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hemerus) e Epicarmo (Epicharmus) são, sem menor dúvida, poemas didáticos por ele compostos O primeiro, uma espé-

No documento A Literatura Latina - Zélia Cardoso (páginas 115-121)

cie de romance geográfico, divulgava o pensamento cosmoló- gico de Evêmero, filósofo grego que viveu no século III a.C.;

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o segundo era uma exposição da cosmogonia pitagórica feita pelo cômico siciliano Epicarmo.

Perderam-se, infelizmente, esses textos, assim como tam- bém se perdeu o

Poema sobre os costumes (Carmen de moribus)

de Catão, uma coletânea de provérbios em verso, compostos nos antigos moldes poéticos.

É pouco, portanto, o que se conhece sobre essas primeiras manifestações da poesia didática. Esta só vai desabrochar em sua plenitude com o poema

Sobre a natureza

, de Lucrécio, e as

Geórgicas

, de Virgílio, no século I a.C.

A obra de Lucrécio

Não se têm muitas informações sobre a vida de Lucrécio

(Titus Lucretius Carus -

99?-55? a.C.). Os dados de que dis- pomos são discutíveis e seu nome não é associado a aconteci- mentos históricos, políticos ou culturais. A única obra que compôs, o poema

Sobre a natureza (De rerum n atu ra,)

foi pu- blicada após a sua morte, por Cícero, que, embora combates- se violentamente o epicurismo, reconheceu na obra de Lucré- cio o talento do poeta e a arte da composição.

Sobre a natureza

é um texto de fôlego. Nele Lucrécio pro- curou reproduzir, em versos hexâmetros, toda a doutrina de Epicuro, filósofo grego que vivera em Atenas entre os séculos IV e III a.C.

Trata-se, como se sabe, de uma doutrina bastante comple- xa. Epicuro quis demonstrar que a felicidade do homem resi- de no prazer e que este consiste na ausência de dor para o cor- po (

aponia)

e de perturbações para a alma (

ataraxia).

Só se chega, entretanto, a essa paz interior quando o espírito se li-

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berta de seus medos maiores: medo dos deuses, da morte, das punições infernais. Para libertar o homem desses medos, Epi- curo construiu sua doutrina. Mostrou que os deuses existem, mas não interferem na natureza e, por conseguinte, na vida do homem; que a morte é um fenômeno natural, inerente à matéria; que a pós-vida é ilusória, já que o espírito é material e mortal. Para chegar a isso, montou complexa teoria física, baseada nas ideias atomísticas de Demócrito.

Lucrécio expõe toda essa doutrina nos cantos de seu poema.

O epicurismo já era conhecido em Roma, desde o século anterior; Amafínio, no final do século II a.C., escrevera um tratado filosófico, onde expusera alguns dos pontos que carac- terizavam o sistema de Epicuro. O trabalho, entretanto, não teve grande repercussão e a doutrina só encontrou seu grande porta-voz em Roma quando Lucrécio, exaltando Epicuro a ponto de considerá-lo um deus, consagrou sua vida à compo- sição de

Sobre a natureza

.

Dedicado a Mêmio, poeta e erudito romano, o poema se compõe de seis livros ou cantos.

No primeiro livro, que se inicia por uma discutida invo- cação a Vênus, seguida de um elogio a Epicuro - aquele que libertou a humanidade do temor dos deuses -, Lucrécio dis- corre sobre a matéria e o vácuo. Retomando ideias antes ex- ploradas por Demócrito, defende o princípio de que nada se cria e nada se destrói: tudo se reintegra na massa material que forma o universo, constituído este de partículas mínimas e in- divisíveis, os átomos, partículas que, agrupando-se em com- binações múltiplas, compõem os corpos e os seres.

No segundo livro, iniciado por um elogio à filosofia, Lu- crécio demonstra que tudo nasce do movimento e das conibi-

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nações dos átomos, cuja propriedade especial, o

clinamen

, ex- plica tudo. Mostrando como se processa a origem da vida, Lucrécio nega a interferência dos deuses no mundo dos ho- mens.

O terceiro livro - quiçá o mais importante do conjunto - é um estudo sobre a natureza da alma. Por meio de argumen- tos encadeados, Lucrécio procura provar que a alma é mate- rial e mortal, nascendo e morrendo com o corpo. A sobrevida do espírito numa região especial, o mundo dos mortos, é mera ilusão humana, nada podendo existir após a morte. Como o primeiro livro, o terceiro também se inicia por um elogio a Epicuro.

No quarto livro, Lucrécio fala das sensações que nascem de

simulacra

emitidos pelo corpo. Os sentidos não enganam, embora o homem possa equivocar-se na interpretação daqui- lo que percebe por meio de seus órgãos sensoriais.

No quinto livro, o poeta, mais uma vez, faz um elogio a Epicuro. Discorre, em seguida, sobre a formação do universo, desenvolvendo teorias cosmológicas, e fala do surgimento do homem e das civilizações.

O último livro se abre com um elogio a Atenas, a pátria de Epicuro. Lucrécio disserta, em seguida, sobre os fenôme- nos meteorológicos e as catástrofes naturais (tremores de ter- ra, epidemias). A última parte do poema é a descrição da pes- te que assolou Atenas no século V a.C.

A importância do poema de Lucrécio pode ser avaliada de vários ângulos diferentes. De um lado, o poema romano pre- servou os ensinamentos de Epicuro. Da vasta obra escrita pelo filósofo grego restaram apenas algumas cartas e máximas esparsas. Se não tivéssemos a obra de Lucrécio, pouco sabería- mos, hoje, sobre os princípios defendidos pelo epicurismo.

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Embora não possamos conhecer exatamente o grau da inter- pretação pessoal de Lucrécio, é de supor-se que o poeta tenha pautado seu pensamento pelo que vinha daquele que ele pró- prio considerou seu grande mestre. Suas palavras o afirmam com veemência:

A ti que foste o primeiro a conseguir tirar de tão densas trevas uma luz tão brilhante, aclarando os bens da vida, eu te sigo, ó gló- ria do povo grego. Quero colocar meus pés na marca de teus pas- sos, não por ambicionar ser teu rival, mas por amor, pois que de- sejo vivamente imitar-te. Poderia, acaso, a andorinha medir-se com o cisne, ou o cabrito de pernas trêmulas igualar, na corrida, o vigor do cavalo forte? Ó pai, tu descobriste a natureza; como pai, tu nos ministras ensinamentos. Como as abelhas se nutrem nos bosques floridos, nós colhemos de teus livros, ó glorioso, todas as tuas pa- lavras de ouro. Sim, de ouro, as mais merecedoras, em todos os tempos, de viver eternamente.

(Luc. R.

N.

III, 1-13)

Lucrécio parece ter realizado a intenção expressa. O con- fronto do que restou da obra de Epicuro com texto de

Sobre a

natureza

mostra que a aproximação é grande.

De outro lado, o poema de Lucrécio tem um valor intrín- seco como obra filosófico-literária. Embora alguns o conside- rem inacabado, houve, evidentemente, um plano de compo- sição que o poeta concretizou. As ideias são expostas com cla- reza e lógica. A física se equilibra com a moral. É certo que algumas das informações oferecidas podem hoje ser contesta- das: afinal, mais de dois milênios de avanço científico e tec- nológico se colocaram entre a redação da obra e nossos dias. Há, entretanto, aspectos “modernos” na teoria apresentada: a noção de indestrutibilidade da matéria, a concepção de áto- mo, a impressão de que existem outros mundos além da terra,

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a explicação do surgimento das espécies por meio do evolu- cionismo.

Lucrécio revela grande preocupação com a verdade cientí- fica e, ao mesmo tempo, com a clareza do pensamento. Pre- tendeu, além do mais, escrever não apenas um tratado filosó- fico mas também um poema, uma obra de arte. Como poeta, cuidou da elegância, da originalidade e da beleza do estilo. Ponteou a obra com recursos retóricos: invocações, hinos, quadros descritivos. Embora a língua que emprega apresente alguns elementos arcaicos, e a versificação não seja, de todo, regular, a imaginação do poeta se manifesta amiúde no uso de belas imagens e metáforas.

Se sua sensibilidade se extravasou em muitos passos, em outros, como, por exemplo, na descrição da peste de Atenas, ele demonstrou sua grande capacidade de escrever com dra- maticidade e realismo:

Vinda dos confins do Egito, onde se havia originado, depois de uma longa viagem pelo ar, acima das terras inundadas, a peste se abateu, finalmente, sobre o povo de todo o Pandião. A partir desse momento, os homens se entregavam, em batalhões, à doen- ça e à morte. Ficavam, inicialmente, com a cabeça ardendo em fe- bre e os olhos vermelhos e brilhantes, com um fulgor estranho. No interior do corpo a garganta negra exsudava sangue, fechando-

-se o canal da voz, obstruído por úlceras. A língua, intérprete do es- pírito, sangrava, debilitada pela doença, pesada para mover-se e ás- pera ao tato. Depois, pela garganta, o mal atingia o peito e acorria, com toda a sua intensidade, ao coração enfraquecido: desmorona- vam-se, então, todas as barreiras da vida. O sopro, expirado pela boca, exalava um odor horrível, semelhante ao que exalam os ca- dáveres apodrecidos, abandonados no chão; depois o espírito per- dia todas as suas forças e o corpo desfalecia, já no limiar da morte.

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Grande foi a influência exercida por Lucrécio. Muitos são os tributários de sua arte. Entre os antigos podemos lembrar Virgílio, Ovídio e Estácio.

As Geórgicas de Virgílio

Após a publicação de

Sobre a natureza

, em 56 a.C. prova- velmente, a poesia didática latina só vai reencontrar um gran- de momento muitos anos mais tarde, ao serem publicadas as

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