• Nenhum resultado encontrado

toria ), Os remédios do amor (Remedia amoris) e Produtos de be lezapara o rosto da mulher (De medicaminefacieifeminae).

No documento A Literatura Latina - Zélia Cardoso (páginas 93-98)

A arte de amar

é um conjunto de três livros escritos em dísticos elegíacos, nos quais o poeta, não sem certo perigo, dado o espírito moralizante que reinava, constrói uma verda- deira “teoria da sedução”.

No primeiro livro ele mostra quais as principais ocasiões em que os homens podem aproximar-se do objeto de seu amor - em passeios, em edifícios públicos, no fórum, no tea- tro, no circo, em comemorações de triunfos, em banquetes — e dá conselhos sobre como agir para agradar à mulher. No se- gundo refere-se aos meios utilizados para prender a mulher amada: amabilidades, complacência, perseverança, presentes, devotamento, manifestações de ciúme. No terceiro discorre so- bre as artimanhas da mulher para tornar-se amada: artifícios, penteados, roupas.

O estilo de Ovídio nessa obra é ligeiramente rebuscado, graças aos recursos retóricos de que ele se vale. O extrato abai- xo oferece uma amostra desse estilo:

8 2 | A LITERATURA LATINA

Tu foste o primeiro, Rômulo, a transformar os jogos em [cuidados de amor quando a sabina roubada trouxe prazer aos homens

[sem esposas.

As cortinas, nessa época, ainda não pendiam dos marmóreos teatros e os palcos não eram tingidos com o líquido açafrão; galhos arrancados dos bosques palatinos

eram lá colocados simplesmente: o cenário era sem arte. O povo se assentava em degraus de relva

e coroas de folhas enfeitavam as cabeleiras rudes.

(Ovid. A. A. I, 100-108)

A arte de amar

é um valioso documento para o conheci- mento de muitos aspectos da vida social da época de Augusto, afigurando-se, também, como curioso estudo da psicologia feminina.

Um pouco depois da publicação desse texto, e talvez para responder a críticas formuladas em relação ao poema, Ovídio oferece aos leitores romanos

Os remédios do amor

. O poema é perpassado de um leve tom irônico e retrata, mais uma vez, a frivolidade e a inconsequência de uma faixa expressiva da so- ciedade de Roma.

Quanto aos

Produtos de beleza

, temos apenas um frag- mento. A aridez do assunto faz com que a obra tenha um cunho mais didático do que propriamente lírico.

Após esses trabalhos, a produção poética de Ovídio toma novo rumo. Imbuído do mesmo ideal alexandrino que o ha- via feito compor as

Heroides

, o poeta retoma o tema mitológi- co - que explorara também na tragédia

Medeia

- e se dispõe a escrever uma obra de grande envergadura: as

Metamorfoses

(Metamorphoseon libri

).

Inspirando-se em poetas alexandrinos, tais como Nican- dro de Colofão, Antígono de Caristos, Calímaco e Partênio

A POESIA LATINA | 83

de Niceia, Ovídio compõe, em versos hexâmetros, um longo poema, em quinze livros, encadeando cerca de duzentas e cin- qüenta lendas etiológicas que mostram a origem dos mais di- versos seres (mares, astros, fontes, plantas, animais) como pro- dutos de metamorfoses.

É difícil classificar-se esse poema de Ovídio em relação a uma espécie ou gênero literário. Não é uma epopeia, apesar do tom épico, dos versos hexâmetros e do emprego sistemático da narração. Não se caracteriza também como poema didático, pois que, mesmo que quiséssemos considerá-lo como uma ten- tativa de explicar o universo pela teoria neopitagórica que ad- mite a reencarnação da alma, iríamos esbarrar, sem dúvida, na falta de qualquer fundamentação científica, no superficialismo e no tratamento irônico e brincalhão dado a algumas lendas.

Preferimos, portanto, considerá-lo como um texto bas- tante próximo dos poemas líricos: uma sucessão de quadros co- loridos e belos, onde não falta o movimento, a caracterização pessoal e a expressão da sentimentalidade.

O talento descritivo de Ovídio salta aos olhos em qualquer momento. A descrição do palácio do Sol, por exemplo, inseri- da na metamorfose de Faetonte, mostra a preocupação com os detalhes e a capacidade de compor uma imagem de grande plasticidade, capaz de competir com a pintura da época:

O palácio do Sol se elevava sobre altas colunas,

faiscante pelo brilho do ouro e do cobre que imitava o fogo; o marfim resplandecente cobria o cimo de seu teto

e os dois batentes da porta cintilavam com a luz da prata. A arte superava os próprios materiais. Mulciber ali esculpira a imagem dos mares que cercam as terras interiores, o globo terrestre e o céu que se sobrepõe ao mundo.

84 | A LITERATURA LATINA

Por outro lado, as personagens das historietas são traba- lhadas psicologicamente, o que lhes confere força vital. As nin- fas por vezes têm traços que lembram as donzelas romanas; e os deuses, em alguns momentos, se assemelham aos jovens que freqüentam a vida mundana da cidade. Nada mais gracioso, por exemplo, do que a cena em que Apolo encontra no bos- que a bela Dafne:

Ele observa seus cabelos naturais, caindo-lhe pelos ombros e pensa: como seria se eles fossem penteados com capricho? Observa os olhos brilhantes, semelhantes a astros, observa a boca

[pequenina que não é suficiente apenas ver; admira-lhe os dedos, as mãos, os punhos e os braços, descobertos em sua maior parte, e julga que o que se esconde deve ser melhor ainda.

(Ovid. Met. I, 497-502)

A moça se assusta com a visível sensualidade do deus. E corre morro acima, buscando refúgio:

O vento desnudava-lhe o corpo,

o sopro, vindo em sentido contrário, agitava-lhe as vestes e a brisa suave impelia seus cabelos, jogando-os para trás. (Ovid. Met. I, 507-510)

O sentimento se faz presente a cada passo. A dor e a pai- xão - agentes muitas vezes determinantes das metamorfoses - levam à destruição do ser e só não provocam o aniquilamento total porque há a possibilidade de uma outra vida, em que a matéria se preserva, embora modificada. A metamorfose da ninfa Eco, que se transforma em pedra por não poder de- monstrar ao belo Narciso a extensão de seu amor, caracteriza a exacerbação sentimental que pode provocar a morte:

A POESIA LATINA | 85

Desprezada, ela se esconde nas florestas e protege entre as folhagens o rosto envergonhado; vive, então, desde esse dia, nas grutas solitárias. O amor, porém, subsiste, e cresce com a dor da repulsa,

o sofrimento e a vigília extenuam seu pobre corpo, a magreza seca-lhe a pele e a doce umidade da carne evapora-se no ar. Sobram-lhe a voz e os ossos.

A voz permanece. Os ossos assumem a forma das pedras. Ela se oculta, então. Ninguém a vê pelos montes

mas todos podem ouvi-la: a voz é o que vive dela.

(Ovid. Met. III, 393-401)

A beleza e a delicadeza dos quadros mitológicos de Oví- dio, revelando o brilho de uma imaginação exuberante, atra- vessaram os séculos. O pitoresco do estilo e a correção do rit- mo poético compensam o compreensível artificialismo com que são encadeadas algumas das lendas: o material a ser elabo- rado era, com efeito, vasto demais; mesmo levando-se em con- sideração o virtuosismo e o talento do poeta, percebe-se que foi uma tarefa imensa tentar coordenar, aproximando-as e in- terligando-as, lendas que envolvem metamorfoses, iniciando- -se com o mito do caos para terminar com a metamorfose de Júlio César.

Na extensa galeria, salientam-se as lendas da criação do mundo, das “quatro idades”, da guerra dos gigantes, do dilú- vio, do repovoamento do mundo, bem como as que se refe- rem às figuras de Faetonte, Cadmo, Prosérpina, Aracne, Nío- be, Ícaro, Orfeu, Cicno e Hécuba.

Ao mesmo tempo que compunha as

Metamorfoses

, Oví- dio se ocupava também de outro poema de grande enverga- dura e de cunho didático ao qual nos referiremos mais adiante: os

Fastos

. Em 8 d.C., entretanto, antes que o poeta desse os últimos retoques nas

Metamorfoses

e concluísse os

Fastos

, um

86 | A LITERATURA LATINA

fato até hoje obscuro o fez enveredar por novo rumo poético: Augusto o condena ao exílio na distante e selvagem cidade de Tomos, no Ponto Euxino.

Mesmo considerando-se que o conhecimento da vida de um escritor é irrelevante para a compreensão de sua obra, no caso especial de Ovídio o exílio explica a radical reviravolta operada em sua poesia, no que diz respeito à temática.

Distante da pátria, inconformado, amargurado, Ovídio ex- travasa o sofrimento nas melancólicas elegias que compõem os

No documento A Literatura Latina - Zélia Cardoso (páginas 93-98)