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A pintura de Guignard para a crítica de arte produzida no Brasil: entre o “nacionalismo lírico” e “ingênuo” e a articulação da linguagem plástica como

O “Nacionalismo Lírico” de Guignard

2.2 A pintura de Guignard para a crítica de arte produzida no Brasil: entre o “nacionalismo lírico” e “ingênuo” e a articulação da linguagem plástica como

sinônimo de “moderno”

Em 1970, o crítico de arte norte-americano Gilbert Chaise, ao escrever um livro sobre arte latino-americana de 291 páginas, seleciona três obras de Guignard que estão den- tro da temática do “nacionalismo lírico”: Uma família na praça (1945), Os Noivos (1937) (fig. 8) e Noite de São João, do MoMA (1942).

Guignard foi pintor experimentado, hábil desenhista e um mestre da cor, que de- liberadamente manteve seu trabalho em nível de aparente simplicidade, apreen- dendo o encanto do “ingênuo” livre de sua inabilidade estilística ou insuficiência técnica (CHAISE, 1970 p.191-192).

Mas a visão exótica do estrangeiro se harmoniza com a construção de uma ima- gética nacional produzida pela arte brasileira nos anos 30/40. Também em São Paulo en- contramos Volpi, a produzir uma série que resultará nas suas “fachadas”, sob influência do pintor naïf Emígdio de Souza, com quem mantém contato a partir de 1939, em Itanhaém, cidade que Volpi visita constantemente. Em meados dos anos 30, Pennacchi também é ou- tra influência sobre Volpi, quando freqüentam o Edifício Santa Helena no centro de São Paulo. Pennacchi trazia de Florença a influência da pintura “popular” sobre o realismo de Ottone Rosai.

Em texto de 1944, publicado na Folha da Manhã, Mário de Andrade confessa não saber avaliar as liberdades formais de Volpi e chama a atenção para a despreocupação do pintor com o acabamento da obra (cf. MAMMI, 2001, p. 25). Lorenzo Mammi afirma que os “elementos populares” já aparecem na obra de Volpi em meados dos anos 30, a mesma época em que Guignard começa a fazer os seus retratos familiares. Mas nos anos 40, e principalmente na série de “brinquedos” da década de 50, Volpi retira da “sintaxe popular” um processo construtivo que coloca a questão formal em primeiro plano, tornando o assunto cada vez mais irrelevante, segundo a percepção de Mammi. A descoberta da sim- plificação popular da imagem resultará em Volpi, numa atitude que almeja prioritariamente os resultados plásticos, desprezando totalmente as veiculações ideológicas do “assunto”.

Lorenzo Mammi esclarece este ponto:

[...] Nos trabalhos mais antigos (anos 30), era popular o gosto pela narrativa solta e coloquial, baseada numa sintaxe paratática, que dispunha as coisas no plano da tela, sem encadeá-las numa grade rígida. Nas obras da década de 40 não há som- bra de dialetos. O que se extrai da arte popular é, agora, a força de sua literalida- de. Um pintor popular, para reproduzir um objeto, desenha os contornos deste na superfície do quadro e os preenche com tinta, exatamente como recobriria o pró- prio objeto se o tivesse diante de si. As cores não se misturam à atmosfera, e não importa a posição que o objeto ocupa no espaço. [...]

O caráter literal da pintura popular, que não distingue entre objeto e figura, é as- sumido quase programaticamente por Volpi em seus “brinquedos” da década de 1950 [...] (MAMMI, 2001, p. 27-28).

Apesar de Guignard procurar articular elementos da sintaxe popular em sua lin- guagem plástica, os retratos de família ainda estão imbuídos da narrativa do tema e não buscam o grau de abstração formal que as séries de “fachadas”, “brinquedos” e “bandeiri- nhas” de Volpi alcançam, em sua intenção exclusivamente construtiva.

Lorenzo Mammi percebe que a incorporação da sintaxe popular não é exclusi- vidade da obra de Volpi, mas que talvez tenha sido ele o artista que soube extrair daí os resultados mais expressivos para a constituição de uma poética, que é ao mesmo tempo linguagem plástica.

De maneira mais geral, a intuição da potencialidade moderna da sintaxe popular foi determinante em toda a sua produção posterior, a partir do fim dos anos 40: permitiu, afinal, conjugar inquietude com arcaísmo, a vontade de expressão sub- jetiva com a aspiração para formas estáveis, atemporais. Não é apenas, porém um achado de Volpi: toda a cultura brasileira dessa época se debruça sobre a cultura popular com um olhar renovado. Mário de Andrade, Villa Lobos, Di Cavalcanti procuraram no folclore vocábulos idiomáticos que concorressem à formação de uma linguagem com características nacionais (MAMMI, 2001, p. 28).

No elogio que a crítica brasileira contemporânea ao pintor faz aos “retratos de família” de Guignard, é o conteúdo narrativo que é realçado e não a linguagem plástica.

Rubem Braga, encantado pelos temas populares de Guignard, literaliza:

As pessoas retratadas por Guignard têm um certo ar de família, alguma coisa que as liga – não importa cor, idade, classe. E já vi, em fila de cinema, em festinha de família, em cabaré do interior, em solenidade escolar – já vi pessoas que parecem retratos de Guignard.

Esse ar de família só pode ser uma certa candura, uma insistente infância, alguma coisa que é Guignard, e que banha numa luz especial tudo o que ele vê, ou inven- ta. E suas flores e suas paisagens combinam com suas figuras. Aquela cabocla re- tratada ali, de blusa vermelha, pode rezar naquela igrejinha que está no alto do morro em outro quadro; e, com certeza, reza (BRAGA, 1977).

Comentando a divisão moderna do Salão Nacional de 1942, Manuel Bandeira se encanta pela tela de Guignard, Festa de São João, e tenta traduzir para uma realidade plástica o impacto que a narrativa singela do quadro lhe causou:

A contribuição de Guignard ao Salão deste ano é não só a mais importante da se- ção moderna: é a mais importante, a mais completa e a mais harmônica das duas seções. Nenhum outro quadro da exposição me deu como a sua tela da “Festa de São João”, aquela alegria que nos vem da emoção poética expressa por uma téc- nica limpa, sóbria, sem afetações nem facilidades. O equilíbrio plástico entre os dois elementos tão audaciosamente contrapostos e tão serenamente conjugados – a cidade do primeiro plano e a paisagem montanhosa do fundo – atesta o fino senso de composição do artista (BANDEIRA, 1942).

Dos primeiros comentadores e críticos elogiosos da obra de Guignard, Clarival Prado Valladares, destaca a incorporação pelo artista de valores estéticos dos retratados.

Guignard atinge, em surdina, um dos pontos mais altos da pintura brasileira. Para o primeiro plano, utiliza esquema bidimensional numa aparência de desenho in- gênuo, primário. Entretanto isto corresponde apenas a um recurso de aproxima- ção subjetiva dos personagens, dando-lhes uma atmosfera de naturalidade. Apro- veitando a janela aberta, constrói um fundo paisagístico com perspectivismo. É uma paisagem do poente guanabariano, como indicação topônima da cena. Cada personagem, no próprio disfarce do convencionalismo das atitudes, enriquece a narração com surpreendente e espontânea nobreza. O garbo militar dos dois fuzi- leiros, a dignidade da figura feminina, a circunspecção dos meninos e o maravi- lhoso rasgo patriótico de uma banderinha de dia de parada, empunhada pelo filho que já se farda de marinheiro, conferem a este quadro a grandeza de uma pintura de corte. [...] As cores do arranjo decorativo do ambiente lembram interiores de Matisse. Todavia, antes de se permitir esta facilidade de confronto, a verdade é que lembram mais e identificam plenamente o gosto e o espírito dos que fazem a cena (VALLADARES, 1967).

O recurso à sintaxe “ingênua” é computado como adesão à independência van- guardista. Mas a crítica brasileira posterior, com um domínio mais seguro dos pressupostos formais articulados por críticos modernistas como Clement Greenberg, nos EUA, ou Roger Fry, na Europa, inerentes às obras das vanguardas européias e da abstração norte-americana do pós-guerra, faz leitura diferente da de Clarival. Em relação à articulação que Guignard faz de seus meios específicos, Sônia Salzstein problematiza a questão, ao comparar com

artistas das vanguardas européias e com Volpi, o artista brasileiro que, para a crítica, está mais próximo da autonomia da linguagem proposta pelas vanguardas:

Contraponha-se-lhe o recurso a festas e jogos populares na obra de Léger, onde estes surgem como deslocamentos de planos e cores sobre a superfície pictórica; ou mesmo Volpi, para nos atermos a um caso próximo, onde as fachadas, bandei- rinhas, brinquedos e mastros surgem antes de uma disposição construtiva frente ao plano. Mas em Guignard o apelo poético do tema não entra como recurso no processo de elaboração de cada pintura. [...] as duas demandas, a qualidade for- mal e a poética narrativa saliente devem, de alguma maneira, se combinar de mo- do a produzir um todo harmônico, sem conflitos metalingüísticos. E se a consci- ência crítica da linguagem aí se exerce em alguma medida – pois não estamos fa- lando de um artista naif – ela não pode distanciar de seu objeto a ponto de subor- dinar o registro figurativo (SALZSTEIN, 1992, p. 18).

No trabalho de pesquisa precursor dessa retomada pela crítica recente da impor- tância da pintura de Guignard, Carlos Zílio propôs, no Curso de Especialização em História da Arte no Brasil da PUC/RJ, uma revisão da História da Arte brasileira. O resultado con- seqüente desta proposta concretizou-se nos projetos de análises das obras de Goeldi e Guig- nard por ele coordenados. Especificamente o projeto de pesquisa sobre a obra de Guignard recebe o título de A Modernidade em Guignard, significativo da intenção de rever o papel do pintor dentro do contexto brasileiro, realçando, para isso, as características plásticas de sua obra. O texto produzido por Zílio (1982c) para o projeto versa sobre a importância do motivo das nuvens na pintura de Guignard como um elemento que lhe propicia lidar com questões mais especificamente plásticas da pintura, como o conflito entre o desenho e a cor, abstraindo assim de possíveis conotações ideológicas dos temas.

Se examinada dentro do processo de assimilação da modernidade pela cultura brasileira e localizada na fase do modernismo posterior a 1930, a pintura de Guignard é, dentre as surgidas neste período, a que mais profundamente penetrou na arte moderna, pois realiza uma incorporação meticulosa das origens da pintura moderna e evolui para se situar em referências em torno do cubismo, fauvismo e expressionismo, incorporados por uma ótica muito própria.

A relação intensa que, através de um projeto poético, sua pintura estabelece com o modelo, a encaminha para uma apreensão aguda do homem e da paisagem bra- sileiros. Este é o fundamento da chamada ‘brasilidade’ da obra de Guignard, que nada tem a ver com o nacionalismo instituído que então predominava (ZÍLIO, 1982a, p. 20-21).

O autor aponta, na “brasilidade” de Guignard, uma opção poética em resposta muito particular à hegemonia temática da época. Além dessa diferenciação no tratamento

dos temas, podemos detectar em Zílio a afirmação dos aspectos formais como argumento fundamental para a defesa da modernidade do pintor, em detrimento da leitura da crítica dos anos 30 e 40, que vinculava à noção de arte moderna brasileira o “assunto” nacional.

Guignard foi assimilado como uma criatura ingênua que conseguiu expressar a poesia da “alma brasileira”. Seu trabalho, no entanto, demarca-se pelo compro- misso de procurar se fazer pintura acima de qualquer vínculo anedótico. Ele não trata da “alma brasileira”, mas busca por meio de uma tendência que ao longo de seu trabalho tende a se tornar marcante, anular a relação figura e fundo pela dis- solução do espaço e por meio do tratamento subjetivado da cor diluída provocar um transbordamento lírico do sujeito na natureza. Para poder ser absorvida pela ideologia modernista, sua obra teve de sofrer uma leitura reducionista que esvazi- ou seu sentido cultural, seu valor ontológico (ZÍLIO, 1994, p. 114).

Neste momento há a necessidade de se demarcar novas bases de referência para a arte moderna brasileira, fazendo uma revisão de seus pressupostos estéticos, isolando a vin- culação ideológica e seu engajamento no contexto histórico nacional.

Ronaldo Brito, participando do mesmo projeto, aponta a ambigüidade do trabalho de Guignard, entre a afirmação autônoma dos elementos plásticos constitutivos da obra e a sua aderência ao assunto:

[...] a impregnação afetiva do assunto no processo pictórico, que se mantém as- sim no limite da pintura temática, tudo isso remete a uma tradição que já o im- pressionismo deixara para trás (BRITO, 1982, p. 12).

Logo a seguir, no mesmo texto, o crítico sai em defesa do pintor e, para isso, procura atributos da obra de Guignard que corresponda a critérios formalistas:

Aparece já nessas cores tênues e alusivas uma preocupação consigo mesmas en- quanto relações puras. Portinari e Di Cavalcanti literalizavam mais e mais as suas cores, Guignard conseguia equilibrá-las numa relativa indeterminação, pulsantes e inverbalizáveis (BRITO, 1982, p. 12).

Brito justifica o atributo de “nacionalista lírico”, dado a Guignard, como ineren- te a uma opção consciente do pintor, na articulação dos meios específicos à pintura, em contraposição ao predomínio da questão temática sobre a formal na ideologia estética na- cionalista:

O nacionalismo lírico seria assim uma determinação estrutural do trabalho – na medida em que ele seguia preso ao âmbito de uma expressividade subjetiva – mas

foi construído, conquistado até, plasticamente, no embate com a própria lingua- gem. Não havia arbitrárias e inconsistentes “colagens” de estilos, sobretudo não havia finalidades externas aos quadros. Tudo o que acontecia, acontecia ali mes- mo, na trama da linguagem. Guignard chegou “moderno” da Europa e nesse nível preliminar de modernidade permaneceu (BRITO, 1982, p. 12-13).

Em retrospectiva individual do artista ocorrida em 1992, sob curadoria de Sônia Salzstein e Rodrigo Naves, a distância de Guignard dos pressupostos programáticos do nos- so modernismo é percebida como um índice positivo. Salzstein procura associar as soluções de Guignard a parâmetros de modernidade mais universais, mas reconhece a presença te- mática em sua obra, que problematiza a sua condição enquanto moderna.

O que surpreende em Guignard é a atitude moderna, que mobiliza de maneira muito especial a realização de sua pintura, não decorre do esforço programático presente na maioria de nossos modernistas. Ao contrário, encanta e torna mais complexo o exame dessa obra o fato de que uma espacialidade moderna emerge dela naturalmente, em estado bruto, talhada no atrito com as condições objetivas de um ambiente cultural como o brasileiro. Aí estaria, a nosso ver, o desempenho problematizador no trabalho de Guignard, entregue com desconcertante candura à conciliação desses dois mundos: o aprendizado culto da tradição européia e a a- desão intuitiva e sem reservas a uma tipologia da paisagem brasileira, com suas festas juninas, suas figuras populares, um gosto pelo caprichoso e pelo decorativo (SALZSTEIN, 1992, p. 17).

Em mostra retrospectiva da arte brasileira do séc. XX, em 1994, os curadores Nelson Aguilar, Annateresa Fabris e Tadeu Chiarelli selecionaram um conjunto de obras de artistas representativos do que de melhor se produziu no Brasil (BIENAL BRASIL... 1994). O setor nomeado Às margens do modernismo, de curadoria de Tadeu Chiarelli, apresentou obras de Guignard junto às de Oswaldo Goeldi, Ismael Nery e Flávio de Carva- lho. Esta disposição, separada das obras paradigmáticas de Portinari, Di Cavalcanti e Se- gall, lançou uma nova luz sobre a produção de Guignard, a princípio enaltecendo-a como independente dos programas a que os outros pintores se engajaram. A revisão dos pressu- postos modernistas norteou a exposição, principalmente o setor de Chiarelli. Estar à mar- gem do veio principal do modernismo foi chancela de possível qualidade artística, a partir de uma revisão propiciada por esta retrospectiva. Chiarelli debate a questão temática de parte da obra de Guignard para tentar desfazer o que parece ser um mal entendido cometido na época do artista. Para ele, o pintor foi aceito como modernista em função de sua temática e do tratamento algo “ingênuo”, associado à cultura popular. O crítico aponta para o aspec-

to crucial de sua obra, que não foi percebido em sua devida relevância: a qualidade plástica que transcende o motivo pintado.

A obra do artista, refinadíssima e clara, no entanto, foi percebida pela crítica mo- dernista em geral como apenas uma espécie de balbucio primitivo, quase ingênuo, de uma visualidade brasílica e, portanto, passível de ser acoplada no movimento. Sem dúvida, grande parte de sua obra só poderia ter sido pintada no Brasil, ou melhor, em Minas Gerais. Porém, suas pinturas não reivindicam para si a realiza- ção de um projeto predeterminado de brasilidade; elas apenas são o resultado transcendente de um sensível olhar sobre uma paisagem especial (CHIARELLI, 1994, p. 89).

Em Guignard, tal transcendência em relação ao motivo não se dá plenamente. Te- mática e solução plástica estão numa relação totalmente dependente e é disso que essa obra retira sua força e sua especificidade. Mas Chiarelli, diferentemente de Zílio, ao tratar de Guignard, se vê diante de um problema de definição do moderno. Problema este inerente também aos outros artistas “à margem” apresentados no setor, como Adami, Osir, Gobbis, De Fiori, Emendabile, Pennacchi, Rebolo, Bonadei, Zanini e Volpi, de São Paulo, e Dacos- ta, Pancetti e Takaoka do Rio.

Porém, a trajetória de Guignard apresenta muitas diferenças em relação à obra de Goeldi e mesmo às de Carvalho e Nery. Se os três últimos podem – e devem – ser considerados artistas fundamentalmente ligados às vanguardas históricas, Guig- nard emerge na cena brasileira totalmente impregnado dos valores da volta à or- dem18 e fazendo seu um dos principais legados dessa tendência: a crença de que já no final dos anos 20 as conquistas estéticas das vanguardas faziam parte do pa- trimônio geral da visualidade universal, podendo ser utilizadas da mesma forma que as concepções renascentistas ou da arte popular, por exemplo (CHIARELLI, 1994, p. 89).

Chiarelli defende a originalidade de Guignard, em sua “volta à ordem”, diferente- mente da aproximação aos “maneirismos” ou a “um projeto fundamentalmente realista”, uso que o Modernismo oficial faz da tendência de retorno:

18 Chiarelli afirma: “Nascido num período de declínio das vanguardas estéticas do início do século, o Moder- nismo brasileiro constituiu-se imbuído de um desejo de ser um movimento inovador, de vanguarda, porém dentro do contexto da volta à ordem, o outro lado da modernidade deste século. Surgida na Europa após a Primeira Guerra Mundial, a volta à ordem buscava, além do resgate da fidelidade ao real para a arte, também o retorno à tradição artesanal e às culturas visuais nacionais.” (CHIARELLI, 1994, p.84. Grifos meus).

No caso de Guignard, esse caráter erudito da volta à ordem nunca o levou ao ma- neirismo bem informado mas estéril de alguns de seus colegas internacionais e mesmo locais. A partir da absorção de todo o universo visual conquistado em sé- culos pela história da arte, o artista foi constituindo seu próprio território, articu- lando aos ensinamentos de Nery (Santa Cecília), de Dufy e Botticelli (Lea e Mau- ra) e outros seu olhar desinibido perante a realidade (CHIARELLI, 1994, p. 84). Em outra exposição sob sua curadoria, trabalhos de artistas brasileiros (Ernesto de Fiori, Alfredo Volpi, Iberê Camargo e Guignard) são dispostos paralelamente às telas do artista fauve francês Raoul Dufy, revelando seu parentesco e o trânsito entre as poéticas. No catálogo o crítico explicita os parâmetros para a modernidade plástica:

[...] Como se sabe, uma das grandes lutas da pintura moderna foi tentar romper com a dicotomia figura/fundo, estabelecida desde o Renascimento, para criar na pintura (sempre planar) a ilusão de tridimensionalidade.

A modernidade na pintura será caracterizada pela luta contra essa obrigação de criar a sensação de tridimensionalidade e – de um ponto de vista talvez formalista demais –, poderia ser dito que o que acabaria levando a pintura para a total abs- tração seria, justamente, o desejo de romper com essa obrigatoriedade.

Pautado pelo seu desejo de ainda representar ou traduzir a realidade tridimensio- nal no plano da pintura – mas convencido que seria sempre seu dever deixar claro ao observador que o que estava à sua frente era um plano bidimensional –, Dufy vai aos poucos construindo o seu sistema pictórico.

Frente ao plano da tela, ele ocupa determinadas áreas por meio de cores e/ou tons diferenciados. Tal procedimento enfatiza o caráter planar da pintura, uma vez que, nesses “fundos”, o artista não se utiliza de estratégias ilusionistas, Dufy so- brepõe a essas áreas sinais gráficos – em negro ou em outras cores onde ele opera – que acabam por configurar, propriamente, a cena que ele retrata (CHIARELLI, 1999, p. 11-12).

Mas a exposição com curadoria de Chiarelli problematiza a condição moderna da Arte brasileira, revisa nossos parâmetros ao confrontá-los com as conquistas vanguardis- tas e aproveita a obra de Dufy mais para registrar o que falta nela e, correspondentemente, na produção de nossos modernos, do que para afirmar sua linguagem. Chiarelli explica da seguinte forma a estranha familiaridade dos nossos artistas com a obra de Raoul Dufy:

[...] no quadro da produção artística internacional, a obra de Raoul Dufy tinha to-