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Partindo do pressuposto de que o Português Brasileiro (PB) como um todo apresenta uma realidade linguística heterogênea, por abrigar várias comunidades de fala; bipolarizada, apresentando dois binômios: português culto brasileiro (PCB) e português popular brasileiro (PPB) e plural, com normas linguísticas diferentes, tantas quantas o número das comunidades de fala, reconhece-se que o processo de formação histórico-social das variedades de línguas do PB foi distinto no decorrer do tempo e do espaço (houve vários cenários).

Nessa investigação, o foco será a discussão das hipóteses de formação do português popular brasileiro (PPB), centrado especialmente na realidade do interior da Bahia. De acordo com a literatura, há, atualmente, duas hipóteses: da deriva secular e da transmissão linguística irregular. Pela primeira hipótese, “a língua se move ao longo do tempo num curso que lhe é próprio” (SAPIR, 1949/1921 apud NARO; SCHERRE, 2007, p.26), desse modo as mudanças já estariam prefiguradas no sistema linguístico do português, e a tendência à simplificação, observada no PB, já existiria desde o indo-europeu. Pela segunda hipótese, há um “continuum de níveis diferenciados de socialização/nativização de uma L2 adquirida de forma mais ou menos imperfeita, em contextos sócio-históricos específicos” (LUCCHESI, 2009, p. 109), tendo como pólos extremos um crioulo radical e variedades de línguas. É por esta hipótese que se pretende explicar o fato linguístico em análise nesta dissertação.

O interesse pela influência do contato entre línguas na formatação do português popular sempre instigou pesquisadores, a exemplo de Adolfo Coelho (1880), Renato Mendonça (1933), Jacques Raimundo (1933), Mello (1971[1946]), Serafim da Silva Neto (1963), Câmara Jr. (1975), Silvio Elia (1979), os quais tiveram seus trabalhos relacionados às interferências das línguas africanas na formação do PB, ainda que alguns acreditem que os africanos e seus descendentes apenas aceleraram as mudanças que caracterizam o PB.

Ainda no século XX, estudos fundamentados em evidências empíricas de cunho sociolinguístico permitiram confirmar e/ou refutar hipóteses sobre a constituição do português popular brasileiro. Inicialmente, na década de oitenta, a atenção voltou-se para os estudos crioulistas, tendo como principal expoente Gregory Guy; na década subsequente, Antony Naro e seguidores entendem que a deriva secular seria a explicação para a feição diferenciada do português popular do Brasil. Também na década de noventa, Dante Lucchesi argumenta

processo conceituado pelo autor como transmissão linguística irregular.

Guy (2005, p. 15), a partir de observações dos contextos de escravidão dos países como Haiti, Jamaica, entre outros, estabelece, por analogia, que o Brasil possui características claras de um processo anterior de crioulização. A explicação deve-se tanto à “história social e econômica nos períodos colonial e imperial no País”, quanto à existência, no português popular, “de vários traços e tendências que o separam de outras variedades de língua”.

É exatamente por essa confluência de fatos históricos e linguísticos que o autor afirma:

Foi justamente no uso da língua portuguesa no Brasil em situações de muito contato lingüístico, provavelmente com uma diversidade imensa de variantes, que surgiu essa questão da crioulização no PPB. (GUY, 2005, p.16).

[...] A evidência sócio-histórica indica a entrada e saída de falantes de crioulos e as condições suficientes para crioulização, e a evidência interna do PPB indica vários traços mais de acordo com a história de crioulização do que com qualquer outra explicação. (GUY, 2005, p.33)

Atualmente, as marcas crioulizantes deixadas no PPB não são tão perceptíveis, isso pode ser atribuído, segundo o autor, há duas possibilidades: a descrioulização e a reconsideração da transição abrupta e o acesso limitado à língua-alvo que não ocorreu de forma extrema. Por essa ideia da descrioulização, através dos séculos de contato com um número razoavelmente alto de falantes nativos de português, o dialeto popular foi adquirindo características da língua alvo e se descrioulizando. Contudo, essa hipótese, nos moldes definidos por Guy, foi rechaçada por Tarallo (1996, p.50), para quem “os dois dialetos [PB e PE] encontram-se, na verdade, a tal distância sintática que seria muito incomum se seus caminhos tornassem a se cruzar”. O autor refuta a possibilidade de reversão, a partir da análise de dois fatos sintáticos, a relativização e a pronominalização.

De acordo com a literatura, sabe-se que existem condições específicas para o surgimento de uma língua crioula. As situações históricas de plantation e das comunidades quilombolas são exemplos categóricos propícios para o surgimento de uma nova entidade linguística. Em ambos os casos, configura-se a relação social de submissão do colonizador em relação ao colonizado e a interlocução entre eles estabelece-se de forma singular, especialmente através de locuções imperativas e referenciais, para o cumprimento das tarefas ordenadas. Ressalta-se que o exemplo clássico de crioulo radical de base portuguesa pode ser

atestado em países da África, Ásia e Oceania que sofreram situações de contato abruptas e radicais.

No Brasil, Lucchesi (2009) detém-se, exaustivamente, na análise da história do contato entre línguas, designando o conceito de transmissão linguística irregular, processo que pode resultar historicamente em duas situações linguísticas: (i) uma nova língua; (ii) uma variedade da língua alvo. No primeiro caso, a nova entidade linguística tem como característica um sistema gramatical distinto daquele que lhe forneceu o vocabulário, formalizada pela crioulística como línguas pidgins – socialização do código emergencial, minimamente estruturado – e línguas crioulas – decorrente da nativização do jargão18 ou do pidgin. No caso de formação de variedades da língua alvo, o sistema gramatical é simplesmente reestruturado, não tão profundamente como no caso das línguas crioulas, mas sim baseado em uma menor erosão gramatical.

O processo de transmissão linguística irregular admite níveis variáveis de reestruturação e/ou erosão gramatical, como pode ser observado no esquema formulado por Baxter e Lucchesi (1997):

Transmissão Irregular Regular

Modelo p/ nativização

Jargão Pidgin L2 afastada da LA

L2 próxima da LA

Resultado da

nativização Crioulo Radical Crioulo Semi-crioulo

Variedade da língua alvo

Exemplo Crioulos de São Tomé e Príncipe Crioulos de Cabo Verde e da Guiné- Bissau Português dos Tongas em São Tomé Variedades rurais do português Quadro 03 - Transmissão / nativização com base em diversos modelos de L2

Fonte: Adaptado de Baxter e Lucchesi (1997, p. 74).

Analisando o Quadro 03, verifica-se que o processo de transmissão linguística pode se dar de forma irregular ou regular. Entende-se por transmissão regular a aquisição normal de

18 Código linguístico imediato desenvolvido em uma situação inicial de contato de falantes de línguas mutuamente ininteligíveis, em que há perda de elementos gramaticais no processo da aquisição defectiva da língua alvo pelos falantes adultos das outras línguas.

linguagem, os itens gramaticais atribuídos pela sintaxe de uma língua. Já a transmissão linguística irregular está baseada em dados linguísticos de falantes adultos, que aprenderam uma segunda língua de maneira defectiva e que transmitem à sua prole esse modelo de língua segunda. O que se observa no esquema é um contínuo estabelecido por níveis de erosão gramatical, que pode variar de acordo com o modelo utilizado na nativização.

Tendo como modelo um jargão, o produto final será uma língua autônoma – denominada crioulo radical – com estrutura gramatical com maiores lacunas a serem preenchidas pela criança. A depender da situação19 pode-se obter um crioulo, menos radical, a partir de um pidgin. Sabe-se que, quanto maior reestruturação e reorganização gramatical a criança fizer no processo de nativização, maior será a distancia da língua alvo. Assim, o crioulo de São Tomé e Príncipe é exemplo de um crioulo radical; e o de Cabo Verde e da Guiné-Bissau são estruturas menos radicais.

O surgimento de um semi-crioulo20 requer um modelo de língua que tenha passado por estruturações parciais, que a distanciam da língua alvo (mas não é um pidgin nem um jargão), a exemplo do português dos Tongas em São Tomé.

Lucchesi (2008, p. 371) estabelece três condições determinantes para o surgimento de “uma nova entidade lingüística com uma gramática qualitativamente distinta da gramática da língua alvo” denominada crioulo:

i) a retirada de populações de seu contexto cultural e lingüístico de origem, como ocorreu com o tráfico negreiro;

19 Segundo Lucchesi (2009, p.102), a variação da estrutura gramatical de uma língua crioula pode variar no

contínuo entre o pólo mais radical ou mais radical devido:

(i) ao difícil acesso dos falantes das outras língua aos modelos da língua alvo, sobretudo nas situações em que os falantes dessa língua alvo são numericamente muito inferiores aos falantes das outras línguas;

(ii) ao fato de os falantes dessas outras línguas serem, em sua grande maioria, adultos, não havendo, pois, o acesso aos dispositivos da faculdade da linguagem, que atuam naturalmente no processo de aquisição da língua materna;

(iii) à ausência de uma ação normatizadora, ou seja, de uma norma ideal que oriente e restrinja o processo de aquisição/nativização, já que esse processo tem como objetivo fundamentalmente a comunicação emergencial com os falantes da língua alvo.

20 Holm (1992) define um semi-crioulo como uma língua que passou por “reestruturação parcial, gerando variantes que não foram completamente pidginizadas e que preservam uma parte considerável da estrutura do superstrato (por exemplo algumas flexões) enquanto apresentam, igualmente, um grau notável de reestruturação” ou “influências crioulas, observadas nas variantes que originariamente não eram crioulos, mas que, através do contato com os crioulos, adotaram um número significativo de itens lexicais e traços estruturais crioulos”.

ii) a concentração de um grande contingente linguisticamente heterogêneo sob o domínio de um grupo dominante numericamente muito inferior (a referência nas situações típicas de crioulização seria a proporção de pelo menos dez indivíduos dos grupos dominados para cada indivíduo do grupo dominante);

iii) a segregação da comunidade que se forma na situação de contato.

A polêmica sobre a estabilização ou não de uma língua crioula no Brasil ainda enseja discussões nos dias atuais. A comunidade de fala de Helvécia, na Bahia, por exemplo, apresenta uma série de estruturas típicas crioulizantes e uma história favorável ao desenvolvimento de um crioulo temporário. Contudo, não se pode generalizar essa situação para todo Brasil, segundo Mattos e Silva (2002, p.458) “pode ser postulada para locais específicos [...] como é o caso de comunidades afro-brasileiras isoladas”. Lucchesi (2009, p. 70) esclarece quais foram os pontos que evitaram tal processo, a saber:

i) a proporção entre a população de origem africana e branca, que permitia um nível de acesso maior à língua alvo do que o observado nas situações típicas de crioulização;

ii) a ausência de vida social e familiar entre as populações de escravos, provocada pelas condições sub-humanas de sua exploração, pela alta taxa de mortalidade e pelos sucessivos deslocamentos;

iii) o uso de língua francas africanas como instrumento de interação dos escravos segregados e foragidos;

iv) o incentivo à proficiência em português;

v) a maior integração social dos escravos urbanos, domésticos e das zonas mineradoras;

vi) a miscigenação racial.

Segundo Lucchesi (1999, p.75), esses mesmos fatores atuaram como difusores das mudanças ocorridas com o processo de transmissão linguística irregular.

De acordo com a fundamentação teórica da sócio-história apresentada, neste capítulo, questiona-se a hipótese defendida por Anthony Naro e Martha Scherre (2007) para a formação estrutural do português popular brasileiro, uma vez que na base da explicação dessa hipótese estaria a confluência de motivos advinda de forças de diversas origens. Entretanto, os resultados de pesquisas estão concentrados, até então, na variação concordância verbal e nominal. Para atestar a validade dessa proposta e, então, considerá-la como responsável pela formatação do PPB, é necessário ampliar o repertório das análises empíricas.

Dessa forma, a proposta que parece mais coerente é a da transmissão linguística irregular, cujo construto teórico e análises empíricas foram reunidas no livro O português

de dezesseis aspectos da morfossintaxe da gramática de quatro comunidades rurais afro- brasileiras isoladas do interior do Estado da Bahia (algumas delas possivelmente oriundas de antigos quilombos)” (LUCCHESI, 2009).

Mattos e Silva (2002, p.458-59; 2004, p. 133) salienta que “a deriva natural não poderia ser descartada para aspectos das variantes cultas [...]. Contudo, seria, ao meu ver, inadequado propor a deriva natural para outros aspectos [que não a concordância verbo- nominal] da sintaxe brasileira do português vernáculo brasileiro, que o aproximam a mudanças ocorridas em áreas de crioulização leve (cf. Baxter; Lucchesi, 1997)”.

3.3 AS COMUNIDADES DE FALA E A DINAMICIDADE DE DOIS MUNICÍPIOS DO

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