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Hannah Arendt: filosofia política aplicada ao debate de gênero e jornalismo

3. Pensamento feminista: recortes em torno da área de comunicação

3.5. Hannah Arendt: filosofia política aplicada ao debate de gênero e jornalismo

Hannah Arendt (1906-1975) foi uma intelectual e pensadora com atuação em diferentes campos de conhecimento, sendo também escritora, professora e jornalista. Nascida na Alemanha no início do século XX, sua nacionalidade foi tomada no ano de 1937 pelo regime nazista, o que a tornou apátrida até adquirir a cidadania norte-americana, em 1951. Suas análises estão intrinsecamente ligadas à política e aos acontecimentos históricos da sua época, principalmente às marcas sociais e ao totalitarismo pós-guerras.

Primeiramente, vale destacar sua análise sobre o discurso sistemático da Guerra do Vietnã, que ocorreu no sudoeste asiático entre 1955 e 1975. O conflito armado colocou, de um lado, a República do Vietnã (Vietnã do Sul) e os Estados Unidos, com participação da Coreia do Sul, da Austrália e da Nova Zelândia. De outro, estavam a República Democrática do Vietnã (Vietnã do Norte) e a Frente Nacional para a Libertação do Vietname (FNL). Em A mentira na

política: considerações sobre os documentos do Pentágono (1973), Arendt (1973, p.15)

descreve o autoritarismo dos EUA ao criar as chamadas mentiras de princípios, negando ou manipulando fatos para justificar seu posicionamento bélico.

A veracidade nunca esteve entre as virtudes políticas, e mentiras sempre foram encaradas como instrumentos justificáveis nestes assuntos. (...) por um lado, pela natureza da ação, e por outro, pela natureza de nossa capacidade de negar em pensamento e palavra qualquer que seja o caso.

Arendt (1973, p.16) argumenta que a capacidade de negação está ligada à imaginação e que mentiras são mais plausíveis à razão do que a realidade. O mentiroso sabe que é possível enganar com mentiras de princípios. “Os fatos necessitam de testemunho para serem lembrados e de testemunhas de confiança para se estabelecerem, para que possam encontrar um abrigo seguro no domínio dos assuntos humanos”.

Em suas reflexões (ARENDT, 1973), é possível encontrar duas categorias de profissionais envolvidos na arte de mentir. Na primeira, estão os “encarregados das relações públicas”, para quem a manipulação psicológica e humana teria se tornado uma mercadoria no campo da opinião pública. Na segunda categoria, aparecem os “resolvedores de problemas”, profissionais atraídos da universidade e de centros de assessoramento para o governo.

O segundo grupo refere-se a homens de confiança inegavelmente inteligentes que trabalham todo seu potencial de conhecimento em favor da máquina ideológica de determinado governo. Maurício Tragtenberg, que atuou como professor no Departamento de Política da PUC-SP, na FGV e na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), descreveu algo semelhante em A delinquência acadêmica: o poder sem saber e o saber sem poder (1979, p.15- 23). Ao estabelecer uma analogia entre o intelectual e a universidade, ele diz que há uma relação entre a dominação e o saber.

Arendt menciona que estes profissionais e intelectuais são tão bem preparados que se torna praticamente impossível duvidar da pertinência de suas opiniões. Assim, a filósofa argumenta como o governo norte-americano adotou o convencimento como estratégia durante a Guerra do Vietnã (ARENDT, 1973, p.23):

A partir de 1965, a ideia de uma nítida vitória recuou para um segundo plano e o objetivo tornou-se convencer o inimigo de que ele não poderia vencer. E já que o inimigo permaneceu não convencido, apareceu um novo objetivo: evitar uma derrota humilhante.

Para a autora, os impactos causados por tal apropriação de verdades absolutas em detrimento da realidade levaram os Estados Unidos a errar ao decidir questões militares tendo por base uma perspectiva política sustentada pela ação de relações públicas. Para ela, as expectativas em relação às eleições presidenciais e a possibilidade de Lyndon Johnson ser o primeiro presidente americano a perder uma guerra pesaram significativamente para a construção de tais argumentos.

Os documentos do Pentágono13 revelaram que não havia relação entre os fatos e a decisão da guerra; entre a comunidade da inteligência e os serviços civis militares. Arendt (1973, p.36) diagnosticou a utilização da burocracia a serviço desta “desfatualização”: “Não foram simplesmente fatos ignorados e manipulados, mas sim o menosprezo dos fatos históricos, políticos e geográficos”.

Para a filósofa, os objetivos da guerra, para o governo dos EUA, eram psicológicos e pertencentes ao que ela se refere como “mito da onipotência americana”. A autora elaborou duas explicações para descrever os erros do conflito. Primeiro, trazendo à tona análises sobre a construção de fatos, Arendt (1973) discute a imaginação como ferramenta estratégica no serviço burocrático de sistemas políticos, ocasionando nos seus leitores uma identificação atemporal. Exatamente por isso, os documentos do Pentágono mostravam-se tão similares a tantos outros discursos.

Ademais, conforme Arendt (1973), ao opor-se à construção das diretrizes estratégicas do governo e empenhados em desmascarar as chamadas “mentiras de princípios e ideológicas”, os periódicos da época apresentavam, em alguma medida, certa pluralidade de opiniões. Neste caso, as estratégias de comunicação foram utilizadas para romper com a criação dos fatos governamentais, na tentativa de criar oposição. Assim, o pensamento da autora confirma que a história, a política e a comunicação caminham juntas, ainda que nem sempre estejam livres da manipulação, da descontextualização proposital e da irracionalidade fundamentada.

13Em 1971, Daniel Ellsberg, analista militar do Pentágono, entregou à revista New York os documentos do Pentágono (7 mil páginas, em 47 volumes) com revelações secretas sobre a Guerra do Vietnã. Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/2016/05/17/os-documentos-do-pentagono-e-as-licoes-de-quem-os-revelou-ao- mundo/. Acesso em: 08 ago. 2016.

A cada dia, surgem novas estratégias de comunicação na tentativa de criar oposição. Porém, mais importante do que a técnica utilizada é o que existe por trás de cada publicação transgressora e progressista. Seja em artigos, ensaios ou reportagens veiculados em rádios, revistas, jornais ou sites, muitas mulheres desafiaram seu contexto histórico na tentativa de explicitar sua luta. Utilizando o jornalismo em busca de transformações sociais, muitas delas sabem que a luta pela igualdade de gênero na área de comunicação vem sendo árdua, tanto em âmbito nacional como internacional.

Em 1963, Arendt publicou Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do

mal (1999). A obra continha seus cinco artigos publicados na revista americana New York e

relata o julgamento de um dos arquitetos do nazismo, exatamente quando o mundo vivenciava a chamada “desnazificação” e, consequentemente, punição dos abusos e dos crimes cometidos na Segunda Guerra Mundial.

Adolf Eichmann foi capturado em Buenos Aires e levado a Jerusalém para um midiático julgamento. Porém, na interpretação da autora, o processo não teria trazido à tona um homem de perfil psicopata e sanguinário, conforme todos esperavam, mas um funcionário, um burocrata do sistema.

Assim, o conceito “banalidade do mal”, termo famoso da escritora, nasce da fusão do comprometimento de seu jornalismo político com a ressignificação filosófica sobre a interpretação das atrocidades humanas.

Passados mais de cinquenta anos da publicação deste texto de Arendt, o campo de atuação do jornalismo político e ativista encontra-se, em distintas camadas sociais e com novas roupagens, no jornalismo alternativo. O que existe em comum entre o pensamento de Arendt e os textos publicados no jornalismo alternativo feminino é a apropriação, por parte das mulheres, dos instrumentos de comunicação como ferramentas de mudança política, com palavras utilizadas para apontar e diagnosticar problemas étnicos, sociais ou de gênero.

Arendt confirma que as grandes oportunidades femininas não estão contextualizadas apenas na liberdade social e sexual, mas estão também matizadas na liberdade de pensar e na possibilidade de reproduzir oral e textualmente este pensamento. Dentro do arcabouço da comunicação social, o jornalismo alternativo trouxe possibilidades de construção de um Estado democrático, resgatando a cidadania. Exatamente por isso, este modelo de comunicação torna- se, na medida do possível, um obstáculo à distorção dos fatos.

3.6. Angela Davis, Judith Butler e Berenice Bento: o sujeito mulher na