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3. As origens da filosofia positiva em Nietzsche

3.1 As primeiras referências (A década de 1870)

3.1.3. Ascentuado heroismo

3.1.3.1 Heroismus em Nascimento da tragédia

Em O nascimento da trágédia (GT/NT § 15) se inicia o que poderia ser chamado de uma verdadeira genealogia do neologismo Heroismus em Nietzsche. Este conceito, que ao longo da obra se constitui em verdadeiro tema de sua filosofia é problematizado, primeiramente, desde a contraposição entre o otimismo teórico, representado por Sócrates, e o pessimismo prático dos atenienses (NIETZSCHE, 2001, p.91).

Para Nietzsche (2001, p.92), Sócrates representa “uma forma de existência antes dele inaudita, o tipo do homem teórico” (theoretischen

Menschen) que marca a “fé na escrutabilidade da natureza das coisas e que

atribui ao saber e ao conhecimento, a força de uma medicina universal” (ibid.,

14 Comte escreve em 1830 o primeiro tomo intutlado ‘Les Préliminaires généraux et la philosophie

mathématique’; em 1835 escreve o segundo, ‘La Philosophie astronomique et la philosophie de la physique’; em 1838, escreve o terceiro, ‘La Philosophie chimique et la philosophie biologique;

um ano depois em 1839, produz o quarto tomo ‘La Philosophie sociale et les conclusions

générales’; em 1841, realiza o quinto livro intitulado ‘La Partie historique de la philosophie sociale’

e em 1842, escreve o ultimo e sexto tomo ‘Le Complément de la philosophie sociale, et les

p.94), a qual percebe no erro o mal em si mesmo. Penetrar nessas questões, ou seja, separar da aparência e do erro, o verdadeiro conhecimento, pareceu ao homem socrático como a mais nobre e autêntica ocupação humana; aquele mecânismo produtor de conceitos, juizos e deduções foi considerado, desde Sócrates, como a atividade suprema e o admirável dom da natureza, superior a todas as outras aptidões (ibid., p. 95). Antes de Sócrates, Nietzsche sugere que Atenas desprendera suas forças principais não em favor do conhecer, mas em fins práticos, em “objetivos egoistas dos indivíduos e dos povos”, em uma realidade na qual “as lutas gerais de aniquilamento e contínuas migrações de povos”, enfraqueceram o prazer e o instinto de viver; o que somado ao costume do suicídio gerara “um pessimismo prático que poderia ter engendrado até uma horrenda ética do genocídio por compaixão”. Para Nietzsche (ibid., p.93), portanto, uma profunda representação ilusória veio ao mundo pela primeira vez na figura de Sócrates – “aquela inabalável fé de que o pensar, pelo fio condutor da causalidade, atinge até os abismos mais profundos do ser e que o pensar está em condições, não apenas de conhecê-lo, mas inclusive de corrigí-lo”. De acordo com Nietzsche (ibid., p.94), depois de Sócrates, estabelecera-se a universalidade da avidez do saber; e assim,

uma rede de pensamentos é estendida pela primeira vez sobre o conjunto do globo terráqueo, com vista mesmo ao estabelecimento de leis para todo o sistema solar e que somado à consciência assombrosamente alta da pirâmide do saber hodierno, não pode deixar de enxergar em Sócrates um ponto de inflexão e um vértice da história universal.

Nesse sentido, para Nietzsche, não apenas a história do conhecimento hodierno tem um sentido pirâmidal, como o é na abstração positivista, como Sócrates aparece como um antidoto contra o pessimismo, dado que seu otimismo do conhecimento confere um deleite infinito com o existente protegendo o conhecedor da ética prática daquele, ou seja,

quem experimentou em si próprio o prazer do conhecimento socrático e percebe como este procura abarcar, em círculos cada vez mais largos, o mundo inteiro dos fenômenos, não sentirá daí por diante nenhum aguilhão capaz de incita-lo à existência com maior ímpeto do que o desejo de completar essa conquista e de tecer a rede com firmeza impenetrável (ibid., p.95).

Em Nietzsche, Sócrates aparece então como o mestre de uma forma totalmente nova da “serenojovialidade grega” uma forma na qual a “felicidade de existir” procura descarregar-se em ações que se dirijam, sobretudo, à consolidação das influências educativas e maiêuticas sobre os jovens nobres e com o fito de produzir o gênio (Erzeugung des Genius). É nesse sentido que Nietzsche (idem) coloca que

inclusive os atos morais mais sublimes, as emoções da compaixão, do sacrifício, do heroismo e aquela tranquilidade d’alma tão dificil de alcançar, que o grego apolineo chamava de Sofrosyne, foram derivados, por Sócrates e por seus sequazes simpatizantes, da dialética do saber e até hoje consequentemente são qualificados como ensináveis.

É, portanto a partir de um otimismo para com o conhecimento, gerado por influência do espírito da dialética socrática, que Nietzsche apresenta a moral heróica como a via da formação do gênio (das Genie), noção que irá de certa forma se coadunar na próxima década, como por exemplo, em Nachlass/FP 1882, 1 [19] com o necessário processo constituidor da livre-espiritualidade (Freigeister), processo este fundado a partir da “história abreviada de muitas gerações” (Nachlass/FP 1882, 1 [24]) tendo em vista os “efeitos do pensamento sobre o futuro do mundo” (idem). Nietzsche (2001, p. 95) prossegue e afirma nesse sentido, que no limite do conhecimento positivo, ou seja, “quando a lógica morde o próprio rabo, surge o conhecimento trágico que para ser suportado, precisa da arte como meio de proteção e remédio” - seja como religião seja como ciência. Uma vez que a ciência, “esporeada por sua vigorosa ilusão naufrága no otimismo oculto; na essência da lógica, vê-se o otimismo transmutar-se em resignação trágica”.

O que Nietzsche, por fim, se pergunta é se esta “transmutação”, do heróico para o trágico, levará ainda a disposições sempre novas do gênio assim como, se “a rede da arte estendida sobre a existência, quer sob o nome de religião ou de ciência, há de ser tecida, [de modo] cada vez mais firme e delicado, ou estara destinada a rasgar-se em farrapos?” (ibid, p. 96) Tendo em vista os desdobramentos posteriores de sua obra e apesar das transições nomenclaturais, nos parece ainda que não podemos desdobrar tal fundamentação nesta oportunidade mas que ao menos o primeiro questionamento parece poder ser respondido positivamente, ou seja, Nietzsche

parece promover uma espécie de extensão desta sensibilidade estética do gênio até seus ultimos escritos. De todo modo, para que se compreendam em maiores detalhes os elementos heróicos do encômio de Nietzsche à Comte, especialmente as referências a sua capacidade ascética e a disciplina espiritual no campo do conhecimento cientifico é preciso dar sequência ao desenvolvimento da análise da presença do heroismo em Nietzsche nos escritos posteriores ao livro tratado neste subcapítulo.