• Nenhum resultado encontrado

A história oferece, quase sempre, episódios que se prestam à fantasia dos escritores. Muitas vezes surge das multidões um indivíduo qualquer e se arvora em herói. A crendice popular imediatamente o cerca de prestígio e lhe empresta brilhantes frases que jamais pronunciou, heróicos feitos que jamais praticou. Nossa história está cheia de parolices de heróis. Durante a guerra de Canudos houve um episódio fantasiado pela imaginação popular que por um triz não fez de um refinado poltrão um herói de Homero. Referimo- nos ao caso do cabo Roque.

A expedição Moreira César esfacelou-se ante a astúcia e a valentia dos jagunços. Um soldado de pé ligeiro e consciência leviana chegou à cidade de S. Salvador na Bahia. Foi o primeiro que se pôs na capital baiana. Um jornalista entrevistou-o, pedindo-lhe sua impressão. E o “heróico” fujão deu na língua da seguinte forma

“Saiba Vossa Senhoria que o maior feito da campanha foi o de um cabo. A expedição, morto o Coronel, retrocedia desordenadamente, carregando consigo o cadáver do chefe. De repente, como legiões de diabos, surgem de todos os lados os caboclos do Antonio Conselheiro. Então o pessoal não conheceu mais chefes, nem meio chefes. Desandou no pé, deixando mochilas e armamentos para correr mais depressa. Entretanto, dois homens ficaram firmes no seu lugar. Eu e o cabo Roque. Junto de nós estava o cadáver do comandante. Quando menos esperava, senti uma cócega. Era uma bala da jagunçada. Atirei-me então para uma banda, escondendo- me numa moita. E de lá pude apreciar o cabo Roque. Homem valente! Era um tigre. Quando não tinha mais balas, fez da Mauser um porrete e com ele matava os caboclos. Afinal, exausto, sem mais uma gota de sangue, o cabo Roque, como um jequitibá abatido pelo machado, tombou ao solo. E num último estremeção, agarrou-se ao corpo do Comandante. E eu, então, que não tinha mais nada que fazer ali, me escapei como pude”.

O jornalista baiano bordou o relato do soldado com uma coluna de flores de retórica e os jornais do Rio de Janeiro e do resto do Brasil elevaram à culminância da glória o heróico cabo Roque, ordenança do Coronel Moreira César. A nação inteira palpitou de orgulho por possuir semelhante filho.

A mocidade vibrou. As câmaras municipais do país cogitaram logo de dar o nome do cabo Roque às suas belas vias públicas. E um jornal da Bahia assim se exprimiu:

“Sim, baianos, esse heróico cabo Roque penetrou, sobranceiro e glorioso, num umbrais da História. O futuro historiador de nossa pátria quando o divisar, através desta campanha, baixará a cabeça, pensativo e perplexo, e consigo mesmo dirá: “ó Scevolas e Bayardos dos fastos humanos, curvai- vos ante esse novo herói que vos ultrapassou em coragem, abnegação e bravura!”

Em seguida a essa tirada patética, o jornalista, que por sinal era um poeta, pedia que se desse a uma rua de sua terra o nome de Cabo Roque e que se abrisse uma subscrição pública para se levantar uma estátua ao heróico ordenança do Coronel Moreira César. A subscrição foi feita e a rua foi batizada...

Em São Paulo, um ilustre jornalista, num brilhante e patriótico impulso intelectual, fez um formoso soneto, elevando aos cornos da lua o cabo herói. A Câmara, a Academia e o povo da terra de Amador Bueno emparelharam

aos maiores nomes nacionais o do humilde ordenança de Moreira César. E o assunto obrigatório de todas as palestras, no Brasil inteiro, era o feito glorioso do abnegado cabo Roque. Eis senão quando surge na capital da Bahia, lampeiro e incólume, desapercebido do que se passava, o prosaico cabo Roque, de quem a imaginação popular, instigada pelos oradores e jornalistas, fizera um grande herói, que suplantara os Scevolas e os Bayardos. E o homenzinho tinha sido um dos que primeiro emprestaram a canela do veado. Imaginem que formidável herói não seria o cabo Roque se se lembrasse de não aparecer mais com seu nome verdadeiro! Com certeza, a mocidade já lhe teria erigido uma estátua na praça pública e os historiadores patrícios da atualidade já lhe teriam consagrado o nome glorioso nas páginas de seus livros. E assim se faz a História...

Na História da França há um caso mais ou menos parecido com o do cabo Roque: é a célebre resposta que o General Cambrone deu aos ingleses.

- Renda-se, General! Bradou o comandante inglês.

- A guarda morre, mas não se rende! Respondeu o General Cambrone. - Mais uma vez, general, renda-se! Repetiu o inglês.

- Merda, retrucou o francês 3

Esse episódio fez época na França e no mundo, a ponto de, quando se quer dar uma resposta pouco cheirosa e de nenhuma educação, diz-se que se responde com a resposta de Cambrone, e todos entendem.

O próprio Victor Hugo consagrou esse feito nas páginas dos Miseráveis, quando descreveu a batalha de Waterloo.

Pierre Larousse, entretanto, provou, com o próprio depoimento do General Cambrone, que tal resposta era filha genuína da imaginação popular. Mas, mesmo assim, a lenda continuou até agora e continuará per “omnia secula”... A imaginação popular não se contentou em matar heroicamente o cabo Roque. Fê-lo Também responder a um chefe jagunço que o interpelara:

- Entrega-te, vergonha do Governo! - Vá tomar banho, seu berda-merda...

Essa frase fez época, recontada por um ex-soldado de Moreira César, que jurava ser ela autêntica, por certo desconhecendo o aparecimento, na Bahia, do afamado cabo Roque. E garantia que um seu companheiro vira o cabo Roque, depois de matar 30 jagunços, estender-se de borco para nunca mais se levantar.

dando foros de heróis a uma dúzia de felizardos, repimpados nos poleiros da nossa história civil e militar ?

___