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Sátiras (Saturarum liber) de Pérsio.

No documento A Literatura Latina - Zélia Cardoso (páginas 108-115)

Para compreender a

Apocolocintose

e tentar chegar às ra- zões que teriam determinado a elaboração do texto, é impor- tante conhecer alguns pormenores da vida de Sêneca. Figura de projeção no mundo literário e político, Sêneca fora banido de Roma por Cláudio, em 41, por prováveis intrigas palacia- nas. Após permanecer oito anos exilado na miserável ilha de Córsega, foi redimido - graças à intervenção de Agripina, que se casara com Cláudio - e pôde retornar a Roma. Tornou-se então preceptor do jovem Nero, filho de Agripina, adotado pelo imperador, passando a desfrutar de invejável posição. Após a morte de Cláudio, em circunstâncias estranhas e dis- cutíveis, provavelmente envenenado pela própria esposa, Sêne- ca escreveu um elogio fúnebre que foi lido por Nero, durante os funerais. Mas logo depois, uma vez que nunca perdoara a Cláudio os males que este lhe causara ao bani-lo da cidade, Sê- neca, num autêntico ato de vingança tardia, compôs a

Apoco-

locintose

deixando que seus sentimentos ali se extravasassem.

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Durante a realização dos funerais dos imperadores ilus- tres, costume que se iniciou com Júlio César, ocorria a cerimô- nia da apoteose do morto, ou seja, sua deificação, sua trans- formação em deus.

A

Apocolocintose-

“aboborificação”, literalmente - parodia o que poderia ser a narração de uma apoteose: é o relato de como o imperador, após a morte, foi recebido no Inferno pe- los deuses. Sátira menipeia - com partes em verso alternadas com outras em prosa -, engraçada, espirituosa e imaginativa, a

Apocolocintose

caricatura o morto e prenuncia uma nova idade de ouro: a época que se inicia com o governo de Nero.

Esse aspecto do gênio criativo e satírico de Sêneca é obser- vado também em alguns trechos das obras filosóficas, nas quais o escritor relembra anedotas e fatos pitorescos, oferecendo-nos flagrantes curiosos da vida romana.

Na

Apocolocintose

, porém, a capacidade para a sátira é de- monstrada em toda a sua extensão. Sêneca constrói a figura de um Cláudio abobalhado, surdo, ridículo e maldoso, que as- siste ao próprio enterro e custa a perceber que está morto:

Era o mais belo funeral de todos os séculos; organizado nos mínimos detalhes: percebia-se que era o enterro de um deus. Era muito grande o número dos flautistas, dos corneteiros, dos tocado- res, em geral. Era tão grande o barulho que até Cláudio podia ou- vir. Todos estavam alegres, em festa. O povo romano passeava, sentindo-se livre.

(Sen. Apoc. XII, 1-2)

Ao receber a punição - jogar dados por toda a eternidade, usando para lançá-los um copo sem fundo -, o imperador se apressa em cumpri-la:

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E Cláudio começa, no mesmo momento: corre atrás dos da- dos, que fogem sempre dele, sem nada conseguir.

(Sen. Apoc. XIV, 5)

A jocosidade e a zombaria se apresentam em todo o texto, sobretudo nas paródias de Homero e de suas próprias tragé- dias, quando Sêneca coloca uma linguagem comicamente so- lene na boca de verdadeiros rufiões.

Após Sêneca, a sátira latina vai encontrar dignos represen- tantes em Pérsio e Juvenal. A obra de Petrônio, considerada por alguns como sátira menipeia, dado o seu caráter bastante particular, será estudada em outro capítulo, quando o roman- ce latino for analisado. Sobre a obra dos outros dois poetas, tecemos, a seguir, algumas considerações.

As Sátiras de Pérsio

Contemporâneo e amigo de Sêneca, embora muito mais jovem do que o poeta-filósofo, Pérsio

(Aules Persius Flaccus -

34-62) deixou para a posteridade uma pequena coletânea de seis sátiras, publicadas após a morte prematura do poeta.

Duas influências dominantes marcam a obra de Pérsio: a de Lucílio, o criador da sátira latina, cuja obra o escritor teria lido na juventude, e a de Cornuto, que, com suas lições, ini- ciara o jovem no conhecimento do estoicismo.

São variados os assuntos explorados por Pérsio nas

Sátiras.

A primeira versa sobre uma questão literária. É um diálogo em que o eu-narrador discute com um poeta anônimo, de- fensor da poesia moderna, e combate as tendências helenizan- tes. As demais se ocupam de problemas de moral e religião: o

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sentido da oração (II), a necessidade de estudar para vencer a preguiça (III), o autoconhecimento e a presunção dos grandes filósofos (IV), a liberdade obtida pelo conhecimento da filo- sofia (V), a riqueza e a avareza (IV).

O trecho abaixo, extraído de um poema, oferece uma amos- tra do trabalho de Pérsio:

Conta o dia de hoje, Macrino, entre os marcados com a pedrinha [branca que te acrescentará muitos anos, a decorrerem ainda.

Derrama vinho em homenagem a teu Gênio protetor. Tu não [súplicas, numa prece interesseira, nada que não possas merecer dos deuses, sem precisar enganá-los. Uma boa parte dos homens importantes sacrifica às divindades,

[tirando incenso da naveta. Não está ao alcance de todo mundo abolir dos templos os

[cochichos humildes e os sussurros e viver de votos expressos às claras: “Juízo, glória, fidelidade”. Os votos são ditos em alta voz, para que o hóspede ouça. Mas no íntimo de si mesmo, murmura-se, entre os dentes: “Ah! se ele morrer terá funerais condignos!”

(Pers. II, 1-10)

As sátiras filosóficas têm a forma de carta ou de discurso. As ideias expressas pelo poeta se baseiam em conhecimentos teóricos sobre a doutrina estoica e não em convicções profun- das ou experiências vividas. A juventude do escritor - o que teria, provavelmente, determinado essa característica - tam- bém pode ser responsabilizada por certa irregularidade no es- tilo: brilhante em alguns momentos; descambando para a obs- curidade, o hermetismo e o mau gosto em outros.

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A obra de Juvenal

Vivendo entre o fim do século I e o início do século II d.C., Juvenal (

Decimus Iunius Iuuenalis

—60?-130?) escreveu dezes- seis sátiras

(Satyrae),

nas quais, com realismo e alguma violên- cia, censurou os vícios da época e discorreu sobre questões de moral. As sátiras se agrupam em cinco livros, embora, para efei- to de indicação, costumem ser numeradas em seqüência.

O livro I apresenta cinco sátiras, cujo tom é áspero e agres- sivo, próprio de quem pretende acusar para corrigir. Nelas Ju- venal explorou os seguintes assuntos: a vocação do poeta satí- rico (1), a hipocrisia (2), os problemas da vida citadina (3), a prodigalidade e a tolice dos nobres (4), o parasitismo (5). São poemas que demonstram grande originalidade. O livro II contém apenas uma sátira (6), na qual o poeta se detém em considerações sobre as mulheres; o livro III apresenta três poe- mas que focalizam, respectivamente, a miséria sofrida pelos homens de letras (7), as características da verdadeira nobreza (8) e o problema da devassidão (9). O tom das sátiras se mo- difica nos livros IV e V, aproximando-se do de Pérsio. No li- vro IV Juvenal fala da natureza dos votos (10), do luxo exces- sivo e dos prazeres da mesa (11), e do retorno de um ente que- rido (12); no livro V aborda assuntos relacionados com o re- morso (13), o valor do exemplo na educação (14), as supersti- ções egípcias (15) e as vantagens da carreira militar (16). A última sátira não está completa.

Variadas quanto ao assunto, as sátiras de Juvenal também o são quanto à extensão: a mais curta tem 130 versos e a mais longa, 660. O estilo, embora monótono em alguns trechos, é brilhante, rico e carregado de retoricismo. São abundantes os recursos ornamentais empregados para a obtenção de efeitos estéticos:

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Quando um eunuco efeminado se casa, quando Mévia

trespassa um javali toscano e maneja as setas com o seio descoberto, quando um único homem desafia todos os patrícios

[com suas riquezas

- um homem que me raspava ruidosamente a barba, na juventude - , quando uma pessoa proveniente da plebe do Nilo,

um escravo de Canopo, um Crispino qualquer,

arrepanhando ao ombro o manto tírio, ostenta um anel de ouro em seus dedos suados e não consegue suportar o peso

de uma jóia maior, é difícil não escrever sátiras.

(Iuuen. 1, 22-30)

Embora realista, Juvenal não se atém apenas a sua pró- pria época: pinta a realidade do passado, censurando, às vezes com bastante indignação, os vícios e defeitos de um momen- to pretérito.

Consideradas como desprovidas de atualidade, as sátiras de Juvenal, contudo, focalizam questões relativamente pere- nes, pondo-as em destaque:

Em todas as terras que se entendem do Gades ao Ganges são poucos os que, dissipando as névoas da ignorância, sabem distinguir os verdadeiros bens daqueles que lhes são opostos. O que é que tememos ou desejamos racionalmente? Qual a coisa que, iniciando-se com bons augúrios, não é motivo de

[arrependimento?

(Iuuen. 10, 1-6)

O interesse atual pela obra do poeta decorre, em parte, de sua capacidade para expressar o universal.

A POESIA DIDÁTICA

Se considerarmos a poesia como a arte que se vale do ver- so para expressar a beleza, poderia parecer até certo ponto pa- radoxal colocá-la a serviço do conhecimento. A linguagem verbal, entretanto, é, por excelência, o veículo da informação. Nos gêneros poéticos tradicionais - épica, drama, lírica - o poeta informa, por meio do verso. A qualidade dessa infor- mação, todavia, é discutível. Como a ficcionalidade desempe- nha importante papel na composição literária, torna-se difícil distinguir a informação verdadeira da meramente fictícia. Tal fato, porém, não se reveste de maior importância: a literatura, dada a sua própria condição, tem compromissos com a

sua

verdade mas não com a veracidade.

Assim sendo, poderia parecer estranha a utilização da poe- sia para transmitir o saber. Em Roma, contudo - como, de resto, também havia ocorrido na Grécia —, foi freqüente essa prática. O verso, como lembramos anteriormente, tem uma rigidez que lhe assegura uma quase total imutabilidade. Para preservar-se, portanto, uma noção qualquer, nada melhor do que subordiná-la a um esquema métrico-rítmico fixo.

A POESIA LATINA | 103

O romano sempre demonstrou ter espírito prático e prag- mático. Ao aprender a manejar o verso, foi levado, evidente- mente, a descobrir-lhe uma função utilitária. E nasceu dessa forma a poesia didática, que coexistiu com os demais gêneros poéticos em todas as fases da literatura latina.

Na época primitiva surgiram, sob forma de oráculos (

ua

-

ticinia

), predições (

sortes)

e provérbios (

sententiae)

, as primei- ras manifestações, ainda embrionárias, da poesia didática. Al- guns desses versos se mantiveram até a época clássica e foram reproduzidos por historiadores.

Ápio Cláudio Cego (

Appius Claudius Caecus

), o primeiro escritor latino de que se tem notícia, conhecida figura políti- ca do final do século IV a.C., compôs, ao lado de discursos e tratados, uma coletânea de sentenças morais em versos, das quais apenas três chegaram à posteridade:

[...] manter a alma equilibrada para que não possam surgir o engano, a maldade, a violência;

Quando vês um amigo, te esqueces do sofrimento; Cada um é fabricante de sua própria sorte.

Embora não sejam suficientes para que se aquilatem as qualidades do poeta, mostram nitidamente o caráter didático de que se revestiam.

Cerca de um século depois é a vez de Ênio apresentar ao público suas obras de caráter didático. Se não se pode falar com segurança do tom filosófico de suas sátiras,

Evêmero (Eu

-

hemerus)

e

Epicarmo (Epicharmus)

são, sem menor dúvida,

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