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Paisagens Imaginantes

4.1 O próximo distante: o espaço desdobrado

4.1.7 Paisagem Imaginante, 1955 (fig 75)

Nesta pintura, a operação transformadora do espaço que Guignard produz em suas paisagens imaginantes ganha coerência na redução dos efeitos sensíveis do colorido atmosférico. As montanhas se distribuem por faixas horizontais em sucessões de cadeias de

tamanho e em intervalos iguais. Não há qualquer diminuição das cadeias montanhosas no sentido de sugerir o aprofundamento espacial, elas são representadas com a mesma propor- ção. Cada faixa parece conter um horizonte e assim indicar o último limite para a visão, mas logo acima desse horizonte formado por uma cadeia de montanhas, vemos um espaço aberto onde se espalham casas e igrejas numa escala desproporcional às montanhas, e essas interposições vão se sucedendo até quase a borda superior do quadro. As relações de pro- porção e tamanho, e até a disposição dos espaços vazios, lembram os mapas medievais ilus- trados com os acidentes geográficos mais característicos de uma região, ou seus marcos arquitetônicos, representados em elevação perpendicular ao plano do solo, e as distâncias entre eles apresentada em outra escala, semelhante a da representação cartográfica.

Guignard só não reproduz uma visão de mapa primitivo porque a última faixa horizontal, no alto do quadro, representa o céu e fecha o desdobramento vertical. O sol na última linha do horizonte entra pelas vertentes da última cadeia. A pequena parcela de céu é atravessada pelos mesmos gases coloridos que invadem as faixas terrenas e as mesmas re- lações cromáticas que vemos por toda a pintura, evitando assim aquela separação nítida entre céu e terra, mantendo a sensação de tratar-se de um único plano espacial.

Não é uma visão de um objeto estático, mas de um espaço em transformação. A razão de ser desse espaço é a locomoção da visão que ele sugere, a imaginação do desloca- mento produzido nele se constitui em seu desdobramento cinemático. Guignard não expe- rimenta a vista da paisagem a partir da janela de um avião, ou de um vôo em balão, mas imagina a paisagem em sua dinâmica, em sua sucessão infinita de fatos imagéticos.

A substância dessa imaginação não é, na verdade, a paisagem terrena, mas a distância aérea, o vazio interposto entre o observador e a paisagem abaixo. A constituição de um espaço imaginário que está entre os dois pontos. Esta paisagem mineira, por mais ampla e extensa que Guignard a queira, se apresenta num único plano, o plano de fundo. Nas melhores paisagens do pintor, todo o quadro é um plano de fundo. Guignard se apro- xima de uma das conquistas da arte moderna, a suposta autonomia do plano pictórico, sem fazer a defesa dessa questão. Ao contrário, busca a constituição de uma nova ilusão espaci-

al, a ilusão do ar, desse vazio, desse espaço intermediário. Por sua vez, o que inspira essa produção de imagens é o sonho de sobrevoar, o imaginário do ar14, um devaneio de liber-

dade.

Bachelard associa as imagens do sonho aéreo com uma necessidade de liberda- de em relação aos limites concretos impostos pela vida adulta, cujas limitações reais desfa- zem-se facilmente nos devaneios que reencontram os sonhos da infância.

[...] todo elemento adotado com entusiasmo pela imaginação material prepara, pa- ra a imaginação dinâmica, uma sublimação especial, uma transcendência caracte- rística. [...] Parece que o ser voante ultrapassa a própria atmosfera em que voa; que um éter se oferece sempre para transcender o ar; que um absoluto completa a consciência de nossa liberdade. Será preciso ressaltar, com efeito, que no reino da imaginação o epíteto que mais próximo se encontra do substantivo ar é o epíteto livre? O ar natural é o ar livre. [...] com o ar o movimento supera a substância. Não há substância senão quando há movimento (BACHELARD, 1990b, p. 8-9).

4.1.8. Tarde de São João, 1959, óleo sobre madeira, 38,5 x 29 cm, coleção Alberto e Priscila Freire, Belo Horizonte (fig.76).

Nesta paisagem os balões ocupam um espaço intermediário entre o local da fes- ta, de onde são acesos e lançados, e o fundo, localizado pela paisagem de montanhas e igre- jas. Ao mesmo tempo, esses balões sugerem ascensão espacial e diferentes distâncias em profundidade. A sucessão de montanhas em planos que se elevam pelo quadro ganha um

14 Ao referirmos a imaginário do ar usamos uma nomenclatura desenvolvida por Bachelard que classifica o imaginário dos poetas por matérias fundamentais, ou por imaginação material, baseado nos quatro elementos básicos: o fogo, a terra, a água e o ar.

“Acreditamos poder falar de uma lei das quatro imaginações materiais, lei que atribui necessariamente a uma imaginação criadora um dos quatro elementos: fogo, terra, ar e água. Sem dúvida, vários elementos podem intervir para constituir uma imagem particular; existem imagens compostas; mas a vida das imagens é de uma pureza de filiações mais exigente. Desde que se oferece em série, as imagens designam uma matéria-prima, um elemento fundamental. A fisiologia da imaginação, mais ainda que sua anatomia, obedece à lei dos quatro elementos. [...] cada elemento é imaginado em seu dinamismo especial; há uma cabeça de série que determina um tipo de filiação para as imagens que a ilustram” (BACHELARD, 1990b, p.8).

Ou ainda: “(…) não estamos em erro, acreditamos, ao caracterizar os quatro elementos como os hormônios da imaginação. Eles põem em ação grupos de imagem. Ajudam a assimilação íntima do real disperso em suas formas.” (BACHELARD, 1990b, p.12).

sentido maior de verticalização através desse trânsito aéreo. A imagem não se presta à de- monstração do olhar do observador em movimento como um instantâneo ou recorte que dê conta das sensações em deslocamento. Os espaços é que se desdobram num olhar – imagi- nário – que busca sempre mais distância, fazendo com que a distância mais próxima e a mais longínqua tenham o mesmo valor e acabem por ocupar o mesmo local, que pode ser mensurado na sua resignificação dentro do espaço pictórico. O movimento parece estar totalmente ausente da pintura, mas essas projeções das diferentes distâncias num único lu- gar são resultado do devaneio do movimento e sonho de um deslocamento aéreo.

A psicanálise converte o sonho de vôo (BACHELARD, 1990b, p. 19) em sím- bolos de desejos inconscientes, dando um sentido definido a esta experiência onírica. Po- rém, interessa aqui procurarmos uma outra interpretação que leve em conta o caráter estéti-

co que resulta dessa experiência particular do pintor. O vôo, especificamente, não é temati-

zado por Guignard, talvez seja sugerido quando os balões invadem o espaço aéreo, mas nas pinturas onde os balões estão ausentes, encontramos também essa relação entre distâncias que deriva do sonho de vôo. O resultado estético não visa às impressões de vôo, mas a uma reelaboração que recupera panoramicamente este estado no ato da pintura. Não é o relato visual do sonho o que se produz com a pintura, mas um novo devanear em estado próximo ao do sonho noturno. A pintura sugere uma viagem imaginária autônoma em relação às imagens advindas dos sonhos. Neste sentido, o uso que Guignard faz do sonho é totalmente distinto dos artistas surrealistas.

As formas são instáveis, sua estrutura é maleável e resulta em uma teia de rela- ções, pois o princípio que norteia esses espaços é sua própria dinâmica de transformação. Novas formas são concebidas, distintas da realidade percebida, somando os espaços do porvir pressentidos no devaneio.