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O “Nacionalismo Lírico” de Guignard

3.1 Jardim Botânico do Rio de Janeiro

Em suas primeiras paisagens após o retorno definitivo ao Brasil (1929), Guig- nard se vê obrigado a fazer uma revisão dos conceitos que traz de seu período de formação na Europa. Em entrevista concedida no ano de 1949, reproduzida por Frederico Morais, Guignard reconhece a divergência entre os estudos na Europa e as cores e paisagens brasi- leiras:

[...] verificando que o que estudara na Europa nada tinha a ver com as cores e pai- sagens brasileiras, fez uma revisão nos seus estudos anteriores, mudando comple- tamente a sua visão técnica (MORAIS, 1974a).

José Roberto Teixeira Leite (1962, p. 41) comenta que o artista teve dois cho- ques ao retornar ao Brasil: um com o meio artístico acanhado e o outro, “mais profundo, com a própria natureza do país, responsável por uma modificação radical em sua pintura”.

O choque diante da natureza brasileira é recorrente na pintura de paisagem no Brasil, introduzida por artistas vindos do exterior. O séc. XIX é rico em experiências de artistas, a maioria estrangeiros, que diante da exuberância local, representaram uma nature- za exótica e desconhecida, amparados em conhecimentos importados de ciências como a botânica, a zoologia, a topografia, a geografia, mineralogia, etnografia e história2.

A paisagem de Guignard dos anos 30 não almeja a veracidade imagética através da pintura, mas estabelece um diálogo distante com a produção do século anterior. É notá- vel, nesse sentido, o seu interesse pelas espécies botânicas nas pinturas realizadas no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, embora não possam ser classificadas como naturalistas. No embate visual com esta natureza exuberante (fig. 13), Guignard optou de início por repre-

2 Ana Maria de Moraes Belluzzo (1994) chama a atenção para o olhar do estrangeiro, o olhar do viajante que se fascina pela diversidade de espécimes naturais do Brasil, desde os holandeses no séc. XVII, que buscavam apreender a estrutura visível dos seres em sua singularidade. “Foi de acordo com o pensamento clássico que o desenho se tornou um modo de experimentar a verdade ‘exterior’ pelos sentidos, ajustando-a por meio do raciocínio, capaz de valorizar o visto, segundo regras constantes e lógicas. [...] A história dos seres naturais e, no seu interior, o reino da botânica oferecem o exemplo mais logrado desse modelo de conhecimentos e orde- nação do universo, para a construção do qual se aliaram arte e ciência.”

sentá-la em categorias (a flora amazônica, a flora das serras fluminenses, etc.), como na representação das espécies botânicas aquáticas da pintura Jardim Botânico (fig. 14). Diante de um universo tão complexo, ele seleciona e procura objetivar. Uma vez feita esta opera- ção veremos que ele tende a intensificar a subjetividade através de decisões plásticas, elas revelam a busca do artista pela construção de uma linguagem moderna.

É possível que a primeira exposição individual brasileira de Tarsila do Amaral, realizada no Palace Hotel, Rio de Janeiro, em 1929, de desenhos realizados a partir de sua viagem a Minas Gerais cinco anos antes, tenha influenciado Guignard, bem como a primei- ra mostra de Ismael Nery, no mesmo local e ano (cf. MORAIS, 1995; CAVALCANTI, 2000; LIMA, 2001). Alguns desenhos de Guignard do início dos anos 30, realizados em bico de pena, possuem uma atmosfera surreal ou metafísica que pode ser creditada à pre- sença de Nery e Murilo Mendes em seu círculo de relacionamento mais restrito.

Entretanto, é na produção de paisagens realizadas no Jardim Botânico e nas na- turezas-mortas arranjadas a partir de flores e folhagens que ele trazia para o ateliê localiza- do próximo ao local em questão, que Guignard começa a caracterizar um estilo próprio de pintura (fig. 15,16 e 17).

Rodrigo Melo Franco de Andrade, chefe de gabinete do Ministério da Educação em 1931, diz em texto de apresentação para álbum de reproduções do artista:

[...] O que contemplava e aprendia eram os aspectos empolgantes ou comovedo- res da terra em que tinha nascido, os traços expressivos de sua população, o pito- resco das cidades grandes e pequenas, as peculiaridades da vegetação e dos aci- dentes naturais, o colorido das flores. [...] Quando o artista voltou da Europa, re- descobriu o Brasil, tomado de uma ternura e de uma admiração comovidas, que conservou até os últimos dias. Toda a obra que produziu, desde então, ficou im- pregnada da emoção e da poesia sentidas naquele reencontro (ANDRADE, R. 1986; 1967).

Nessas paisagens do Jardim Botânico, Guignard desenvolve uma arquitetura plástica que lhe possibilita explorar o tema da flora exuberante, dos espaços fechados pela vegetação, da luz que incide filtrada pela copa das árvores, das clareiras súbitas que possi- bilitam toda uma aproximação com a idéia do Jardim, de uma natureza aprazível dentro da natureza selvagem. A organização plástica ganha importância fundamental para os conteú-

dos vinculados à obra, suas estruturas não impõem uma ordem racional dada a priori, mas buscam simplificar e unificar a aparente confusão da natureza. Neste sentido, a produção sob esta temática alcança pontos de tangência com a arte clássica.

Aníbal Machado, por ocasião da inauguração de exposição de Guignard em 1937, deixa importante registro crítico dessa fase do artista:

[...] É a boa pintura de um dos nossos melhores artistas, seguro de seu métier, consciencioso e sensível. Uma fatura sólida, intensa às vezes, à maneira expres- sionista da escola de Munique, onde o artista teve a sua formação e da qual se mostra ainda tributário, quando realiza uma composição como o Noturno, de Bo- rodin, onde não parece estar a expressão mais característica de sua personalidade. O melhor temperamento de Guignard a gente vai encontrar nas suas flores, nas suas paisagens, na fantasia poética de suas ilustrações; a imaginação mais capri- chosa inscreve as suas formas em linhas de uma leveza e de um ritmo gráfico que revelam a um tempo a fantasia poética do artista e os recursos técnicos de que dispõe para traduzi-la. Em Guignard esses recursos são seguros e variados. Mergulhado na féerie vegetal do Jardim Botânico, Guignard trouxe de lá, ainda rescendentes de vida, alguns de seus aspectos coloridos, suas árvores, suas flores – nenúfares e vitórias-régias –, seus bambuais em arcos góticos, tudo irradiando as cores da flora tropical no sol das manhãs. [...] (MACHADO, A. 1994, p. 163)

3.1.1 Floresta Tropical, 1938 (fig. 17)

Guignard faz uma leitura do olhar estrangeiro exotizante, a referência ao pintor holandês do século XVII, Albrecht Eckhout (fig. 18), com sua apresentação dos tipos hu- manos, da fauna e botânica no primeiro plano e o fundo correspondendo a uma paisagem regional brasileira, no caso a de Pernambuco. Guignard, por sua vez, apresenta uma lagoa com vitórias-régias boiando e ao fundo o panorama das montanhas do Rio de Janeiro. O céu com nuvens reluzentes em manchas horizontais de colorido diverso invade as monta- nhas numa atmosfera nevoenta e misteriosa. O cenário do primeiro plano funciona como uma cortina que se abre para as distâncias e a matéria evanescente da paisagem. Borboletas, arara, garças, orquídeas de formas e cores diversas, e folhagens num arranjo decorativo que não disfarça a sua artificialidade e revela o diálogo com a produção de imagens dos viajan- tes estrangeiros em busca da exuberância tropical. Guignard vê a si próprio como um es- trangeiro que redescobriu o Brasil da infância em 1929; ele faz o comentário bem humora-

do desse olhar deslumbrado, que muitas vezes impõe convenções, concepções científicas, e fantasias românticas. Não há ironias mas a conscientização de que as fantasias participam da elaboração do “gosto”, o exotismo estrangeiro por um lado e a busca por um padrão na- cional por outro, esta é a época em que Guignard pintava as flores trazidas em seus passeios pelo Jardim Botânico, os recortes da mata vislumbrados em seus caminhos e ao mesmo tempo elaborava seus retratos populares, exercícios do decorativo em aproximação com os gostos “populares”.