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GUSTAVO IOSCHPE E A CIRCULAÇÃO DE UM CONCEITO DE QUALIDADE NA EDUCAÇÃO

3 REPRESENTAÇÃO DO ENEM E DO CONCEITO DE QUALIDADE NA EDUCAÇÃO EM VEJA

3.5 GUSTAVO IOSCHPE E A CIRCULAÇÃO DE UM CONCEITO DE QUALIDADE NA EDUCAÇÃO

A maioria dos brasileiros ainda não se deu conta, mas estamos em guerra; é uma guerra total em pelo menos uma frente, a da educação.

Com essa simbólica frase de Gustavo Ioschpe, publicada no artigo “Uma meta para o próximo presidente: todo aluno sai da escola alfabetizado” (Edição n. 2.181, 8 set. 2010, p. 120-121), iniciamos a análise dos 39 artigos desse autor publicados em

Veja entre 2006 e 2011. Por entendermos que as lutas de representações sobre

qualidade na educação são um debate central para o estabelecimento de políticas públicas e que têm uma ligação intrínseca com as funções, objetivos e usos de avaliações externas e testes de larga escala, concordamos com a proposição do autor sobre a definição de um espaço de guerra, uma guerra de significações, entendida como força capaz de ordenar o mundo social, produzindo na prática comportamentos e condutas. Portanto, apropriamo-nos da construção de Ioschpe para recolocar que a ausência do estabelecimento legal de indicadores de qualidade deixa ainda mais liberada a força que as representações compartilhadas passam a ter na definição do que se entende por qualidade na educação.

O olhar mais cuidadoso sobre as publicações de Ioschpe, apesar de apenas quatro de seus artigos fazerem referência ao Enem, deve-se, sobretudo, ao fato de ele ser figura relativamente recente a circular no campo midiático como especialista em educação e à repercussão que isso pode ter na demarcação de novos espaços de atuação para o conjunto de prescrições das quais é porta-voz. Em especial, chamou a nossa atenção a presença de Ioschpe no jornal de maior audiência da TV aberta, o “Jornal Nacional” da rede Globo de televisão. O especial “Blitz da Educação” produziu, em 2011, uma série de cinco programas compreendendo visitas a dez

escolas em cinco municípios de diferentes regiões do Brasil, selecionadas com base na nota do Ideb. Foram visitadas sempre a melhor e a pior escola do município sorteado.

No balanço dessa série especial do Jornal Nacional, vemos a replicação do mesmo mecanismo persuasivo usado nas matérias impressas em Veja – a produção de prescrições do que pode ser feito para melhorar a qualidade a partir dos exemplos das escolas com os melhores indicadores –, destacando-se que instituições com os mesmos recursos ou até em contextos socioeconômicos desfavoráveis conseguem fazer mais e melhor quando bem geridas. Cabe ainda ressaltar que os artigos de Ioschpe em Veja têm forte repercussão na mídia social, usada por esse autor como instrumento para alargar discussões, fornecer dados complementares e dialogar diretamente com seus leitores.45

Outro aspecto que definiu a opção por analisar a totalidade dos artigos de Ioschpe foi a forte repercussão que eles têm entre os leitores de Veja, 27, dos seus 39 artigos, forma comentados por leitores (Quadro 4, p. 175). Acreditamos que as argumentações taxativas e provocadoras do autor, além da continuidade dos debates nos meios digitais, exercem forte atratividade nos leitores.

Dos 39 artigos mapeados (Quadro 2, p. 173), vinte mencionam alguma medida na educação feita a partir de testes cognitivos, com destaque para o Pisa e o Ideb; 31 citam estatísticas; sete usam elementos hierarquizadores; 26 fazem referências ao professor e dezesseis apontam algum tipo de solução para se atingir a qualidade na educação. Importa destacar que 2011 é o ano em que Ioschpe faz menos referências a elementos estatísticos, sete no total (Quadro 6, p. 179 e 180). Em contrapartida, é o ano em que mais se prescrevem soluções para a melhoria da qualidade da educação, nove apontamentos46. Acreditamos que a recorrência a números como mecanismo de validação dos seus argumentos se torna menos necessária diante da confiabilidade do público leitor e da própria percepção do autor a respeito da representatividade de seu nome como “especialista da educação”, ao afirmar-se como autoridade para prescrever soluções com vistas à conquista da qualidade na educação. Assim, se os mecanismos discursivos de Ioschpe, nos

45 Para analisar essa movimentação em outras mídias, observamos os diálogos tecidos a partir do twitter de

Ioshpe (@gioschpe), que é divulgado pelo próprio autor nos artigos de Veja.

primeiros dois anos de publicação dos artigos analisados, são caracterizados pela forte presença de indicadores numéricos e estatísticos, para persuadir o leitor da existência de mitos a serem combatidos na educação, a partir de meados de junho de 2010, o autor, sem abandonar o artifício de recorrer “aos especialistas” e à “econometria”, passa a dar mais ênfase à listagem de soluções para os problemas apontados. Em dezenove artigos, Ioschpe faz referências genéricas “a especialistas” que validariam sua argumentação. Em nove, cita o nome desses sujeitos, a maioria ligada ao campo econômico. Nos dez artigos em que as referências são genéricas, lemos expressões, tais como “A literatura empírica aponta”, “Estudos empíricos revelam”, “Estudos quatitativos”. Essas expressões são dispositivos amplamente utilizados pelo autor para revestir seus argumentos de uma empiria numérica, à qual delega a prova da irrefutabilidade de suas proposições.

No artigo “Como melhorar a educação brasileira – Parte 1” (Edição n. 2.190, 10 nov. 2010, p. 94-95), o autor faz duas importantes definições do que entende por qualidade na educação e por literatura empírica:

Antes, uma nota conceitual. Quando se fala aqui de melhorar o desempenho do aluno, o que se está procurando é o aprendizado, medido por meio de testes, como o Saeb, Prova Brasil, Pisa, TMSS e outros, do Brasil e do Exterior. A base para as recomendações que vão a seguir é a literatura empírica sobre o tema, publicada em revistas acadêmicas, em que os dados são tratados com rigor estatístico. Ou seja, não são teorias nem as opiniões e hipóteses deste colunista, mas sim fruto de medição.

Nota-se a clara associação entre a proficiência do aluno, medida por testes, e a qualidade na educação. Além disso, o autor evidencia sua confiabilidade nos dados que elenca, entre eles os índices dos testes citados, que seriam portadores de uma imparcialidade teórica e opinativa.

No artigo intitulado “Os quatro mitos da escola brasileira” (Edição n. 1.998, 7 mar. 2007, p. 96-98), o autor resume o que seria a pauta de grande parte de seus artigos. Nesse texto, Ioschpe pretende desconstruir o que seriam os quatro mitos da escola brasileira: “O professor brasileiro é mal remunerado”, “A educação só vai melhorar no dia em que os professores receberem salários mais altos”, “O Brasil investe pouco dinheiro em educação”, “A escola particular é excelente”. Para a desconstrução desses “mitos”, a estrutura argumentativa é costurada por

indicadores numéricos e estatísticos, que representariam uma realidade até então mascarada, mas facilmente vislumbrada pela “consulta aos dados”. Reproduzimos sua argumentação para desmitificar a falsa correlação entre o aumento do salário docente e a melhoria da qualidade na educação:

Da própria experiência brasileira é possível extrair conclusão semelhante. Basta analisar o que ocorreu depois da melhora no salário dos professores, proporcionada pelo antigo Fundef (o fundo para a educação que foi substituído pelo atual Fundeb), desde 1997. Nesse caso, enquanto a remuneração dos docentes melhorou, as notas dos alunos despencaram nos exames nacionais conduzidos pelo Ministério da Educação. Conclusão: ter mais dinheiro no bolso não é o fato determinante para transformar o professor num bom educador. O que mais prejudica a performance dos docentes no Brasil é um sistema que despreza talentos individuais e resultados acadêmicos e forma professores com uma mentalidade equivocada – enquanto apenas 9% consideram ser prioritário "proporcionar conhecimentos básicos" aos alunos, a maioria prefere "formar cidadãos conscientes", de acordo com uma pesquisa da Unesco”.

Essa passagem é simbólica de como o autor usa um dado para dele extrair uma conclusão e avançar em prescrições para o problema revelado. Há a representação de que o dado revela uma determinada informação, de forma simples e clara, abstendo-se das discussões que escancaram os múltiplos fatores que levam à produção desse dado e à sua interpretação.

Dados da Unesco, do Pisa e do Inep, sobretudo os referentes ao Ideb e ao Saeb, comparados com os dos países da OCDE, são, nessa ordem de importância, as principais fontes de Ioschpe. Outro importante foco de suas argumentações são estudos que medem o impacto de determinadas variáveis na qualidade da educação, o que o instrumentaliza a separar o que realmente funciona do que é, segundo o autor, discurso ideológico e corporativista. A lista de soluções de Ioschpe está em comunhão com as proposições identificadas na análise dos textos sobre o Enem, embora não raro o autor se identifique como uma espécie de desbravador do campo, o que põe em xeque percepções arraigadas. É um dispositivo característico de Ioschpe iniciar seus textos com o que seria a crença no senso comum e, em seguida, ir desconstruindo a proposição inicial com dados e exemplos, como aparece no trecho abaixo (Edição n. 2.038, 12 dez. 2007, p. 176):

O professor brasileiro é um herói. Batalha com afinco contra tudo e todos em prol de uma educação de qualidade em um país que não se importa

com o tema, ensinando em salas hiperlotadas de escolas em péssimo estado de conservação. Tem de trabalhar em dois ou três lugares, com uma carga horária exaustiva. Ganha um salário de fome, é constantemente acossado pela indisciplina e desinteresse dos alunos e não conta com o apoio dos pais, da comunidade, do governo e da sociedade em geral. Se você tem lido a imprensa brasileira nos últimos vinte anos, provavelmente é assim que você pensa. Permita-me gerar dúvidas.

Na sequência do artigo, Ioschpe vai costurando seus argumentos com os números, desvelando os erros de equívocos que possivelmente o leitor reconheceria e que seriam ali descortinados. A generalidade do termo imprensa torna difícil estabelecer os veículos aos quais se refere Ioschpe, mas acreditamos que o leitor de Veja não compartilhe do perfil do leitor desenhado na introdução do trecho citado acima.

Ao longo do período aqui analisado, reportagens e artigos de Moura Castro responsabilizam o professor e, mais particularmente, os sindicatos e o corporativismo, por problemas na educação, colocando em questão, como faz de forma insistente Ioschpe, a vinculação entre salário docente, aumento de investimentos em educação e a melhoria da qualidade do ensino.

Para conquistar o tão desejado aumento da proficiência medida pelos testes, a receita é resumida nas edições n. 2.190 (10 nov. 2010, p. 94-95) e 2.196 (22 dez. 2010, p. 88-89):

direcionar a formação de professores para a realidade prática da sala de aula; melhorar a ligação conteúdo / didática e o conteúdo;

encarar o estágio de forma séria, com supervisão e rigor; elevar a importância dos cursos de formação de professores;

abolir o viés ideológico: “que, antes de formar futuros revolucionários, nossos professores consigam ao menos formar gente que saiba ler, escrever e fazer as operações matemáticas básicas”;

tornar os cursos de formação mais exigentes, mais difíceis;

promover a certificação de professores, o que garantiria padrões mínimos de qualidade;

aliar a certificação a estágios probatórios; tornar a Provinha Brasil obrigatória;

cobrar resultados e valorizar o mérito; estabelecer um currículo nacional unificado.

Para Ioschpe, essa lista tem o objetivo pragmático de possibilitar a formação de capital humano, única forma de promover a reprodução e o desenvolvimento da estrutura econômica capitalista que, diante das novas demandas competitivas, exige um trabalhador qualificado em novas bases e valores. Para afirmar o que entende por qualidade na educação, o “militante” Gustavo Ioschpe usa como arma poderosos recursos midiáticos, que dão visibilidade às proposições das quais é porta-voz, fazendo-se ouvir e ver.

Não notamos rupturas do autor com as representações já analisadas nos itens anteriores, mas compreendemos que seu protocolo de escrita e suas estratégias de circulação tornam mais assimiláveis e amplas essas significações. O autor retoma a negação da necessidade de ampliação de recursos para promover melhorias na educação, elege gestores escolares e professores como os grandes responsáveis pelos problemas educacionais do País e define a competição entre escolas e as políticas de sanções e bonificações, atreladas aos indicadores de qualidade, como foco de combate às mazelas da educação nacional. Na defesa dessa base argumentativa, Ioschpe incita seus leitores a exercer pressões políticas e se movimenta em diversos campos, como exemplifica em sua campanha, propagandeada em Veja, para que se torne lei a exposição das notas das escolas no Ideb.

Diante desses fatores, chamamos a atenção para esse novo autor da Revista e suas estratégias de articulação, e para as possibilidades que as forças econômicas e políticas que representa venham a sair vitoriosas dessa guerra pela definição da qualidade na educação nacional.