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próprias terras. Destaque-se, nesta peleja, o papel do coronel José Américo Camello que teve ampla participação nos acontecimentos da Guerra de Canudos e como perseguidor de índios314.

Edwin Reesink afirma que as fontes escritas e os depoimentos orais convergem no sentido de que houve uma grande participação dos índios de Mirandela na Guerra de Canudos. Mas para os outros índios, a documentação é extremamente fragmentária. Na tradição oral dos índios emerge uma memória compartilhada que revela a brutalidade da expulsão de suas terras perpetradas pelo coronel José Américo Camelo de Souza Velho. Já nas memórias familiares são confirmadas as idas de índios para Canudos e que, alguns deles, retornaram. Segundo o antropólogo, a “Guerra de Canudos forneceu o último e mais eficiente pretexto para a expropriação final, uma convulsão social num momento em que toda a região, em particular, as suas camadas menos favorecidas, eram consideradas de forma extremamente negativa”315.

Reesink aponta para uma interessante “circularidade entre a escrita, até a memória escrita da memória oral, e a memória oral narrada hoje”. Como exemplo, ele cita que o pai de Dona Maria lia a Bíblia para os seus filhos. Exceto a Bíblia, a entrevistada não acreditava muito nas histórias contadas, até que ouviu confirmar, por outra fonte, uma das mesmas. “Hoje ela se arrepende, reavaliando a veracidade das mesmas”316.

As pesquisas de Mascarenhas e de Reesink mostram a riqueza da tradição oral ainda a ser explorada na região do sertão de Canudos ou mesmo na construção da geografia dos lugares de memória por onde Antônio Conselheiro andou ao longo de mais de vinte anos pelos sertões nordestinos e que ainda não foram pesquisados. Foi por esta trilha que Itamar Freitas buscou os rastros do Conselheiro em Sergipe. Ao focar seu ensaio nos testemunhos da experiência de sergipanos no evento, o autor fez uma incursão no povoado Samba, município de Riachão do Dantas, onde Conselheiro teria visitado-o entre 1872-1874, quando foi recebido pelo coronel José Patrício Ponciano. Sobre a receptividade do discurso do Conselheiro na região, Freitas cita a fala de Daniel Fabrício da Costa, 80 anos: “... um

314 MASCARENHAS, “Toda Nação em Canudos” (1893-1897): Índios em Canudos (Memória e tradição oral

da participação dos Kiriri e Kaimbés na guerra de Canudos. In: Revista Canudos. V. 2, n. 2, CEEC/UNEB, 1997, p. 68-84..

315 REESINK, Edwin. A Tomada do coração da aldeia: a participação dos índios de Massacará na Guerra de

Canudos. In: Cadernos do CEAS. Salvador: (número especial Canudos), p. 73-95 [p. 78].

senhor José de tal, criador de gado e ovelhas, proprietário da fazenda Macota, teria vendido todos os bens e seguido com a família rumo à ‘terra prometida’, depois de ter sido ‘aconselhado’ pelo peregrino que lhe fizera alusão à parábola ‘da passagem do camelo pelo fundo da agulha’”. Segundo outro entrevistado, Manoel Sales, o nome dele era Joaquim da Macota317.

Patrícia Pinho de Santana, em sua dissertação de mestrado, buscou ouvir as histórias de Canudos a partir dos habitantes da atual cidade de Canudos, construída após o açude do Cocorobó. Sua intenção não é analisar a Guerra de Canudos em si, mas perceber como as representações existentes hoje sobre os guerreiros de Antônio Conselheiro formam uma rede de resistência à opressão cotidiana que sofre hoje este povo sertanejo”318.

Alguns temas emergiram da leitura do passado conselheirista que merecem destaque na obra de Santana. Várias falas revelam a fartura como signo representativo da antiga Canudos, tanto na dos velhos quanto na dos jovens. Segundo Dona Zefa (Maria Josefa dos Santos), “todo mundo comia até encher a barriga, e ninguém fazia conta de nada, porque

tinha comida bastante pra todos mundo”. Para Dona Isabel Guerra, “o povo desse mundo todo ia pra Canudos, porque lá tinha muito milho, muito feijão. Tinha roça, bode, gado. Tinha muita grandeza”. João de Régis afirma que “a vida naquele tempo era melhor porque chovia mais, tinha mais legumes... Se o camarada ia pro mato caçar, tinha peba, tinha bola, tinha veado, tinha ema, tinha caça de toda qualidade (...) Tinha rapadura, tinha mel. Em Canudos tinha tudo de comestível, não precisava comprar fora”. Aroldo Costa dos

Santos, membro da Associação Centro de Estudos e Pesquisas Antônio Conselheiro (ACEPAC) também afirma que “Lá tinha muita fartura. Canudos parece que foi

abençoada por Deus. Um sertão desses ... e tinha fartura”319.

No imaginário popular de Canudos, Antônio Conselheiro era um homem santo e que se vestia “igual a São Francisco”, nas palavras de Dona Zefa. Segundo ela, “Conselheiro era bom. Mãe disse que o povo gostava dele. O povo até brigava pelos restos

de sua comida porque diziam que faziam milagres e curavam doenças”. Mas, entre os

jovens, não há uma crença na santidade de Conselheiro, mas sim a de um líder prático

317 FREITAS, Itamar. No rastro de Conselheiro. In: Cinform. Aracaju, n. 755, 29 de setembro a 5 de outubro

de 1997, Caderno Municípios.

318 PINHO, Patrícia de Santana. Revisitando Canudos Hoje no Imaginário Popular. Campinas/SP,

IFCH/UNICAMP, 1996 (Dissertação de Mestrado), p. 120.

como afirma José Américo Amorim, jovem poeta canudense: “Líder de um povo que

tentava exatamente uma organização, uma libertação dos poderes que até hoje nós sofremos. Conselheiro queria mudar essa história. (...) ele queria que o povo fosse livre”320.

Pinho relata ainda a valentia sertaneja presente na memória dos velhos habitantes de Canudos como é o caso de Dona Zefinha: “Eles morreram, mas não se renderam, porque

eles tinham opinião”. Mas o tema mais candente era o relacionamento entre ricos e pobres,

pois, na memória popular, Canudos representou uma possibilidade de viver de forma cristã e onde os irmãos dividiam o que tinham, de forma igualitária. Nas falas emergem os temas da libertação e da união para enfrentar as agruras do cotidiano. A imagem de uma Canudos igualitária pode ser associada a atuação da Igreja Católica na região, que, através de missas, romarias e a prática sacerdotal cotidiana, reitera, constantemente, a idéia do igualitarismo entre os canudenses. João de Régis afirma que, em Canudos, “A terra não tinha dono. O

freguês podia chegar e fazer sua roça. Um fazia a casa aqui, o outro podia chegar e fazer encostado na dele, ninguém exigia. Lá um dava ao outro”. Segundo a autora, não se pode

pensar a igualdade no caso de Canudos a partir de uma forma apenas econômica, já que nas falas existe a imagem diferenciadora entre ricos e pobres. “Mas, era ‘todo mundo igual’

porque todos viviam uma mesma vida, onde todos trabalhavam coletivamente e ninguém teria usufruído do trabalho alheio. Eles eram todos iguais porque eram, todos, tanto os ricos quanto os pobres, seguidores do Conselheiro”321.

Também encontramos uma outra perspectiva de análise que busca inventariar as representações da guerra de Canudos no jornalismo da época em que se travou o conflito, como é o caso do trabalho pioneiro de Walnice Galvão, na medida em que desconstrói o discurso jornalístico sobre Canudos, demonstrando que, a partir de diversas modalidades textuais como versos, peças dramáticas, prosas, paródias, reportagens e sonetos, acabou por compor um conjunto de representações que moldou as interpretações posteriores, geralmente deturpadas, da guerra de Canudos. Nesta mesma linha interpretativa, temos o artigo de Berthold Zilly que chama-nos a atenção para o fato de que “a guerra de Canudos foi provavelmente o primeiro conflito interno do Brasil a tornar-se evento de mídia

320 Ibidem, p. 106 e 112. 321 Idem, ibidem, p. 129.

internacional, havendo uma estreita relação entre sua modernidade e sua internacionalidade”322 ou ainda o belo livro de Lizir Arcanjo Alves, no qual se elabora uma instigante leitura sobre a representação da guerra de Canudos pelo humor e pela sátira nos jornais do final do século XIX323. Sobre estes textos desenvolverei um comentário mais balizado no capítulo 7 desta tese.

Não podemos esquecer ainda que, dentro do campo historiográfico, a produção marxista sobre o assunto buscava libertar-se da leitura euclidiana da história da Guerra de Canudos. Há um relativo consenso entre os pesquisadores sobre a Guerra de Canudos - e também a respeito do cangaço - da ruptura causada pela publicação da obra de Rui Facó,

Cangaceiros e Fanáticos (1963)324. Ainda que conteste o resultado de suas conclusões - a luta pela terra - no que se refere à Canudos, o professor Calasans afirma que foi a obra de Rui Facó, depois de Euclides da Cunha, a que mais evidenciou o tema da Guerra de Canudos no debate intelectual, tornando-o conhecido pelo público em geral325..

Facó escreve que o ponto de vista errôneo sobre a essência da luta dos habitantes de Canudos elaborado pelo estudo de Euclides da Cunha é oriundo dos “profundos preconceitos e falsas concepções estreitamente antropológicas e geográficas”. Segundo ele,

“Recusam-se os nossos historiadores a ver na resistência maravilhosa de Canudos uma expressão da rebeldia sertaneja à prepotência dos latifundiários, reflexo de uma luta de classes em sua fase superior - a luta armada”326.

Sua visão etapista da história, seguindo as teses do Partido Comunista Brasileiro (PCB) dos anos 50 e 60, do qual era militante, acaba por manter a utilização do termo “fanatismo” construído por Euclides da Cunha e a imprensa brasileira do final do século XIX e início do século XX para caracterizar Canudos, Contestado ou mesmo Juazeiro,

322 ZILLY, Berthold. Canudos Telegrafado: A Guerra do Sertão como Evento de Mídia na Europa de 1897.

In: Anos 90: Revista do programa de pós-graduação em história. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, n° 7, julho de 1997, p. 59-87. Agradeço ao autor a gentileza de ter me fornecido uma cópia deste ensaio.

323 GALVÃO, Walnice Nogueira. No Calor da Hora: a Guerra de Canudos nos jornais, 4ª expedição. São

Paulo: Ática, 1974; ALVES, Lizir Arcanjo. Humor e Sátira na Guerra de Canudos. Salvador: EGBA, 1997.

324 FACÓ, Rui. Cangaceiros e Fanáticos: gênese e lutas. 9ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991. 325 VILLA, Marco Antônio & PINHEIRO, José Carlos da Costa. Op. cit., p.44.

ainda que o veja como sintoma do “desprestígio” da religião dominante entre as massas populares. Segundo esta leitura, nos casos por ele analisados, há uma “tendência natural” dos camponeses espoliados em criar uma “religião própria, que lhes sirva de instrumento em sua luta pela libertação social, como o cristianismo foi, em seus primórdios, religião de escravos e proletários da época”. Para Facó, os movimentos sócio-religiosos nordestinos, construídos em um “meio medieval”, são a “comprovação do conceito marxista do fenômeno religioso como a consciência primária que o homem tem de si mesmo em face de tudo o que rodeia”327.

E, numa clara perspectiva evolucionista, o historiador marxista afirma que conhecendo-se o “nível de evolução” dos camponeses da década de 1950 e 1960 no Nordeste “pode-se avaliar o que seria a sua consciência nos fins do século passado e começos deste século, quando o capitalismo estava muitíssimo menos evoluído, a penetração capitalista na agricultura era mínima, no Nordeste quase nula (...). As populações rurais viviam completamente isoladas das influências progressistas da cidade, mergulhadas no obscurantismo semifeudal”328.

Próximo da leitura de F. Engels, o autor elabora a idéia de que os fenômenos de “fanatismo religioso” e “banditismo” corriam por conta da estrutura feudal ou semifeudal do nordeste brasileiro. Facó incorpora, em sua análise, a tradição cultural do sertão medieval, presente na literatura de cordel, romances, peças de teatro etc., para caracterizar o “atraso” da sociedade e economia nordestinas, bem como a ausência de consciência social do sertanejo, no sentido de transformar as relações “semifeudais” de produção. As opções para os pobres do campo, sem consciência de classe, eram o ingresso nos bandos de cangaceiros e/ou a adesão aos grupos religiosos de lideranças carismáticas.

Assim, ainda que os camponeses não tivessem objetivos claros de suas ações nos bandos de cangaceiros e/ou religiosos, estes movimentos representavam o momento de enfrentamento e resistência ao poder do latifúndio. Por isso, a luta heróica do sertanejo para sua sobrevivência vai ser resgatada pela produção cultural marxista, pois os movimentos de rebeldia do passado situavam-se como precursores de uma tradição revolucionária329.

327 Idem, p. 50. 328 Ibidem, p. 71.

329 SILVA, José Maria de Oliveira. SILVA, José Maria de Oliveira. Rever Canudos: Historicidade e Religiosidade Popular (1940-1995). São Paulo, FFLCH/USP, 1996 (mimeo.), p. 221.

Outro expoente da vertente marxista de análise da Guerra de Canudos é Edmundo Moniz, que, além de retomar o trágico capítulo da história do Brasil, acaba por renovar a historiografia de Canudos, reiterando que o acontecimento, nas palavras de Mário Pedrosa, “não é um incidente da história da República, mas até hoje o seu drama central”330. Moniz propõe que Canudos foi uma sociedade igualitária no sertão da Bahia e os seus camponeses “não lutaram contra o regime republicano que, para eles, não se distinguia do regime monárquico. Lutavam contra a burguesia em ascensão que se unira aos grandes proprietários rurais para a preservação dos latifúndios”. Em sua análise, para se compreender a economia e a sociedade brasileiras do período, tem-se que levar em conta o seu desenvolvimento desigual e combinado “que se caracteriza, no processo de produção, como amálgamas de formas feudais e pré-capitalistas”. Assim, o autor marxista procura demonstrar que a guerra camponesa de Canudos foi uma conseqüência da “revolução burguesa” no Brasil que, incompleta, “deixou de cumprir a missão democrática de realizar a reforma agrária”331.

As fontes históricas que alicerçam sua interpretação incluem, além da documentação escrita, a tradição oral, com depoimentos daqueles que acompanharam os acontecimentos ou participaram diretamente como Arlindo Leone, Afonso Costa, Alvim Horcardes e J. J. Seabra. Contudo, o autor ao compulsá-los sempre teve “o cuidado de verificar se não contradizia os fatos que deixaram provas concretas”. Segundo Moniz, ele só reproduziu o que lhe pareceu lógico e verdadeiro, pois seu interesse não era “alimentar o que existe de legendário em torno de Canudos e de Antônio Conselheiro e sim o de restabelecer a verdade com os elementos de que disponho”332.

Em pequeno artigo sobre a história e a historiografia de Canudos, Mário Maestri lembra-nos que o prosseguimento da guerra camponesa vietnamita, a resistência sandinista na Nicarágua, entre outros movimentos sociais insurgentes nos anos setenta, mantiveram aceso o interesse de pesquisas sobre o movimento camponês, a qual se insere o livro de Moniz. O autor baiano apresentava no mencionado livro e em outro livro de menor fôlego,

Canudos: A Luta pela Terra, publicado no início dos anos oitenta, Antônio Conselheiro

330 PEDROSA, Mário. Canudos de Edmundo Moniz. In: MONIZ, Edmundo. Canudos: A Guerra Social. 2ª

edição. Rio de Janeiro: Elo, 1987, p. 301.

331 MONIZ, Edmundo. Canudos: A Guerra Social. 2ª edição. Rio de Janeiro: Elo, 1987, p. 12. 332 Idem, p. 307.

como uma liderança carismática e providencial, defensor da reforma agrária no século XIX. Efetuara-se, assim, uma operação de deslizamento da figura de Conselheiro: de pensador teológico tradicional a reformador e agitador social, leitor da Utopia de Thomas Morus e adepto do socialismo utópico333.

Como lembra José de Souza Martins, os historiadores marxistas encontram-se ainda presos a uma conceituação que tolhe as especificidades da luta camponesa no Brasil, na medida em que os coloca como “movimentos pré-políticos”. Também Marco A. Villa critica a historiografia marxista, especialmente o trabalho de Edmundo Moniz, quando afirma, de um lado, que não “cabe incluir Canudos na linha evolutiva seqüencial das revoluções ocidentais” e, de outro, sugere que estes historiadores desconsideraram a “influência religiosa como se a religião fosse somente um invólucro que encobrisse as razões de ordem material. Assim, a religião não passa de uma interpretação desfocada da realidade”, ou seja, falsa consciência. Ou ainda que não é plausível afirmar que a comunidade era socialista, na medida em que existia propriedade privada e acumulação privada de parte dos lucros, além de desigualdades sociais. Segundo o autor, o que existia era um comunitarismo que fora produzido pela tradição sertaneja, ao longo de sua história334.

Então, que a transformação dos conselheiristas em signo de rebelião contra a ordem burguesa e capitalista torna, inexoravelmente, toda produção intelectual sobre o tema intensamente “apaixonada”, revelando “um interesse situado mais no terreno das tensões e contradições da cultura brasileira, do que na investigação histórica descomprometida”. Nas palavras de Carlos Alberto Dória, a questão “é saber como aqueles fragmentos de história se inscrevem no universo ideológico moderno”335, na medida em que balizariam as leituras feitas pelos movimentos sociais e religiosos, além de intelectuais, especialmente no que se refere ao igualitarismo da comunidade de Belo Monte. Além do trabalho de Edmundo Moniz, já mencionado, temos alguns autores que defendem a imagem de uma Canudos igualitária. Destaco aqui, entre outras, as idéias de Clóvis Moura, de Enoque Oliveira, líder do Movimento Popular e Histórico de Canudos, e de Sérgio Guerra.

333 MAESTRI, Mário. Canudos: história e historiografia. In: www.ax.ax.apc.org/~pauloemiliom/res2.html;

MONIZ, Edmundo. Op. cit.; ____. Canudos: A luta pela terra. 4ª ed. rev. a ampl. São Paulo: Global, Coleção História Popular, 1986.

334 VILLA, Marco Antônio. Op. cit., p. 237 e 238.

Num ensaio de sociologia política sobre a Guerra de Canudos, Clóvis Moura legitima essa afirmação, ao propor que “Canudos não foi apenas uma utopia camponesa, mas, pelo contrário, uma experiência camponesa bem sucedida”. Segundo ele, desenvolvia- se uma economia comunitária e alternativa auto-suficiente que se contrapunha as relações sociais da estrutura latifundiária existente no resto da região. Daí haver a possibilidade da experiência de Canudos servir de modelo a outras comunidades. O ódio e o temor dos fazendeiros e das autoridades vinham do medo do crescimento da liderança de Antônio Conselheiro e da sua solução para a questão agrária no Brasil, através da constituição de um conjunto de comunas camponesas336.

Enoque Oliveira desenvolve sua argumentação próxima da leitura marxista, ao situar a comunidade de Canudos como um exemplo de reforma agrária e trabalho comunal. Sua proposta dá a impressão de que a memória do modo de vida de Antônio Conselheiro entre os sertanejos e sua tradição de religiosidade tem servido mais facilmente para doutriná-los sob a égide da teologia da libertação para um programa de protesto e reforma337. Num texto publicado nos anos 1980, pelo Novo Movimento Histórico de Canudos, por ele liderado, isto fica explícito:

“Organizar seus habitantes. Praticar a igualdade. Era preciso garantir a sobrevivência da população. Era preciso produzir. Era preciso defender a organização e, sobretudo, era preciso trabalhar a terra em comunidade e colocar a produção a serviço de todos. Obediente aos mandamentos da Lei de Deus, devoto da Virgem Maria que prega a elevação do povo humilde, Conselheiro ensina que a terra tem um dono só: Deus! Se a terra é de Deus, os camponeses podem ocupá-la”338.

Numa leitura próxima à de Enoque Oliveira, Sérgio Guerra, no contexto do centenário de fundação de Belo Monte, afirma que a questão da Guerra de Canudos “nos exige uma posição muito clara entre a realidade de uma sociedade construída em cima da

336 MOURA, Clóvis. Sociologia Política da Guerra Camponesa de Canudos: Da destruição de Belo Monte ao aparecimento do MST. São Paulo: Expressão Popular, 2000, p. 40 e 52-53.

337 MADDEN, Lori. The Canudos War in History. Luso-Brazilian Rewiew. v. 30, n. 2, University of

Wisconsin, winter 1993, p. 14.

338 Coordenação do Novo Movimento Histórico de Canudos. Canudos: a sua história e de seu fundador.

opressão, exploração e acumulação individual do resultado do trabalho coletivo contra uma utopia construída a partir da Liberdade, Igualdade e a Solidariedade”. Assim, o autor associa Canudos ao “sonho da Canaã nordestina”, pois Antônio Conselheiro retomou “o sonho de liberdade que tem alimentado os explorados de todo o mundo, desde que o mundo tem dono e a exploração se instalou na Terra”339.

Vimos que a análise da tradição oral proporcionou um rico painel da comunidade de Belo Monte, sendo fonte fundamental para um posicionamento crítico diante do