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HISTÓRIA DA MATEMÁTICA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES:

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2 PASSADO, PRESENTE E FUTURO: INFLUÊNCIAS DA

2.5 HISTÓRIA DA MATEMÁTICA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES:

COTIDIANO ESCOLAR

O educador deve fazer a criança passar novamente por onde passaram seus antepassados; mais rapidamente, mas sem omitir etapa. Por essa razão, a história da ciência deve ser nosso primeiro guia.

Euclides Roxo

Vislumbrar os limites e as possibilidades da formação de professores que considere os princípios epistemológicos e éticos no ensino da Matemática no cotidiano escolar é uma tarefa complexa e árdua, que exige a compreensão dos processos históricos, políticos, sociais, culturais, dentre outros, envolvidos na configuração das políticas de formação de professores de Matemática, bem como exige a percepção de que tais dimensões influenciam a construção da identidade profissional do docente que ensina Matemática nos espaços de educação escolar formal.

Nesse sentido, Miguel et al. (2004) colocam em evidência a importância de investigar as formas pelas quais as profissões se institucionalizam historicamente e pelas quais contribuem para as estruturas de desigualdades sociais, a fim de que possamos desvendar os mecanismos pelos quais os profissionais se apropriam de vantagens materiais e simbólicas. Podemos constatar que, para os autores em foco:

[...] embora no Brasil do século XIX o magistério já fosse considerado uma profissão liberal, ao lado da medicina e da advocacia, os profissionais que lecionavam as diversas disciplinas escolares – em qualquer nível – eram os médicos, os engenheiros, os advogados ou os padres. Além disso, não era exigido de tais profissionais nenhuma preparação especial ou qualquer tipo de credenciamento educacional, além da própria formação científica obtida nas suas escolas e faculdades. Os professores de matemática – de qualquer nível – eram normalmente os engenheiros. Mas a matemática e o ensino não eram considerados conhecimentos ou ocupações estranhas à engenharia ou às atividades do engenheiro. A partir de meados do século XX, com a implantação das universidades, a diversificação dos cursos de nível superior e a reestruturação da economia nacional, os engenheiros passaram a sofrer a concorrência de outros especialistas de nível superior, como economistas e administradores. Algo semelhante também ocorreu depois da implantação dos cursos de formação de professores de matemática e de física nas faculdades de filosofia, cujos egressos passaram a concorrer com os engenheiros na disputa de vagas do ensino secundário. [...] no final dos anos de 1940, chegou a ser constituída uma associação para a defesa do monopólio do ensino secundário para os licenciados. [...]

era uma tentativa de redefinição e reorganização do ensino da matemática, com o surgimento de novas instituições profissionais específicas, de uma associação de professores licenciados e de uma faculdade para formação especializada de professores, [...] que resultaram nas tentativas de valorização e reconhecimento de um novo tipo de profissional do ensino, dominando novos conhecimentos matemáticos e pedagógicos, proclamando novos valores éticos, seguindo novos métodos etc. [...] Enfim, o que estava realmente em jogo era saber quem deteria o monopólio na área de conhecimento: os veteranos engenheiros catedráticos e seus sucessores, ou as jovens professoras de matemática e seus aliados? (p. 85-86)

Em Portugal, na Universidade de Coimbra, foi criada a profissão de matemático, que poderia atuar no ensino, bem como na Marinha e na Engenharia. Os pedagogos são considerados pelos matemáticos como sendo incultos matematicamente, apesar de realizarem pesquisas em Educação Matemática. Neste contexto, entende-se que os pedagogos produzem conhecimentos acerca do ensino da Matemática, em contraponto à natureza do conhecimento científico da Matemática, sobre o qual os matemáticos transitam. O domínio dos conteúdos específicos da Matemática confere legitimidade aos matemáticos, contudo, torna-se necessário superar o posicionamento dicotômico nos processos de construção de conhecimentos, bem como nos processos de ensino e de aprendizagem, conforme a relativização de Miguel et al. (2004):

[...] os matemáticos conteudistas, arrogantes, inflexíveis, se imaginam salvadores da pátria e legítimos proprietários e defensores do nível e do rigor da educação matemática da população”35. Em

meio a essa disputa de campo epistemológico, político e profissional, vislumbra-se outro grupo de professores de matemática, pesquisadores em matemática e em educação matemática, aliados a outros profissionais, que fazem e acreditam na educação matemática e tentam, de fato, levar a sério o que fazem. (p. 89)

Dessa constatação dos autores podemos verificar que a própria disciplinarização da Educação, isto é, o seu reconhecimento acadêmico como campo autônomo de pesquisa e de formação profissional, é relativamente recente.

35 Conforme enuncia D’Ambrosio (2011, p. 27), hoje é fácil identificar indivíduos reconhecidos como

matemáticos. De modo geral, podemos considerar aqueles identificados na União Matemática Internacional, segundo um critério para elaborar o Diretório Internacional de Matemáticos. [...] Esse é o critério formal. Mas há muita matemática que foi feita por indivíduos considerados “não matemáticos” [...]. As ideias matemáticas são muito importantes e centrais no conhecimento humano para serem restritas a um grupo de profissionais reconhecidos como “matemáticos”. [...] O reconhecimento de que muita coisa relevante no saber e no fazer matemático seja resultado de situações e de indivíduos que não são identificados como matemáticos deu origem ao Programa Etnomatemática.

No Brasil isso só viria a ocorrer no ano de 1968, por força da Lei n. 5.540, “[...] com a criação das chamadas faculdades de educação, as quais passariam a responsabilizar-se pela gestão dos chamados cursos de Pedagogia e pela formação, em nível superior, de um novo tipo de profissional: o pedagogo”36 (MIGUEL et al.,

2004, p. 87).

Aponta-se, igualmente, que por todo o território nacional “era crescente a organização de núcleos de pesquisa em educação matemática nos programas de pós-graduação em educação, além da consolidação dos programas de pós- graduação específicos em educação matemática37, como o da Universidade

Estadual Paulista (UNESP), de Rio Claro, e o da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP” (MIGUEL et al., 2004, p. 74).

No final da década de 1980 e início da década de 1990, a criação de um grupo de trabalho numa associação nacional do porte da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED) representou o reconhecimento da área da Educação Matemática pela comunidade científica38. Dentro deste cenário,

coloca-se em evidência, mais uma vez, a disputa de campo epistemológico, político e profissional, representada pelo questionamento anteriormente apresentado: “saber quem deteria o monopólio na área de conhecimento: os veteranos engenheiros catedráticos e seus sucessores, ou as jovens professoras de matemática e seus aliados?” (MIGUEL et al., 2004, p. 85-86).

36 Diante das recentes determinações sobre a formação de professores em cursos de licenciatura, a

temática tem estado em cena de modo privilegiado: fala-se da necessidade de parcerias para um repensar dessa formação que, via de regra, ocorre num “entre” áreas, de forma desconexa, fundada apenas numa prática que se perpetua pautada numa pretensa ditadura paradigmática, justificada por um processo dito “histórico” [...] Um objeto escorregadio como a formação de professores, com seus múltiplos aspectos, não se deixaria apanhar por uma única técnica ou linha de fundamentação teórica, haja vista que na educação matemática defende-se o discurso segundo o qual é necessária flexibilidade para ouvir o diferente (MIGUEL et al., 2004, p. 91).

37 De acordo com Miguel et al. (2004, p. 71; 72; 87; 88), o passo mais importante no estabelecimento

da educação matemática como uma disciplina é devido à contribuição do eminente matemático alemão Felix Klein (1849-1925), que publicou, em 1908, um livro seminal: “Matemática elementar de um ponto de vista avançado”. Klein defende uma apresentação nas escolas que se atenta mais a bases psicológicas que sistemáticas. Diz que o professor deve, por assim dizer, ser um diplomata, levando em conta o processo psíquico do aluno, para poder agarrar seu interesse. Afirma que o professor só terá sucesso se apresentar as coisas de uma forma intuitivamente compreensível. No caso específico da disciplinarização da matemática, podemos constatar que uma demanda mais expressiva por formação matemática teria ocorrido durante o século XVI em função do surgimento de novas técnicas militares, sobretudo as da artilharia, da fortificação e da cartografia. Tais tipos de necessidades é que teriam levado à criação de cadeiras de matemática nas universidades e colégios.

38 D’Ambrosio (2011, p. 95) afirma que a vitalidade e o interesse pela matemática, que se intensifica

na segunda metade do século XX, estimulada pelas circunstâncias internacionais, abriram espaço para a emergência, no Brasil, de outras áreas de pesquisa matemática, muitas de natureza interdisciplinar.

Uma breve análise da trajetória histórica das reformas curriculares e do quadro atual do ensino de Matemática é necessária para a compreensão, mesmo que numa visão panorâmica, das influências, dos avanços, das permanências, dos limites e das possibilidades presentes para a formação de professores de Matemática no contexto atual do ensino da Matemática no Brasil (BRASIL, 1997b). A partir e com base nesta contextualização, aqui importa considerar que, a despeito do embate entre matemáticos professores e professores de Matemática, ambas as categorias de profissionais que atuam no ensino da Matemática no cotidiano escolar se deparam com a problemática que se segue, conforme os Parâmetros Curriculares Nacionais de Matemática (BRASIL, 1997b):

Parte dos problemas referentes ao ensino de Matemática estão relacionados ao processo de formação do magistério, tanto em relação à formação inicial como à formação continuada. Decorrentes dos problemas da formação de professores, as práticas na sala de aula tomam por base os livros didáticos, que, infelizmente, são muitas vezes de qualidade insatisfatória. A implantação de propostas inovadoras, por sua vez, esbarra na falta de uma formação profissional qualificada, na existência de concepções pedagógicas inadequadas e, ainda, nas restrições ligadas às condições de trabalho. (p. 24)

Ao centrar o olhar para a pesquisa sobre a formação continuada de professores de Matemática, alguns pesquisadores, a exemplo de Miguel et al. (2004), apontam a necessidade de parcerias entre os professores licenciados em Matemática e os professores licenciados em Pedagogia, uma vez que não há um discurso próprio sobre esta formação em serviço na Educação Matemática, ao passo que os profissionais da Educação (pedagogos e professores de Matemática – embora não focando especificamente o ‘objeto matemático’), têm desenvolvido incontáveis estudos e alternativas de intervenção neste panorama. Dentre as indagações do estudo de tais pesquisadores, merece destaque, a meu ver, o que se enuncia:

Como, então, buscar parcerias de modo a pensar, de forma orgânica, a formação dos futuros professores? [...] Penso que cabe à educação matemática estabelecer seus princípios (inegociáveis) para que se possa, com a cautela necessária, formar essas parcerias, buscando formas de negociação. Esses princípios passam, forçosamente, por avaliarmos os limites de nossas teorias e as epistemologias que as sustentam. [...] A partir desse princípio – a matemática como conjunto de fazeres sociais – podemos pensar em traçar parâmetros para escolher nossos interlocutores dentre os profissionais das diversas áreas com as quais a educação matemática, necessariamente, interage e deve continuar interagindo. (p. 92)

Ao apontar vias de superação para esse panorama crítico, Miguel e Miorim (2004) propõem fazer com que a história da Matemática participe de forma orgânica no processo de formação de professores de Matemática, na medida em que:

[...] as chamadas disciplinas de conteúdo matemático que integram a grade curricular de tais cursos ainda estão centradas quase que exclusivamente em abordagens axiomático-dedutivas que, mais preocupadas com o rigor formal e com o encadeamento lógico de conceitos e proposições, descartam outros elementos de extrema importância para o professor que deverá atuar em instituições escolares, tais como a constituição desses conceitos e proposições em diferentes práticas sociais na história. (p. 53)

Constata-se ainda que, conforme pontuam Miguel e Miorim (2004), é necessária uma consciência crítica no que se refere particularmente aos problemas de natureza ética39, considerando-se que:

[...] é desastroso que a educação matemática escolar e os cursos de formação de professores de Matemática tenham se isentado em relação à problematização deles, restringindo-se, cada vez mais, a uma abordagem estritamente técnica e aparentemente neutra da cultura matemática. Uma História da Matemática pedagogicamente vetorizada poderia prestar grande auxílio aos professores intencionados em se contrapor a uma tal tendência tecnicista e aparentemente neutra do ensino. (p. 159)

Em outros termos, os autores acenam para a necessidade do resgate dos aspectos estéticos de que se revestem algumas demonstrações e métodos de resolução de problemas, bem como a condição de subsidiar uma Educação Matemática escolar de tendência não-tecnicista, possibilitando o desenvolvimento de atividades vinculadas ao domínio afetivo que estimulem a imaginação e a criatividade, considerando-se que “a Matemática deverá ser vista pelo aluno como um conhecimento que pode favorecer o desenvolvimento do seu raciocínio, de sua capacidade expressiva, de sua sensibilidade estética e de sua imaginação” (BRASIL,

39 Miguel e Miorim (2004, p. 72) notam uma inadequação de se distinguir rigidamente a aprendizagem

matemática da aprendizagem ética via Matemática ou, em outras palavras, distinguir conteúdos exclusivamente matemáticos de valores promovidos via aprendizagem matemática, uma vez que, por um lado, valores poderiam ser também entendidos como conteúdos específicos de aprendizagem e/ou de investigação prevalecentes em outro domínio do conhecimento humano (a Filosofia ou, mais particularmente, a Ética, por exemplo) que não o matemático, e, por outro lado, mesmo uma suposta ênfase exclusiva na aprendizagem de conteúdos matemáticos já comporta, em si mesma, ainda que implicitamente, uma aprendizagem ética, cujos valores subjacentes poderiam ser, por exemplo, a valorização do pensamento baseado num certo tipo de racionalidade, a valorização da precisão e do rigor nos raciocínios e na argumentação, a valorização da interpretação quantitativa de fenômenos naturais e sociais, etc.

1997b, p. 31), de maneira a superar os bloqueios psicológicos em relação a Matemática escolar e vislumbrando uma formação de professores de Matemática “que fazem e acreditam na educação matemática e tentam, de fato, levar a sério o que fazem” (MIGUEL et al., 2004, p. 89).

3 “SIM, SALABIM!

40

”: A MATEMÁTICA DEVERIA SER ASSIM! –

ABORDAGENS

TEÓRICO-METODOLÓGICAS

PARA

A

FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA

[...] o ponto que me parece de fundamental importância e que representa o verdadeiro espírito da Matemática é a capacidade de modelar situações reais, codificá-las adequadamente, de maneira a permitir a utilização das técnicas e resultados conhecidos em um outro contexto, novo. Isto é, a transferência de aprendizado resultante de uma certa situação para uma situação nova é um ponto crucial do que se poderia chamar aprendizado da matemática e talvez o objetivo maior do seu ensino.

Ubiratan D’Ambrosio

Figura 4 – Ilustração do livro “Cuidado Escola”.

Autoria: Babette Harper et. al.

Fonte: HARPER et al. (2003, p. 61).

A ilustração que inaugura o presente capítulo nos chama a atenção por indicar que a criança se relaciona mal com a Matemática (vide o conteúdo representado na colher), mostrando-se resistente à tentativa de convencimento ineficaz. Cortella (2011) alerta para a necessidade de os educadores garantirem aos alunos a compreensão das condições culturais, históricas e sociais de produção do conhecimento, no caso o conhecimento matemático, para minimizar ou até mesmo

40 Título do presente capítulo inspirado no livro “SIM, SALABIM! A vovó é assim!”, de Tracey Corderoy

suprimir a mitificação e a sensação de perplexidade, impotência e incapacidade cognitiva, expressa no quadro ilustrativo.

O presente capítulo se propõe a transitar pelas abordagens teórico- metodológicas pautadas nas tendências atuais do ensino da Matemática, a fim de anunciar perspectivas diferenciadas na formação de professores, nas quais conteúdo e forma se apresentem numa relação de indissociabilidade, no que se refere a “o quê ensinar” e ao “como ensinar”.

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