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Uma das obras mais importantes na discussão sobre a comunidade hacker e seu posicionamento frente a outros setores da sociedade é o Manifesto Hacker, escrito pelo crítico de mídia australiano McKenzie Wark. Em uma série de aforismos, Wark divide o encadeamento de seu solilóquio em onze pilares. O primeiro deles, Manifestação, começa com a observação de que o mundo é vitima de uma dualidade, a dualidade da abstra- ção. Segundo o autor, empresas, estados, exércitos e comunidades dependem dessa dualidade, assim como suas fortunas e sorte. Portanto, esse parâmetro de dois polos é ao mesmo tempo temido e devotado por todas as classes sociais, exceto a classe hacker. McKenzie não se limita, entretanto, em classificar os hackers ape- nas como os curiosos – e estudiosos – da computação, mas também como os produtores que questionam e alteram esses sistemas, como explica a seguir:

Na arte, na ciência, na filosofia e na cultura ou em qualquer forma de produção de conhecimento onde dados podem ser compilados, onde a informação pode ser extraída e onde dessa informação são produzidas novas possibilidades para o mundo, há hackers que pirateiam o novo a partir do antigo. Apesar dos hackers criarem esses novos mundos, nós não os possuímos. O que criamos é financiado para os outros, e para os interesses dos outros, para estados e corporações que controlam os meios para fazer mundos que nós descobrimos sozinhos. Nós não possuímos o que produzimos - a produção é quem nos possui. [...] Hackers fazem parte de uma classe, mas uma classe abstrata, uma classe que precisa se hackear

em existência, se manifesta como ela própria. (WARK, 2004 p.10) 17

O segundo, Abstração, traz o conceito homônimo ao fruto e afirmação de um hack. A abstração pode ser descoberta ou produzida, material ou imaterial. Produzir ou utilizar essa abstração é o que, segundo Wark, afir- ma a possibilidade de novos mundos. A abstração expressa a virtualidade da natureza, com sua infinidade de possibilidades e relações. A informação, matéria-prima da abstração, depende de um meio físico, não existe em uma forma pura e imaterial, assim como a classe hacker em si. Com isso, os hackers precisam lidar com a classe dominante, chamada pelo autor de vetorialistas, que extraí e distribui a informação em forma de commo-

dities. O interesse da classe hacker, sob essa ótica, é a de libertar a informação de suas prisões físicas, ou seja,

libertar a abstração de suas formas de propriedade. É isso que faz dos hackers uma classe.

17. Citação original: “In art, in science, in philosophy and culture, in any production of knowledge where data can be gathered, where

information can be extracted from it, and where in that information new possibilities for the world are produced, there are hackers hacking the new out of the old. While hackers create these new worlds, we do not possess them. That which we create is mortgaged to others, and to the interests of others, to states and corporations who control the means for making worlds we alone discover. We do not own what we produce - it owns us. […] Hackers are a class, but an abstract class, a class as yet to hack itself into manifest existence as itself”.

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Em Produção, McKenzie esclarece que a produção resulta não só da matéria, mas também do sujeito produtor. Como o hack se apresenta como uma nova forma de produção, o hacker, por sua vez, trata do surgi- mento da figura de um novo produtor. Entende-se que o hack produz não só a abstração, mas também o hac- ker. É um conceito cíclico no qual o hacker produz o hack que por ele é produzido. Em uma definição dialógica segundo as ideias de Wark, toda forma de design tem sua origem no hack, o autor defende que a produção é um hack formalizado, em sua forma repetível e reproduzível, a partir de suas bases na representação. Portanto, produzir é repetir e hackear, diferenciar, ou produzir a diferença.

Assim como toda forma de produção, o hack também gera uma sobra, que poderia suprir a necessi- dade das classes mais pobres. Mas, baseado no pensamento marxista da sociedade de classes, essa sobra também criaria mais necessidades, já que como toda forma de produção, serviria para aumentar ainda mais o poder da classe dominante. Assim como o interesse como o interesse das classes produtoras, o interesse da classe hacker reside na tentativa de desprender a produção e a alteração da força da classe dominante.

Na sequência o autor se aprofunda no esmiuçar do conceito de classe. Para ele, classe conforme seu conceito, é o diferenciador de papéis baseado nas interlocuções com a propriedade. O autor faz uma crítica ao comunismo, que coloca em seus preceitos a ideia de um estado dominador de toda propriedade. Nas visões de Wark isso somente produziria uma forma alternativa de classe dominante e de certa forma uma classe ainda mais brutal. A classe dos hackers, é colocada como a produtora de abstrações, que se torna essencial para as classes dominantes, cujas fortunas dependem de informação, produto que a classe hacker domina e produz.

Em Propriedade, podemos ver que diferentemente de propriedade como a terra, o capital não é finito, uma vez que sua base é a privatização dos meios de produção, como ferramentas e maquinário. Portanto, pode ser feito e refeito, transportado ou destruído. Essa diferenciação também se reproduz no campo ima- terial, por meio da propriedade intelectual, patentes e leis de copyright. Essa característica é o que permite a existência do hacker como uma classe distinta entre as existentes até então.

Os hackers não são meramente proprietários, e lucram com informações proprietárias. Eles produzem novas informações, e como produtores, precisam ter acesso a ela, livre do domínio absoluto da forma da

mercadoria. Hacking como uma atividade experimental pura e livre deve estar livre de qualquer restrição que não seja auto-imposta. Somente de sua liberdade poderá produzir os meios para produzir um excedente de

liberdade tendo a liberdade como superávit. (WARK, 2004 p.16) 18

O conflito entre as classes vetorialista e hacker manifesta-se na característica da classe hacker em ter uma relação semelhante àquela encontrada na economia de oferta, baseado na singularidade do hack em oposição a comodificação quantificável e, portanto, lucrativa da classe vetorialista. No contexto da produção, o vetor é o meio de transporte da informação, o telefone, a internet, a televisão e o rádio não são vetores em particular, mas suas capacidades de expansão no mundo sim. Segundo o documento produzido por Wark, o posicionamento da classe hacker está em libertar o vetor da comoditização, mas não o tornar integralmente livre, o que significa disponibilizá-lo para desenvolvimento coletivo e democrático.

18. Citação original: “Hackers do not merely own, and profit by owning information. They produce new information, and as producers need

access to it free from the absolute domination of the commodity form. Hacking as a pure, free experimental activity must be free from any constraint that is not self imposed. Only out of its liberty will it produce the means of producing a surplus of liberty and liberty as a surplus”.

Educação é o tema mais polêmico do manifesto de Wark. Segundo o autor, “educação é uma forma de

escravidão que aprisiona a mente e a transforma em recurso para o poder de classes” (WARK, 2004) 19. Educa-

ção, sob a ótica do autor, não é o mesmo que conhecimento, tampouco o meio necessário para a obtenção do mesmo. Ele trata o tema como uma forma de organização do conhecimento servente às classes dominantes, produtora de recursos. Para ascender socialmente, o cidadão precisa investir parte de sua renda na educação. E mesmo trabalhando com informação, e não numa fábrica, ele continua fazendo parte da classe trabalhadora. “A educação os ensinou a dar nomes diferentes aos instrumentos de exploração e a desprezar aqueles que os classificavam de maneira diferente” (WARK, 2004 p.18)20. Para os vetorialistas, a educação é conteúdo,

portanto, pode virar mercadoria. Já os hackers desejam conhecimento, e não educação, já que a abstração produzida pelo hack tem como base conhecimento e informação na virtualidade, portanto, não se encaixam na disciplina educacional.

Em Hacking, próximo pilar da discussão, Wark afirma que o virtual é o campo de domínio dos hackers, e o real é sempre parcial, limitado e, muitas vezes, falso. Para essa classe, o real representa uma possibilidade de melhoria e expansão por meio do hack. E a relação do hack como forma de mercadoria ou propriedade é um dos principais causadores do conflito endocárdico da classe hacker:

A própria natureza do hack dá ao hacker uma crise de identidade. O hacker busca uma representação do que é ser um hacker nas identidades de outras classes. Alguns se veem como vetoralistas, negociando sobre a escassez de seus bens. Alguns se veem como trabalhadores, mas privilegiados em uma hierarquia de assalariados. A classe hacker produz-se como ela própria, mas não por si mesma. Não possui (ainda) uma consciência de sua consciência. Não tem conhecimento de sua própria virtualidade. Tem que distinguir entre seu interesse competitivo no hack e seu interesse coletivo em descobrir uma relação entre hackers que expressa um futuro aberto e

contínuo (WARK, 2004 p.24)21

No tópico Informação, Wark a classifica como o potencial do potencial, como um meio no qual objetos e sujeitos se materializam e nele moram suas virtualidades. Os hackers defendem a informação como algo que deve ser livre, pois quando são colocadas sob domínio de alguma classe específica, essa fará uso de suas capacidades para os próprios interesses e não pela sua virtualidade inerente. Informação, entretanto, não é o mesmo que comunicação, essa última vista como um elemento em excesso na sociedade. Para os hackers, a informação é a resistência ao exagero do volume de comunicação contemporânea. Comunicação é proprieda- de e requer apenas a repetição da diferença comoditizada, já a informação é a produção da diferença, assim como o hack. Sob essa ótica, não só a informação deve ser livre, mas também o conhecimento de como dela

19. Citação original: “Education is slavery, it enchains the mind and makes it a resource for class power”.

20. Citação original: “[Education] has taught them to give different names to the instruments of exploitation, and to despise those their own

class who name them differently”.

21. Citação original: “The very nature of the hack gives the hacker a crisis of identity. The hacker searches for a representation of what it

is to be a hacker in the identities of other classes. Some see themselves as vectoralists, trading on the scarcity of their property. Some see themselves as workers, but as privileged ones in a hierarchy of wage earners. The hacker class has produces itself as itself, but not for itself. It does not (yet) possess a consciousness of its consciousness. It is not aware of its own virtuality. It has to distinguish between its competitive interest in the hack, and its collective interest in discovering a relation among hackers that expresses an open and ongoing future”.

usufruir. Sozinha, a informação não é produtiva. Para se tornar um elemento ativo nessa discussão, são neces- sárias capacidades passivas, subjetivas e ativas para se tornarem produtíveis. Segundo a obra, a informação não deve ser livre por representar o mundo de forma invicta, mas sim, para mostrar a diferença do que ele é e os meios necessários para o transformá-lo no que ele pode ser, portanto, explorar sua capacidade.

Representação, por sua vez, traz a ideia de que toda representação é falsa, e se não for, não é uma represen-

tação senão o representado em si. Toda política de representação, para o autor, é a pressuposição de um estado abstrato, ideal, que garantiria a guarda dessas representações. E por não ter espaço nesse cenário representativo, a classe hacker o rejeita. Hackear é produzir diferença, conceitualmente distante de qualquer tipo de representação.

A insatisfação com as representações está se espalhando em todos os lugares. Às vezes, é uma questão de quebrar algumas vitrines, às vezes de quebrar algumas cabeças. A chamada “violência” contra o estado, que raramente equivale a mais do que lançar pedras na sua polícia, é meramente o desejo do estado expresso em sua forma masoquista. Onde alguns exigem um estado que reconheça sua representação, outros exigem um estado que os bata até o caroço. Não é uma política que escapa ao

desejo cultivado pelo aparato educacional. (WARK, 2004 p.32)22

E por fim, o autor finaliza seu manifesto com Revolta, narrando como a Primavera nas Nações mudou o modo como o mundo funciona. O cenário político ficou, de acordo com o autor, dividido em dois grupos que transcendem a noção de esquerda e direita. No primeiro deles, a política é regressiva, buscando estabelecer o cenário encontrado antes do colapso socialista. O segundo deles, avança em ritmo frenético em direção a um perigoso futuro desconhecido. E um terceiro grupo, ainda pequeno, que existe fora das alianças e acordos do mundo pós 1989, defendendo uma política sem estado político, inventando relações a partir da representação.

A política pode tornar-se expressiva apenas quando é uma política de libertação da virtualidade da informação. Ao libertar a informação de sua objetivação como mercadoria, ela liberta também a força subjetiva da afirmação. O sujeito e o objeto se encontram além de sua falta um do outro, pelo seu desejo um pelo outro. A política expressiva não busca derrubar a sociedade existente, nem reformar suas estruturas maiores, nem preservar sua estrutura de modo a manter uma coalizão de interesses existente: procura permear os estados existentes com um novo estado de existência, espalhando as sementes de uma

prática alternativa da vida cotidiana. (WARK, 2004 p.36)23

22. Citação original: “Everywhere dissatisfaction with representations is spreading. Sometimes its a matter of breaking a few shop windows,

sometimes of breaking a few heads. So-called ‘violence’ against the state, which rarely amounts to more than throwing rocks at its police, is merely the desire for the state expressed in its masochistic form. Where some call for a state that recognizes their representation, others call for a state that beats them to a pulp. Neither is a politics that escapes the desire cultivated within the subject by the educational apparatus”.

23. Citação original: “Politics can become expressive only when it is a politics of freeing the virtuality of information. In liberating information

from its objectification as a commodity, it liberates also the subjective force of statement. Subject and object meet each other outside of their mere lack of each other, by their desire merely for each other. Expressive politics does not seek to overthrow the existing society, or to reform its larger structures, or to preserve its structure so as to maintain an existing coalition of interests. It seeks to permeate existing states with a new state of existence, spreading the seeds of an alternative practice of everyday life”.

Sob a ótica de Um manifesto hacker, vemos que o agir hacker não é um devir anti-design, e sim, se apre- senta como um produtor de diferença na mecânica da produção. Essa relação passa a fazer parte da dis- cussão do fazer do design no mundo pós-industrial24, em uma abordagem sociológica que nos aproxima do

objetivo dessa investigação. Apropriando o design como atividade projetual para reprodução de artefatos em massa, o hacker não é uma classe que nega a massificação de produtos e serviços, mas sim, configura uma classe social que visa, por meio da alteridade, se apropriar dos bens não só como produto final, mas também ser o dono de suas possibilidades e potenciais capacidades, até então inertes ao herdado das características de seu projeto. Sob a ótica hacker, encaramos um produto como fruto de atividade projetual, e não só como um final de uma linha de produção e o fim do espectro do design, podemos considera-lo um artefato pronto a ser explorado, desconstruído, alterado, combinado e recriado, um artefato não como um fim, e sim, como potenciais capacidades a serem exploradas.

24. Entendemos aqui como sociedade pós-industrial aquela apresentada pelo sociólogo Daniel Bell, na qual (1) o setor econômico

vê um deslocamento de importância da produção de bens para o setor de serviços, trazendo com ele (2) o destaque da educação e produção na classe profissional e técnica em detrimento à classe operária, (3) o foco no conhecimento teórico como possível ferramenta de inovação e formulação política, (4) o uso e controle da tecnologia e (5) o envolvimento de tecnologias intelectuais nas tomadas de decisão. (BELL, 1973)

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