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Quanto a mim, em tudo eu ouço ‘vozes’ e relações dialógicas entre elas.

(Bakhtin)

Assumimos, nesta pesquisa, embasados nos trabalhos desenvolvidos por Perelman (2004; 2005), Mosca (2004) e Koch (2004) que a argumentatividade está inscrita na própria língua. Não será diferente nossa posição quanto ao dialogismo e à polifonia, apoiados nos estudos de Bakhtin (2003; 2004) e de Authier-Revuz (1990). Para o autor de Estética da Criação Verbal, tanto o dialogismo quanto a polifonia fazem parte das interações verbais como condição constitutiva do sentido.

A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder, concordar, etc. Nesse diálogo o homem participa inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o corpo, os atos. Aplica-se totalmente na palavra, e essa palavra entra no tecido dialógico da vida humana, no simpósio universal (BAKHTIN, 2003, p. 348)

Brandão (2002, p. 51) afirma que Bakhtin elabora sua teoria da polifonia, baseado no pressuposto de que o ser humano é inconcebível fora das relações que o ligam ao outro. É pelo fenômeno social da interação verbal, realizada por meio de enunciados e enunciações que se toma consciência de si mesmo, através dos outros. “Eu tomo consciência de mim e me torno eu mesmo unicamente me revelando para o outro, através do outro e com o auxílio do outro” (BAKHTIN, 2003, p. 341).

Bakhtin (2003) considera que tudo o que diz respeito ao homem, a começar pelo seu nome, chega do mundo exterior à sua consciência, pela boca dos outros. É pelas palavras que se recebe do outro, que se forma a imagem de si mesmo. A palavra, para o autor, é plurivalente e o dialogismo é uma condição constitutiva do

sentido, como já afirmamos. “Nenhuma palavra é ‘neutra’, mas inevitavelmente ‘carregada’, ‘ocupada’, ‘habitada’, ‘atravessada’ pelos discursos nos quais ‘viveu sua existência socialmente sustentada’ ” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 27).

Para o autor russo, o dialogismo tem uma dupla orientação: a primeira voltada para os outros discursos como processos constitutivos do próprio discurso; a segunda voltada para o outro da interlocução, o destinatário. Ressaltamos que é nesse primeiro aspecto que se constitui, segundo Authier-Revuz (1990, p. 26), “[...] uma teoria da dialogização interna do discurso”, ou seja, na fala de cada um, outras vozes também falam: “as palavras são, sempre e inevitavelmente, ‘as palavras dos outros’”.

Bakhtin (2003) afirma que não pode haver enunciados isolados. Eles sempre pressupõem enunciados que os antecedem e os sucedem, nenhum enunciado é o primeiro nem o último, mas apenas um elo na cadeia. Dessa forma, os outros discursos, “[...] fios dialógicos vivos [...]” constitutivos de todo discurso, tecem-se “[...] polifonicamente, num jogo de várias vozes cruzadas, complementares, concorrentes, contraditórias” (BRANDÃO, 2002, p. 53). Bakhtin assevera que não existe a primeira nem a última palavra e que não há limite para o contexto dialógico. Na relação criadora com a linguagem, não há palavra sem voz, “em cada palavra há vozes às vezes infinitamente distantes, anônimas, quase impessoais [...] quase imperceptíveis, e vozes próximas, que soam concomitantemente” (BAKHTIN, 2003, p. 330).

Somente o Adão mítico, abordando com sua primeira fala um mundo ainda não posto em questão, estaria em condições de ser ele próprio o produtor de um discurso isento do já dito na fala do outro (BAKHTIN, M. “Questions de litterature et d’esthétique” Moscou, 1975. Trad. Fr. Esthétique et théorie du roman, Gallimard, Paris, 1978 apud AUTHIER-REVUZ, 1990, p.27).

Sendo assim, todo discurso é heterogêneo, é o produto de interdiscursos assim como todo sujeito que o produz. Authier-Revuz (1990) chama a essa característica do discurso de heterogeneidade constitutiva. Nessa perspectiva, o conceito de subjetividade não pode estar centrado num “eu” absoluto, mas num sujeito “[...] partícula de um corpo histórico-social no qual interage com outros discursos de que se apossa ou diante dos quais se posiciona (ou é posicionado) para construir sua fala” (BRANDÃO, 2002, p. 54).

Em Heterogeneidades Enunciativas, Authier-Revuz (1990) faz uma articulação entre o conceito de “dialogismo”31 do círculo de Bakhtin e a releitura de

Freud, feita por Lacan, sobre o aspecto psicanalítico de um sujeito dividido e de uma fala heterogênea, fruto da descoberta do inconsciente pelo sujeito que “[...] não é mais senhor de sua morada [...]” (Ibid., p. 29). A partir desses conceitos, apresenta um estudo sobre a heterogeneidade própria do discurso a qual divide em: mostrada e constitutiva.

A heterogeneidade constitutiva, citada anteriormente, é própria de todo discurso, pois o sujeito é deslocado “[...] em um lugar múltiplo [...]”, fundamentalmente heterônimo, “[...] em que a exterioridade está no interior do sujeito”; constitutivamente, no sujeito e no seu discurso está o outro (Ibid., p. 29)

Sempre sob as palavras, “outras palavras” são ditas: é a estrutura material da língua que permite que, na linearidade de uma cadeia, se faça escutar a polifonia não intencional de todo discurso, através da qual a análise pode tentar recuperar os indícios da “pontuação do inconsciente” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 28).

31 A autora esclarece que o círculo de Bakhtin não tem preocupação central com o diálogo face a face, mas com aquele que se constitui por meio de uma reflexão multiforme, semiótica e literária, uma teoria da dialogização interna do discurso (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 26).

Já a heterogeneidade mostrada inscreve o outro na seqüência do discurso. Authier descreve algumas formas de heterogeneidade que acusam essa presença. São elas:

a) Explícitas: discurso relatado – discurso direto, discurso indireto e conotação autonímica: aspas, itálico, glosa; comentário [inscrição da palavra do outro sem quebra da estrutura sintática];

b) Implícitas: discurso indireto livre, ironia antífrase, alusão, imitação, reminiscência [sem fronteira lingüística nítida entre a voz do locutor e a do outro].

Para ela, essas marcas, essa zona de contato entre exterior e interior do discurso são profundamente reveladoras. As formas marcadas, escolhidas para evidenciar explicitamente essas fronteiras, são, ao mesmo tempo, um sintoma e uma defesa, por dois motivos: em primeiro lugar, para perceber de que outro é preciso se defender, a que outros é preciso recorrer para se constituir; e, em segundo lugar, pelo tipo de relação que aí se joga com o outro:

[...] um discurso teórico, por exemplo, para ultrapassar a tecedura dos discursos pré-existentes na qual ele é tomado e na qual ele se faz, da marcação de posição de afrontamento polêmico, de uma “luta pela vida” quando o que se joga na zona de contato não é a ordem da discussão [...] mas o direito à existência para um dos dois apenas (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 31).

Há uma negociação entre as duas formas de heterogeneidade. O sujeito, impossibilitado de fugir da heterogeneidade constitutiva de todo discurso, ao explicitar a presença do outro, através das marcas da heterogeneidade mostrada, expressaria, na verdade, seu desejo de dominância. Movido pela ilusão do centro, por um processo de denegação, localiza o outro e delimita seu lugar. Essas marcas

confirmam um “eu” que se coloca como sujeito de seu discurso; por esse ato individual de apropriação que introduz aquele que fala em sua fala, dá forma ao sujeito enunciador e corpo ao discurso (Ibid., p. 33).

Nesse sentido, para Bakhtin (2003, p. 380), “a palavra deve transformar-se em minha-alheia“. As palavras do outro, assimiladas, renovam-se criativamente em novos contextos, tudo que é dito é um “já-dito”, como afirma Brandão (2002, p.67).

Considerando os aspectos polifônicos e dialógicos, constitutivos do sentido do discurso, analisaremos, em nosso corpus, esse embate de vozes sociais que são reveladoras do conhecimento de mundo do aluno, adquirido por meio de suas relações sociais e da apropriação de informações, seja em contato com adultos à sua volta, seja em atividades propostas pelas oficinas, sobre a questão polêmica tratada em seu texto. Verificaremos também a coerção dessas e de outras vozes [possivelmente do professor e/ ou de outros adultos] sobre o discurso dos alunos- produtores dos artigos de opinião semifinalistas. Cabe lembrar que a análise da utilização dessas vozes sociais com função argumentativa é fundamental, não só pelo fato de que a argumentação está inscrita na própria língua, mas também porque compõe um dos critérios de avaliação do concurso.

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