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Hipóteses de mitigação: redução equitativa e concorrência de culpas

3.1 O PRINCÍPIO DA REPARAÇÃO INTEGRAL E SUA APLICAÇÃO À RESPONSABILIDADE CIVIL POR

3.1.1 Hipóteses de mitigação: redução equitativa e concorrência de culpas

Apesar da preponderância do princípio como regente do dever reparatório, o Código Civil dele se afasta em hipótese excepcional, trazida pelo parágrafo único do artigo 94441, a preconizar a redução equitativa da indenização nos casos de desproporção manifesta entre o dano causado e a gravidade da culpa do devedor. Busca-se assim, segundo Cavalieri (2012, p. 128), evitar que uma conduta praticada com culpa leve, mas resultado gravíssimo, como um atropelamento que resulta em tetraplegia – o exemplo é do autor – seja sancionada com maior intensidade do que uma conduta dolosa sem grandes repercussões, como uma tentativa de homicídio que não causa lesão grave.

A influência dada ao grau de culpa nesse particular constituiu uma inovação no Direito brasileiro, desconhecida ao tempo do Código Beviláqua, para o qual era irrelevante (COELHO, 2012, p. 802). A regra tradicional, herdada da Lei Aquiliana, pontifica que o causador deverá arcar com o dano mesmo em situações de culpa levíssima (GONÇALVES, 2012b, p. 397), diretriz transmitida à nossa época na forma do brocardo “in Lex Aquilia et levissima culpa

venit” (ALPA, 2006, p. 58). Sem embargo, parcela da doutrina, que prevaleceu na codificação

atual, vê injustiça no seguimento estrito dessa fórmula, e nem tanto por uma lógica de proporcionalidade da punição, como a retirada acima de Cavalieri. Silvio Rodrigues, a propósito, expressa que os danos graves podem conduzir à ruína econômica do devedor e, se esse agiu com culpa mínima, tudo consistirá apenas em transferir a desgraça de uma pessoa para a outra (GONÇALVES, 2012b, p. 397). De modo similar, Fábio Ulhoa Coelho (2012, p. 803) anota que a justificativa da solução por equidade está em que, quanto menor a culpa, mais a causa se aproxima do caso fortuito.

Sob outro ângulo, a lógica exposta é criticada por Aguiar Dias, que coloca sobre o artigo a pecha de sentimentalista, ao se esquecer de que o montante a ser pago se destina à reparação do prejuízo sofrido pela vítima, que, do contrário, o terá de suportar sem culpa

41 Art. 944, parágrafo único. “Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz

(GONÇALVES, 2012b, p. 398-399). Efetivamente, a norma suscita críticas doutrinárias, e Carlos Roberto Gonçalves (2012b, p. 399), ainda que sem se posicionar a respeito, ventila a possibilidade de seu questionamento em face da Constituição, cujo artigo 5º, incisos V42 e X43, estabelece direito à reparação irrestrita, insubordinada a reduções do gênero.

Outra suposta exceção ao princípio da reparação integral é apontada no artigo 94544

do código civilista, pelo qual a reparação devida deve ser minorada quando o lesado tiver concorrido culposamente para o evento danoso, de conformidade com a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano. Nesse sentido, Fábio Ulhoa Coelho (2012, p. 806) elabora que os sistemas jurídicos conhecem duas formas de lidar com a culpa da vítima no âmbito da reponsabilidade civil: considerando-a excludente de responsabilidade – como se verifica em certos estados norte-americanos que trabalham com o conceito de contributory negligence – ou fator de redução da indenização – posição adotada por ainda outros estados que se fiam na

comparative negligence. O sistema brasileiro, para o autor, seria representativo desse último

modelo, tendo em vista que a responsabilidade não deixa de se constituir ante a negligência, imprudência ou imperícia da vítima: o que ocorre, apenas, é que sua extensão é restringida (COELHO, 2012, p. 807).

Continuando por essa trilha, Coelho (2012, p. 807) expressa que, apesar do foco posto sobre o elemento subjetivo da conduta, a regra de que se trata possui plena aplicabilidade aos casos de responsabilidade objetiva, principalmente porque não há qualquer ressalva legal que a desautorize. Atenta, ademais, que, enquanto a redução equitativa pelo grau de culpa do ofensor se apresenta como faculdade do magistrado, aqui está-se diante de um critério de aplicação obrigatória, haja vista a redação impositiva utilizada pelo legislador (COELHO, 2012, p. 810). Ao justificar a incidência do parâmetro, outrossim, o autor defende a necessidade de evitar que o indivíduo se ponha em situações de risco apenas para auferir a indenização integral, bem como julga que, mesmo em casos nos quais não há intenção, a conduta culposa da vítima é reprovada pelo ordenamento, que repudia tratar da mesma forma o lesado que se portou corretamente e aquele que contribuiu para o seu prejuízo (COELHO, 2012, p. 808).

42 Art. 5º, V. “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e

aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; (...)”.

43 Art. 5º, X. “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e

aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; (...)”.

44 Art. 945. “Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-

Nada obstante os argumentos utilizados, a interpretação predominante é de que o artigo, em verdade, não trouxe um caso de redução equitativa, já que, apesar da terminologia impropriamente utilizada, a hipótese diz mais com a concorrência de causas do que de culpas (GONÇALVES, 2012b, p. 400). É a lição de Aguiar Dias, que coloca a questão em termos de nexo de causalidade, mediante o qual a responsabilidade é repartida de acordo com a participação de cada agente na produção do dano, não se descartando, inclusive, que chegue a eliminar completamente o dever reparatório do pretenso ofensor (GONÇALVES, 2012b, p. 400). Assim, de fato, não se haveria de duvidar da aplicação da regra aos casos de responsabilidade objetiva - uma vez que a culpa está removida da análise - e tampouco da imperatividade de seu reconhecimento judicial, sob pena de se responsabilizar quem não deu causa ao prejuízo.

Sob um olhar mais aprofundado, portanto, revela-se que a aplicação do supracitado artigo 945 não desvia a responsabilidade civil do objetivo maior da reparação integral dos danos sofridos. Logo, resta no Código Civil uma única hipótese de mitigação, ligada à já referida gravidade da culpa do devedor, ferramenta não obrigatória colocada à disposição do julgador que, justamente por excepcionar um dos princípios mais basilares do sistema reparatório, deve ser utilizada com parcimônia (CAVALIERI, 2012, p. 129). Foi essa, aliás, a posição consolidada pelo Conselho da Justiça Federal já em sua primeira Jornada de Direito Civil, ao ano de 2002, resultando no Enunciado de número 4645.

Interessante notar, a propósito do enunciado, que essa primeira versão sua estabeleceu, ao final, a inaplicabilidade do fator de redução aos casos de responsabilidade objetiva, sob a fundamentação de que não comportam discussão sobre a culpa do agente, que fica obrigado mesmo em sua ausência. Sem embargo, por ocasião da IV Jornada, em 2007, seu texto foi alterado pelo Enunciado n. 38046, de maneira a suprimir tal restrição. A justificativa para tanto foi justamente a de que o regime objetivo não excluiria a análise do elemento subjetivo em casos de culpa concorrente da vítima – o que se exemplificou com alusão à excludente de responsabilidade por culpa exclusiva do consumidor.

Nesse particular, houve, em nossa opinião, má leitura da hipótese de redução equitativa em debate, que não trata do papel da vítima para a emergência do dano, e sim da reprovabilidade

45 Enunciado n. 46. “A possibilidade de redução do montante da indenização em face do grau de culpa do agente,

estabelecida no parágrafo único do art. 944 do novo Código Civil, deve ser interpretada restritivamente, por representar uma exceção ao princípio da reparação integral do dano, não se aplicando às hipóteses de responsabilidade objetiva”.

46 Enunciado n. 380. “Atribui-se nova redação ao Enunciado n. 46 da I Jornada de Direito Civil, pela supressão da

da conduta do único causador. A não aplicação da regra do artigo 944, parágrafo único, do Código Civil ao regime de responsabilidade objetiva não obsta a análise da concorrência de agentes, mormente porque a questão parece se centrar, de fato, na causalidade, elemento necessário também naquela seara.