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“... uma pesquisa historiográfica não pode ser separada de um

exame das mentalidades coletivas”.

Phillipe Joutard233

Talvez a imagem de um “palimpsesto” seja a mais adequada para se pensar a historiografia e a memória, no contexto das comemorações da Guerra de Canudos, na medida em que é reescrito indefinidamente, utilizando-se o mesmo material, mediante correções, acréscimos, revisões. Cada texto remete a outro e o reinsere dentro de outras épocas e coordenadas com as quais marca sua diferença mas, ao mesmo tempo, marca uma profunda e inequívoca filiação. Como afirma Sara Castro-Klarén, nenhuma versão da história de Canudos escapa à configuração das forças discursivas em luta234.

A força da imagem palimpséstica nos conduz a pensar sobre como os textos historiográficos têm sido, geralmente, lidos. Primeiro, como manifestações do método histórico, no qual são analisados a partir das fontes e a metodologia utilizada para se compreender as referências historiográficas. Ou segundo, eles são lidos como manifestações da realidade histórica em si. Neste caso, o texto é apenas uma janela para a realidade em si. Em contraste com estas posições, Bermejo Barrera propõe enfatizar o caráter peculiar textual do trabalho historiográfico. Mas para identificar esta textualidade, há um problema a ser enfrentado: pode-se falar de um método para analisar os trabalhos historiográficos? E se ele existe, qual é? Tem-se duas propostas antitéticas para responder a tais questões. A primeira toma a história como ciência e o método a ser utilizado é a filosofia da ciência. A segunda propõe a história como um texto humanístico, tendo como referência metodológica a retórica e a crítica literária. Segundo o autor, para além das insuficiências de ambas propostas, temos que levar em consideração a história da

233 In: DOSSE, François. A História. Bauru/SP: EDUSC, 2003, p. 285.

234 CASTRO-KLARÉN, Sara. Canudos: um episódio da história universal. In: GRAHAM, Robert. B.

Cunninghame. Um Místico Brasileiro: Vida e Milagres de Antônio Conselheiro. São Paulo: Sá Editora/Editora da UNESP, 2002, p. 8.

historiografia, isto é, trabalhar com o nível mais concreto e produzir um estudo bibliográfico dos trabalhos sobre um período ou um certo problema. Então, esta disciplina examina a produção historiográfica historicamente determinada seja do ponto de vista social, ideológico ou de quaisquer outros fatores, bem como o impacto dos trabalhos historiográficos235.

Charles-Olivier Carbonell expõe seu ponto de vista no qual o historiador de hoje é mais curioso das representações coletivas - por menores que seja as comunidades que veiculam essas representações - do que das obras-primas. Sua proposta é expor de um ponto de vista histórico, isto é, situando-a constantemente no seu contexto, a diversidade dos modos de representação do passado no espaço e no tempo. Assim, o autor define a historiografia como

“Nada mais que a história do discurso - um discurso escrito e que se afirma

verdadeiro - que os homens têm sustentado sobre o seu passado. (...) Nunca uma sociedade se revela tão bem como quando projecta para trás de si sua própria imagem”236.

Assim sendo, Carlos Fico e Ronald Polito propõem que a historiografia não é apenas a “efetiva produção do conhecimento histórico mas, também, na medida do

possível, a sua disseminação social”. A análise historiográfica não pode prescindir da

dinâmica econômica, política, social e cultural. “Afinal, todos esses aspectos de alguma

maneira condicionam a atuação do historiador e, conseqüentemente, a produção do conhecimento histórico”237. Talvez, por isso, Carlos Guilherme Mota seja taxativo ao afirmar que não se pode conceber análise historiográfica eficaz que não seja, ao mesmo tempo, uma análise ideológica238. Essa visão acentua que a historiografia não é apenas processo de produção do conhecimento histórico e das condições de sua produção, mas, igualmente, o estudo de suas condições de reprodução, circulação, consumo e crítica.

235 BARRERA, José Carlos Bermejo. Making History, Talking about History. In: History and Theory. 40

(May 2001), 201-202.

236 CARBONELL, Charles-Olivier. Historiografia. Lisboa: Teorema, 1981, p. 6.

237 FICO, Carlos & POLITO, Ronald. A História no Brasil (1980-1989): Elementos para uma avaliação historiográfica. Ouro Preto: Editora da UFOP, 1992, p. 18.

238 MOTA, Carlos Guilherme. A Historiografia Brasileira nos últimos quarenta anos? Tentativa de Avaliação

Neste contexto, o conhecimento científico obtido pela pesquisa, através de regras metódicas e transformadores de saber histórico com conteúdo empírico, exprime-se na historiografia, para a qual as formas de apresentação desempenham um papel tão importante quanto o dos métodos para a pesquisa. A historiografia, como produto intelectual dos historiadores, estabelece o papel de interlocução com a sociedade em geral, bem como com a comunidade científica, em particular com a dos historiadores.

Algumas considerações de ordem historiográfica emergem das relações entre história e memória. Há a constatação da exclusão da faceta involuntária e afetiva da memória, por parte da historiografia, ao se eleger a memória voluntária como objeto de análise. Contudo, essa opção vem sendo questionada pela historiografia recente que tem integrado essa dimensão negligenciada aos estudos dos mitos, utopias, da imaginação na história. Assim, Jacy Alves de Seixas lembra-nos “(...) o quanto a história contemporânea tem

presenciado a manifestação dessa instável memória involuntária, carregada de emoções, freqüentemente avessa às clivagens ideológicas e políticas tradicionais”239.

Já António Manuel Hespanha ressalta a importância do senso comum na construção do enredo historiográfico, ainda que não ignore também a influência da memória culta sobre o senso comum quanto ao passado. O autor toma como “conhecimento do senso comum” ou “representações do cotidiano” as representações espontâneas, implícitas e não problemáticas sobre o mundo natural, humano, social. Segundo ele, as diferentes formas de se escrever a história acabam por ter como ponto de partida as representações do senso comum, ainda que em alguns casos para negá-las, como é o caso da na história “cientificista”. Talvez a única exceção em que o papel criador do senso comum é assumido seja o da história“narrativista”. As dificuldades daqueles que procuram reduzir o impacto do senso comum na modelação da narrativa histórica podem ser assim resumidas na contradição de se escrever sobre um outro tempo, sem conseguir escapar do seu próprio tempo, isto é, o estudo acaba por ser de nós mesmos, os contemporâneos, e não dos outros, os antepassados. Segundo Hespanha, na leitura das fontes o seu sentido imediato, sugerido pelo senso comum, nem sequer é problematizado, ou seja, as “fontes são banalizadas, tidas como repetindo (e confirmando) as trivialidades do senso comum”. Assim, somente a partir

239 SEIXAS, Jacy Alves de. Os campos (in)elásticos da memória: reflexões sobre a memória histórica. In:

SEIXAS, Jacy A., BRESCIANI, M. Stella & BREPOHL, Marion (orgs.). Razão e paixão na política. Brasília: Editora da UnB, 2002, p. 74-75.

da redução do senso comum banalizador, no sentido de desmascarar o enviesamento do discurso, as fontes são deixadas falar a linguagem da sua alteridade240.

A propósito, nas diversas narrativas presentes na historiografia e na memória coletiva, percebe-se um freqüente entrelaçamento entre história e memória. Fernando Catroga realça que a recordação e a historiografia constroem re-presentificações que interrogam os indícios e traços que ficaram no passado. O texto histórico realiza sua leitura do passado a partir do presente. É como se recordar e historiar tem a sua outra face em projeções que fazem do passado um mundo de possibilidades, pois o acontecido já não existe mas, no campo de re-presentificações, ele continua a ter futuro. Segundo ele, a historiografia funciona também como fonte produtora (e legitimadora) de memórias e tradições, chegando mesmo a fornecer credibilidade cientificista a novos mitos de (re)fundação de grupos e da própria nação. “Isto explica a condicionalidade a toda a obra historiográfica, em cujos interstícios e não ditos, muitas vezes, se pode surpreender, escondida, a vala comum dos marginalizados e esquecidos”. Sua interpretação reitera “aqui que, nos seus campos próprios, a memória e a historiografia se encontram na consciência da

dívida, isto é, como o imperativo de também dar a palavra aos que, quando vivos, já

estavam condenados ao silêncio”241.

O historiador português observa ainda que “a historiografia, com as suas escolhas, valorizações e esquecimentos, também gera a ‘fabricação’ de memórias, pois contribui, através do seu cariz narrativo e da sua cumplicidade, directa ou indirecta, com o do sistema educativo, para o apagamento ou secundarização de memórias anteriores, bem como para a refundação, socialização e interiorização de novas memórias”242. Assim sendo, da mesma forma que a memória, também “a escrita da história tem sido crescentemente percebida

como instrumento político”243.

Esta leitura possibilita-nos analisar a historiografia produzida no âmbito dos centenários de Canudos. Talvez a periodização mais interessante acerca da história da

240 HESPANHA, António Manuel. Senso Comum, Memória e Imaginação na Construção da Narrativa

Historiográfica. In: CARDIM, Pedro (org.). Op. Cit., p. 21-34.

241 CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001, p. 45, 48 e 49. 242 Idem, p. 57.

243 SANTOS, Myriam Sepúlveda dos. Entre o Tronco e os Atabaques: A Representação do Negro nos Museus

Brasileiros. In: Colóquio Internacional O Projeto UNESCO no Brasil: uma volta crítica ao campo 50

anos depois. 12 a 14 de janeiro de 2004. Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia.

história da Guerra de Canudos seja a elaborada por José Calasans, que propõe três momentos. Um primeiro chamado pré-euclidiano, desde o relatório de João Evangelista até a publicação de Os Sertões, em 1902. O segundo representaria a hegemonia euclidiana desde 1902 até o cinqüentenário da Guerra de Canudos (1947), quando é editada a reportagem de Odorico Tavares, que resgatou Canudos do esquecimento. E, por fim, uma fase - pós-euclidiana - pode ser delimitada entre as comemorações do cinqüentenário e dos centenários da Guerra de Canudos (1993-1997), na qual se destaca a obra do próprio José Calasans, que possibilitou, através de novas idéias e novas fontes, ver Canudos de forma diferente e plural, principalmente ao se libertar da tradição euclidiana e buscar compreender a vida cotidiana do sertanejo244.

Dentre as diversas possibilidades de abordar a historiografia sobre a Guerra de Canudos, optei pelo recorte temático, na medida em que proporciona destacar várias características que remetem a suas diferentes fases, especialmente no que se refere à interpelação da memória na produção historiográfica, e que vão influenciar, inclusive, diferenciadas leituras elaboradas pelo discurso artístico, literário e político sobre o tema.