz presente na memória social da cidade.

A história oficial sobre a origem de Santa Maria conta sobre o processo de demarcação da fronteira estabelecida no tratado de Santo Ildefonso, assinado entre Portugal e Espanha em 1777. O povoado teria se originado em meio a um acampamento levantado por uma comissão

16 João Cezimbra Jacques nasceu em Santa Maria em 1848, e atuou no Partido Republicano Rio-grandense.

Escreveu varias obras, entre elas conto de Imembuí que esta no terceiro capítulo de sua obra, Assuntos do Rio Grande do Sul, de 1912.

17 João da Silva Belém era natural de Porto Alegre. Nasceu em 1874, falecendo em 1935. Atuou como poeta,

dramaturgo, professor e jornalista. Sua obra mais conhecida é História do Município de Santa Maria, de 1933,

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demarcadora de limites, portuguesa, a partir de 1797. A demarcação correspondia ao estabelecimento de novas fronteiras entre as Coroas Ibéricas.

É necessário que se faça aqui, ainda que de maneira breve, uma reflexão a respeito deste processo. Existe uma versão da história, entendida como oficial, que considera a presença portuguesa como legítima, sendo a existência de indígenas tida como uma mera lenda. Assim, conta-se a história de uma perspectiva etnocêntrica e, além de tudo, que nega a real existência de indígenas na região, ajudando a legitimar a dominação portuguesa nos confins da América, dando a entender que a terra estava “vazia” (terra de ninguém na expressão clássica), logo, passível de ser conquistada.

Por muito tempo, esta versão histórica manteve supremacia na história sobre as remotas épocas da futura cidade. Memorialistas do século XX foram aclamados como “pais” da história de Santa Maria, contando-a da perspectiva dos demarcadores lusos, que desbravaram os incultos sertões da colônia portuguesa.18 Entretanto, trabalhos recentes vêm

oferecendo outra perspectiva em relação à ocupação humana na região do atual Brasil. Neste sentido, a arqueologia vem revelando partes de uma história esquecida e, até mesmo, desconhecida por muitos. Os sítios arqueológicos de Boca do Monte, distrito localizado cerca de 30 km a oeste de Santa Maria e, também, nos municípios de São Martinho (ao norte) e Nova Palma (ao leste) – antigos distritos da cidade – foram encontradas evidencias de ocupação guarani. Os artefatos foram datados sendo do século XIII da era cristã distribuindo-se em cerâmicas, urnas funerárias e vestígios de antigas habitações.19

Não seria uma novidade para historiografia dizer que a região de Santa Maria era povoada por guaranis, contrariando a origem “mítica” que faz referência aos minuanos. Contudo, a ocupação dos guaranis ainda carece de maiores esclarecimentos. O historiador Julio Quevedo (2010), por exemplo, defende a tese de que Santa Maria fazia parte de uma redução jesuítica, fundada ainda na primeira fase das reduções, por volta da terceira década do século XVII. Neste sentido, encontramos vários indícios sobre a presença guarani missioneira na região central do Rio Grande do Sul.

A obra Memórias de João Daudt Filho, por exemplo, há registros sobre a existência de uma aldeia de guaranis oriundos dos Sete Povos das Missões Orientais do Uruguai em Santa Maria, entretanto, nunca se levou isto como problema de pesquisa. É interessante notar que

18A palavra “sertão”, no contexto de colonização, era empregada pelos portugueses para se referir a terras

desconhecidas (“incultas”) que ainda não teriam sido conquistadas.

19 Estes trabalhos foram realizados pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas Arqueológicas (LEPA) da

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esses memorialistas são considerados os verdadeiros “historiadores” da cidade pelos não especialistas e, talvez por isso, a historiografia tenha se mantido longe deste debate. A falta de rigor metodológico nestas narrativas é passível de não se conferir crédito algum quanto à veracidade de seu conteúdo. Assim, nunca se levou a “afirmativa”, ao menos, como uma remota hipótese.

Frente a este quadro, resolveu-se testar as memórias deixadas a respeito da dita aldeia. De modo inicial, pensou-se em fontes que pudessem nos levar até os indígenas, que por se tratar de sociedades ágrafas, consiste no enfrentamento de alguns empecilhos, como por exemplo, a falta de fontes para este tipo de estudo. Pensamos, então, em realizar uma busca nos registros paroquiais de batismo. Os indígenas que passaram pela experiência missioneira, pressupomos que por algumas gerações, mesmo depois da expulsão dos jesuítas em 1768, continuaram a buscar os rituais cristãos, como batismo e casamento.

Visto os assentos batismais, verificou-se a presença dos indígenas guaranis, oriundos dos Sete Povos das Missões – o que, de certa forma, não foi nenhuma surpresa. No Brasil estes registros passaram a ser produzidos de forma sistemática a partir de 1707, com as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (HAMEISTER, 2006). Este documento foi escrito por Dom Sebastião Monteiro da Vide 20 , passando então a regulamentar o funcionamento da Igreja Católica no Brasil. Todos os riruais, incluindo os sacramentos, bem como a administração das Capelas e, a obrigatoriedade da religião católica ser ensinada pelos curas (padres) aos seus fregueses (população), foram regulamentados através das determinações de 1707, que por sua vez, operavam dentro do conjunto de regras estabelecidas pela Igreja Católica.

Em 1812, Santa Maria da Boca do Monte foi elevada da categoria de povoado à Capela Curada, tendo iniciado suas atividades em fevereiro de 1814. A partir desta data, foram produzidos os textos dos registros paroquiais de batismo e casamento, que se encontram disponíveis no Arquivo da Mitra Diocesana de Santa Maria. Como já haviamos mencionado, foram trabalhadas 1234 (100%) celebrações de batismos dispostas no livro I, em que 393 (34%) são de crianças registradas como indígenas, como mostra o gráfico a baixo:

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Gráfico 1: Distribuição de Registros Quanto a Cor da Pele (Capela de Santa Maria, 1814-1822)

Fonte: Mitra Diocesana de Santa Maria. Registros de Batismo. Capela de Santa Maria. (1814-1822).

Podemos visualizar, com auxílio do gráfico “1”, que os indígenas formavam uma parcela significativa dos sacramentos na Capela de Santa Maria da Boca do Monte da primeira metade do século XIX, sendo que 100% das mães destas crianças foram registradas sendo de nação guarani.21 Podemos perceber, também, quais eram os tipos sociais que formavam a embrionária Santa Maria. Indígenas, luso-brasileiros e escravos, faziam parte daquela realidade, evidenciando uma complexa composição social.

Apenas a quantificação poderia ser considera como um forte indício da presença dos guaranis missioneiros em Santa Maria. Entretanto, a falta de uma lista nominativa da Capela, impossibilitaria qualquer afirmativa neste sentido, servindo de boa crítica por parte do leitor. No entanto, durante a digitalização dos registros, encontramos um que pode nos ajudar a refletir quanto à efetiva presença e participação dos guaranis missioneiros no processo de construção da sociedade sul-riograndense no século XIX. O registro que diz o seguinte:

Aos Vinte e quatro de janeiro de mil oitocento [sic] e vinte e dous, nesta Capela Curada da Santa Maria da Boca do Monte, baptizeie e pus os santos oleos a Maria innocente filha de Izidro Alferes Castelhano e de sua mulher Valeriana Xina de São Miguel. Foram padrinhos o Capitão da Aldeia Ignacio de Miranda e sua mulher Maria Joaquina Guaranis todos fregueses desta Capela de que fis este afsento. (grifo nosso).22

Este poderia ser mais um entre outros tantos registros assentados no Livro I de batismos da Capela Curada de Santa Maria da Boca do Monte, entretanto, ele nos oferece uma interpretação sui generis entre os assentos. Izidro, o Alferes Castelhano, pai da batizanda

21 Refere-se aos indígenas que vinham da região dos Sete Povos das Missões.

22 Mitra Diocesana de Santa Maria. Registros de Batismo. Capela de Santa Maria. Livro I (1814-1822), p. 192. 43%

34% 23%

BRANCOS

INDÍGENAS

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Maria, teve como compadre o Capitão da Aldeia, Ignacio de Miranda. O registro também nos diz que eram todos “fregueses desta Capela”. É necessário que se faça uma breve reflexão em torno desta expressão. No século XIX, o vocábulo “freguês” possuía uma conotação diferente do nosso tempo.

Bruna Sirtori ao estudar a Aldeia de Nossa Senhora dos Anjos, entre os anos 1765-1784, obervou que havia uma diferenciação nas expressões morador e freguês, frequentemente usadas pelos clérigos nos séculos passados na documentação paroquial. Com base no dicionário de Raphael Bluteau, de 1727, Sirtori concluiu que: “[...] a designação “freguês” tinha uma conotação religiosa, referia-se àqueles que deviam prestar contas à Santa Madre Igreja, enquanto o termo “morador” englobava todos aqueles que habitavam em determinada área [...]” (2008, p. 26).

De acordo com Sirtori, podemos supor que, além de moradores da Capela de Santa Maria os indígenas, citados pelo padre, eram pessoas que se encontravam em dia com suas obrigações cristãs. Não estamos, aqui, tentando dizer que aqueles indígenas eram cristãos natos, ou que a cristandade tenha os tocado por completo. Com suas devidas reservas, provavelmente mantinham algumas de suas tradições. As fontes não são objetivas neste sentido, e precisam ser problematizadas. Entretanto, há indícios que permitem pensar a dinâmica da aldeia de modo coletivo e organizado, dando a entender que os guaranis missioneiros operavam dentro de uma lógica própria, contrastada pela sociedade colonial em contato.

No dia 5 de abril de 1823, ocorreu um episódio que para nós pode soar em tom de inusitado, mas que talvez para os contemporâneos da Capela de Santa Maria, do século XIX, fosse corriqueiro. Uma confusão desencadeada por um indígena Capitão-Mor dos naturais, e um dos soldados do Capitão do Mato, de nome Manoel Joaquim, quebrou a rotina daquele dia. O evento foi documentado pelo Juiz Ordinário da Capela, Joaquim Antonio de Moraes, através de seu escrivão. O fato deveria ser informado ao Juiz de Fora, o qual era seu superior dentro da magistratura, com sede na Vila da Cachoeira (atual município de Cachoeira do Sul). Em oficio ao Juiz de Fora, relatando sobre o ocorrido, Joaquim Antonio de Moraes dizia:

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Vara alçado em casa de morador do comandante acompanhado do Senhor Coronel Manoel Carneiro e o Alferes André Ribeiro de Cordova com o ferido índio Capitão Mor [...] recebendo me [...] o escrivão e mesmo Capitão do Mato que [...] em minha companhia que fizemos proclamado e em voz alta respondeu me trez Comandantes com que atrevimento [...] e que eu não tinha autoridade para lhe oficiar em tempo argum [sic] em seguida o ferido entre os trez S(enhores) me dicerão que me avião de fazer mascar os ofícios dando por ordem ao Capitão do Mato deixando em Alta voz que me não obedecese em cousa alguma [...]23 (grifos nossos)

Nesta época, Santa Maria era distrito da Vila da Cachoeira, até a emancipação ocorrida no ano de 1858. O Comandante referido no ofício era o Capitão Comandante da Capela de Santa Maria, José Machado Fagundes de Bittencourt. O Juiz Ordinário, Joaquim da Silva de Moraes, redigiu o texto em virtude de ter sido destratado e desacatado pelo Capitão Comandante, junto com os outros militares citados, além do dito índio Capitão-Mor. Na ocasião, o juiz ordinário foi impedido de relatar o ocorrido, via ofício, ao Juiz de Fora. Além do desentendimento entre os militares e o magistrado, o relato é muito elucidativo ao mostrar que os indígenas manifestaram-se de modo coletivo contra o referido Capitão do Mato.

Dentro da narrativa de Joaquim da Silva de Moraes, a aldeia é o que menos importa. Sua atenção é voltada para o desacato do Capitão José Machado. O Juiz rende toda sua indignação frente ao ato do Comandante. No entanto, vale dizer que, entre toda a documentação pesquisada das autoridades militares que estiveram no comando da Capela de Santa Maria, este é o único documento que faz referência à existência da aldeia na documentação produzida entre os anos 1811-1825. Esta pesquisa procurou encontrar, na documentação, por outros elementos que fornecessem comprovação empírica sobre a existência da aldeia.

Este documento, também, permite dizer que a aldeia indígena da Capela de Santa Maria, composta por guaranis das Missões, estava “integrada” a sociedade luso-brasileira, do extremo sul do Brasil, por meio das armas. Tanto o registro de batismo em que aparece o Capitão da Aldeia, Ignacio de Miranda, quanto o trecho do ofício citado a cima, levam a esta interpretação. Além disso, podemos observar que as lideranças da aldeia eram autoridades reconhecidas pelos luso-brasileiros e, até mesmo, pela Igreja.

Cabe ressaltar que o período de 1816-1820, luso-brasileiros combatiam as forças de Jose Artigas, que visavam reaver o território das Missões Orientais. Artigas, político e militar uruguaio, consagrado desde 1810, nas batalhas de independência de Buenos Aires, desde então, conseguia mobilizar muitos indígenas guaranis, que formavam a maior parte de suas

23 Ofício do Juiz Ordinário da Capela de Santa Maria para o Juiz de Fora na Vila de São João da Cachoeira.

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forças. A constituição e formação do povoado de Santa Maria, portanto, deve ser entendida à luz de um contexto de endemia bélica na fronteira entre colônias espanholas insurretas e, os domínios portugueses.

É muito provável que os indígenas da Aldeia de Santa Maria, assim como de outros povoados indígenas, como de Rio Pardo e Cachoeira, tivessem servido aos exércitos do império português. Apesar de, aqui, contarmos com parcas informações a este respeito as evidências encontradas nas fontes são claras. Por este motivo torna-se ambíguo perceber a historicidade deste povoado indígena. A documentação pesquisada para este trabalho, não apresenta dados quanto as origens da aldeia. Portanto, não sabemos se esta povoação se deu por iniciativa própria dos guaranis, ou se a fixação destes aos arredores da Capela foi parte das políticas integracionistas luso-brasileiras.

Contudo, esta breve descrição nos mostra um pouco da história dos confins meridionais do Brasil, ainda colônia de Portugal, que permanece obscura. Enfim, quem eram essas pessoas? De onde vieram? E porque vieram? Para uma parte da historiografia, os guaranis missioneiros foram extintos, culturalmente, depois da expulsão dos jesuítas em 1768. No entanto, não há uma exata historicidade para tal afirmação. Esta historiografia considera que depois da partida dos jesuítas, os guaranis teriam se embrenhado nas matas, voltando a um modo de vida semicivilizado. Outra parte desta população teria se miscigenado ou ainda se “aculturado”, integrando, assim, a totalidade da população sul-riograndense.

Os assentos batismais, porém, revelam a existência de outro processo histórico, que não vem a negar o que já se sabe sobre os guaranis missioneiros, mas que talvez ajudem a repensar as explicações referentes à “integração” dos povos missioneiros a sociedade luso -brasileira oitocentista. A grande maioria dos batizandos classificados pelo padre como “índio” eram filhos de remanescentes dos povos missioneiros. O primeiro guarani batizado na Capela de Santa Maria, por exemplo, foi a inocente Maria china, “filha legítima de Pedro Baxoré, natural do Povo de Santo Ângelo, e de sua mulher Joanna, natural do Povo de São Luiz em Missões, ambos de Nação Guarani”.24 Somando estes registros, visualiza-se o gráfico abaixo:

24: Registros de Batismo. Santa Maria da Boca do Monte. Mitra Diocesana de Santa Maria (1814-1822).

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Gráfico 2: Número de Registros Quanto a Naturalidade dos Pais de Indígenas (Capela de Santa Maria, 1814-1822)

Fonte: Registros de Batismo. Santa Maria da Boca do Monte. Mitra Diocesana de Santa Maria (1814-1822).

Os dados estabelecem concordância com os trabalhos de Maximiliano Menz (2001), quando afirmou que os indígenas missioneiros colocaram-se em êxodo das Missões, a partir de 1801, passando a viver em pequenos povoados. Infelizmente, não encontramos estudos, sobre outras aldeias, durante a primeira metade do século XIX. Isso nos ajudaria no cruzamento de dados em busca de alguns padrões. Em Santa Maria, por exemplo, verifica-se, pelo gráfico “2”, que 83% dos registros envolviam mães vindas da região das Missões. A definição escrita pelo padre nos assentos, “do outro lado do Uruguai”, referia-se aos outros povos missioneiros, que faziam parte das antigas 30 reduções, espalhadas pelo Paraguai e Argentina.

Os “outros lugares” é uma atribuição dada por esta pesquisa, referindo-se a diversas partes da Capitania do Rio Grande de São Pedro do Sul, existentes no século XIX. Entre os lugares mais recorrentes aparece Aldeia dos Anjos (atual Gravataí), Povo da Cachoeira (lugar próximo à cidade de Cachoeira do Sul) e Aldeia de São Nicolau do Rio Pardo (no atual Rio Pardo). Todas estas eram povoações indígenas, que dispostas nos registros, evidenciam o grau de mobilidade espacial dos guaranis. Somando os assentos com mães vindas do “outro lado do Uruguai” e de outras partes, contabilizamos 7% dos registros.

A diferença existente entre o número de mães e pais, explica-se pelo alto índice de filhos que não tiveram pai registrado, como veremos adiante. Entretanto, esta não seria a única razão para tal fato. A alta concentração de mães na região missioneira merece tratamento mais detalhado, no entanto, esta tarefa está para além de nossa pesquisa no

0 50 100 150 200 250 300 350

MISSÕES DO OUTRO LADO DO URUGUAI OUTROS LUGARES

MÃES

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presente momento. Conseguimos, também, distribuir o número de registros de indígenas por povos missioneiros como mostra o gráfico abaixo:

Gráfico 3: Distribuição de Registros por Povos Missioneiros (Capela De Santa Maria, 1814-1822)

Fonte: Registros de Batismo. Santa Maria da Boca do Monte. Mitra Diocesana de Santa Maria (1814-1822).

Nota-se que a maioria dos assentos apresenta o Povo de São Luiz como o mais recorrente quanto à naturalidade, tanto de pais quanto de mães, entre os batizandos indígenas. Observa-se que o número de mães é proporcionalmente maior do que o de pais para todos os povos. Não sabemos os motivos de São Luiz ser o Povo com maior número de assentos referidos. O fato de todos os Povos, com exceção de São Borja, ficarem praticamente a mesma distância da Capela de Santa Maria, torna difícil explicar a escolha dos guaranis missioneiros pela região central através da geografia.

Assim, a pergunta que o leitor poderia se fazer seria: porque os guaranis das Missões vieram para a Capela de Santa Maria? Consideramos a pergunta muito pertinente, no entanto, não dispomos de bases empíricas para respondê-la no presente momento. Outra questão que podemos levantar seria quanto à historicidade da aldeia de Santa Maria. Não sabemos o momento de sua fundação. Esperávamos encontrar algum indício documentado nos assentos batismais, porém, apenas um registro apresenta mãe indígena como natural de Santa Maria. Contudo, ao analisar os registros em série percebemos que o ano de 1814 concentrou um número grande de cerimônias envolvendo indígenas. O mesmo não é observado para “brancos” e escravos como podemos observar no gráfico a seguir:

0 10 20 30 40 50 60 70 80

Santo Ângelo São Borja São João São Lourenço São Luiz São Miguel São Nicolau

Pai

Imagem

Gráfico 1: Distribuição de Registros Quanto a Cor da Pele  (Capela de Santa Maria, 1814-1822)
Gráfico 2: Número de Registros Quanto a Naturalidade dos Pais de Indígenas  (Capela de Santa Maria, 1814-1822)
Gráfico 3: Distribuição de Registros por Povos Missioneiros  (Capela De Santa Maria, 1814-1822)
Gráfico 4: Ocorrência de Batismos ao Longo do Tempo  (Capela De Santa Maria, 1814-1822)
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Referências

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