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História e Literatura no século XVI: a fixação do mito de Inês de Castro

III. A ESCRITA DA HISTÓRIA

4. História e Literatura no século XVI: a fixação do mito de Inês de Castro

Na Europa, o período de tempo compreendido, grosso modo, entre os séculos XIV e XVI, inclusive, ficou conhecido com a designação genérica de Renascimento, indissociável dos conceitos de Humanismo e de Classicismo. A delimitação cronológica deste período nem sempre é consensual, embora seja aceite que se trata de um período de rutura no pensamento e nas práticas, que marcou o final da Idade Média e o início da Idade Moderna. Em Portugal, país estruturalmente periférico, a influência renascentista

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verifica-se, sobretudo, no século XVI, onde pontificam, no que diz respeito ao assunto desta dissertação, autores como Garcia de Resende, António Ferreira e Luís de Camões.

A ênfase humanista própria do Renascimento conduziu à valorização do homem, enaltecendo as suas qualidades e transformando-o, muitas vezes, em herói. Por outro lado, o lirismo, a eloquência, mesmo que veiculada por um discurso aparentemente caraterizado pela simplicidade de Garcia de Resende, e um certo dramatismo trágico são elementos caraterísticos de uma estética literária que se pretendia imitadora dos modelos clássicos e vão ser denominador comum na produção literária dos autores em referência.

O século XVI assistiu à fixação do mito de Inês de Castro, sobretudo através do contributo literário dos três autores em referência.

4. 1. Garcia de Resende

Em 1516, foi publicado o Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, onde pontificam as Trovas à Morte de Inês de Castro107, uma composição poética profundamente lírica, mas onde não falta o dramatismo trágico que há de condicionar a recriação histórica. Aliás, logo no título, o autor retoca a realidade histórica, fazendo do rei Afonso IV o assassino impiedoso de Inês108, ponto de vista que, ao longo do poema, o monarca acaba por abandonar, descomprometendo-se da execução de Inês, em quem, afinal, não vê qualquer culpa: “nem vejo eessa coitada / por que deva de morrer” (Garcia de Resende 1993: 307). Por outro lado, Garcia de Resende remete o texto para as damas, o que, considerada a menoridade do estatuto tradicional da mulher, contribui para um esbatimento da seriedade factual do acontecimento narrado, relevando-se o pendor lírico que, na estética literária medieval, se focaliza no feminino. Ou seja, assumindo uma intencionalidade artística, valorizando o fruir estético, Garcia de Resende emancipa conscientemente a Literatura da História, movendo-se nas balizas da

107 Forma abreviada do título Trovas que Garcia de Resende fez à morte de D. Inês de Castro, que el-

rei D. Afonso, o Quarto, de Portugal, matou em Coimbra por o príncipe D. Pedro, seu filho, a ter como mulher, e, pelo bem que lhe queria, não queria casar, endereçadas às damas.

108 Garcia de Resende titula, explicitamente, a “morte de D. Inês de Castro, que El-Rei D. Afonso, o

quarto de Portugal, matou”, o que é, claramente, uma estratégia para dramatizar o acontecido,

potenciando o interesse ficcional. Aliás, a fazer fé nas Crónicas dos sete primeiros reis de Portugal, D. Afonso IV, apesar de ter estado, de facto, em Coimbra, mudou de opinião relativamente à execução de Inês, depois de a ouvir pessoalmente, e afastou-se. E só com grandes pressões é que os conselheiros conseguiram do Rei “comsemtir que eles tornassem a matar Dª Ines se quisessem” (Rui de Pina MMIX: 367).

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possível verdade histórica. Com efeito, voluntária ou involuntariamente, o autor balanceia entre a fatalidade associada a dois pólos discursivos distintos, para justificar a morte de Inês: por um lado, a relação ilegítima de alcova que tem, inevitavelmente, um desfecho trágico e, por outro lado, a desventura associada às intrigas políticas.

Na primeira estrofe, alertando as damas, Garcia de Resende assume a focalização heterodiegética e centra o discurso na recompensa que resulta de uma relação amorosa: “Senhoras, s’algum senhor / Vos quiser bem ou servir, / Quem tomar tal servidor / Eu lhe quero descobrir / O gualardam do amor” (Garcia de Resende 1993: 301).

Na penúltima estrofe, recorrendo à focalização interna através de Inês, conclui que a amante de Pedro, por se ter apaixonado, recebeu, como prémio, a morte: “Com as espadas na mam / m’atravessam o coraçam, / a confissam me tolheram. / Este é o gualardam / Que meus amores me deram (Garcia de Resende 1993: 307).

Na última estrofe, apropriando-se novamente do discurso, o narrador heterodiegético, generalizando o exemplo de Inês e assumindo uma postura masculina/paternalista típica, aconselha as damas a serem permissivas ao relacionamento amoroso (não terem medo de fazer bem) e a não ficarem perturbadas com a história que acabaram de ouvir, mas, ao mesmo tempo, procura convencê-las a uma certa passividade amorosa (tende o coraçam mui quedo) e à preservação da virtude feminina, que, supostamente, jamais deve ser perdida:

Senhoras, nam hajais medo, nam receeis fazer bem, tende o coraçam mui quedo e vossas mercês veram, cedo quam grandes beens do bem vem. Nam torvem vosso sentido as cousas qu’haveis ouvido, porqu’ee lei de deos d’amor: bem, vertude nem primor

nunca jamais ser perdido (Garcia de Resende 1993: 307).

Podemos concluir, portanto, que a fatalidade que pode resultar das relações amorosas, independentemente dos atores envolvidos, explica-se, segundo a perspetiva de Garcia de Resende, pela falta de recato feminino e pelo desrespeito a uma lei fundamental “de deos d’amor”: proteger o bem, a virtude e a perfeição femininos.

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Inês de Castro reflete a contradição que resulta, por um lado, do seu estatuto de mulher virtuosa, inocente e de bons princípios e, por outro lado, das consequências ignóbeis e trágicas impostas pelo Destino que, elegendo-a objeto de Amor, a submete ao frenesim da paixão: “Eu era moça, menina, / per nome Dona Inês / de Castro e de tal doutrina / e vertudes qu’era dina / de meu mal ser ò revés. / Vivia sem me lembrar / que paixam podia dar / nem dá-la ninguém a mim” (Garcia de Resende 1993: 302).

O móbil, intervalo lúdico nas mãos da fortuna, é D. Pedro que não passa, afinal, tal como Inês, de um catalisador para as lúbricas tramas de uma entidade indizível que alicia os humanos, para logo os submeter, à luz de um padrão mais ou menos tradicional: a desonra do homem e a aniquilação da mulher, estímulo libidinoso responsável pela instalação do caos amoroso: “Foi-m’o Princepe olhar / por seu nojo e minha fim! (…) // Fortuna foi ordenar / dous corações conformar / a ua vontade vir” (Garcia de Resende 1993: 302).

A conceção medieval do casamento, enquanto contrato entre famílias ou entre reinos para garantir a procriação adequada a desígnios de natureza política, militar e económica, condicionava a relação conjugal a um mero entendimento doméstico. Aliás, era mesmo aceite que os sentimentos que inflamam os corações, que são capazes de “dous corações conformar / a ua vontade vir”, só podem ser experienciados fora do casamento. A barregã, que habitualmente nem os guardiões da moralidade estigmatizavam, usufruía certamente do melhor da relação amorosa: “estava mui acatada / como princesa servida, / em meos paços mui honrada, / de tudo mui abastada, / de meu senhor mui querida” (Garcia de Resende 1993: 303).

A mancebia era uma prática trivial, acoitava os devaneios dos amantes, garantia poder aos filhos ilegítimos e, por outro lado, garantia influência e controlo paternal nas estruturas de poder, quer esse poder fosse económico, político ou religioso. E quanto mais vasta fosse a prole mais alargava aquela influência. No entanto, a mancebia não devia colidir com os interesses que estribavam o trato conjugal, sobretudo quando se tratava de questões relacionadas com a sucessão dinástica. Sendo certo que, por conveniências meramente formais, o casamento oficial devia ser garantido, a verdade é que o enamoramento justificava e desculpabilizava qualquer devaneio: “e quereis qu’abarregado, / com filhos como casado / estê, Senhor, vosso filho! / De vós mais me maravilho / que dele qu’ee namorado (Garcia de Resende 1993: 306).

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Este equilíbrio nem sempre era fácil, sobretudo para as mulheres, as quais, tradicionalmente, assumem mais facilmente as relações de pertença. Enquanto a barregã, cumulada de mordomias, aspirava pela aceitação pública e pela institucionalização do concubinato, procurando assegurar a respeitabilidade dos filhos, a esposa de direito arrastava, nos corredores do palácio, a responsabilidade de salvaguardar a legitimidade dos seus herdeiros. Deste modo, o casamento era muitas vezes um fim em si mesmo, esgotado no ato da procriação, enquanto a mancebia era uma aventura, um projeto, uma vida: “Dei-lhe minha liberdade, / nam senti perda de fama, / pus nele minha verdade, / quis fazer sua vontade / sendo mui fremosa dama” (Garcia de Resende 1993: 302).

Entre o muito que desconhecemos da relação entre Pedro e Inês, há uma questão, da maior importância, que regurgita permanentemente na bruma do que imaginamos: o casamento de Pedro, após a morte de D. Constança. Com efeito, viúvo aos trinta e três anos, deveria escolher rapidamente uma esposa que subiria consigo ao trono, à morte de Afonso IV. A Crónica de D. Afonso IV refere que os pais de D. Pedro e os grandes senhores do reino pressionaram D. Pedro para que casasse novamente:

E posto que delRey e da Rainha, seu padre e madre, e dos primcypaes homems de Purtuguall fosse pera yso com justas rezões acomselhado, e asym por elRey seu padre, requerido e amoestado que casase, ou dysese se Dª Jnes era sua molher, pera ser por yso homrada e tratada de todos como ela mereçya, em vyda delRey sempre denegou, que ho casamento amtre eles era feito. Nem tam pouco quis com houtra molher casar (Rui de Pina MMIX: 365).

É compreensível que os principais homens de Portugal desejassem urdir rapidamente o casamento de Pedro. A resolução tranquila deste processo, num quadro tradicional de negociação onde os grandes senhores se pronunciavam, garantiria a manutenção da ordem estabelecida, dos privilégios e das influências das casas senhoriais dominantes. Naturalmente, esse casamento excluiria Inês de Castro, dados os previsíveis perigos da influência dos seus irmãos galegos e de outros senhores castelhanos, já referidos, na ação política futura do príncipe, que constituíam um potencial revés para os poderes das casas senhoriais dominantes. O excerto acima transcrito, de Rui de Pina, não permite, do ponto de visto linguístico e interpretativo, incluir, sem margem para dúvidas, os principais homens de Portugal na decisão de aceitar o casamento de Pedro com Inês. Aliás, o mais normal é que assim não fosse, dado que os irmãos de Inês eram muitíssimo próximos de D. Pedro e, naturalmente,

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iriam ser favorecidos no círculo restrito da corte, em detrimento dos portugueses, sobretudo se Inês fosse rainha. Por outro lado, o excerto transcrito refere que o rei não se oporia a esse casamento. No entanto, apesar de pressionado pela necessidade de garantir um casamento estável para o seu sucessor, não deveria ter sido fácil, a D. Afonso IV, aceitar a oficialização da relação do filho com Inês de Castro. Com efeito, parece certo que Afonso IV, conhecida a mancebia de Pedro com Inês, ainda em vida de Constança, ordenou a “retirada estratégica de Inês para Castela” (Pimenta 2005: 170), porventura lembrado das gravíssimas desavenças com a casa de Albuquerque, onde Inês fora criada.

Certo é que Garcia de Resende, ao omitir a anuência do rei ao casamento de D. Pedro com D. Inês, referenciada nas Crónicas, está a dramatizar a relação dos amantes e a potenciar a sua vitimização, promovendo o tom trágico-lírico das Trovas.

A verdade acerca da atitude do rei, relativamente a Inês de Castro, volta a ser discordante entre os cronistas e Garcia de Resende, quando este, através da focalização interna de Inês, retira a Afonso IV qualquer intervenção direta passada, que manifestasse discordância à mancebia de Pedro:

Que se m’ele defendera qu’a seu filho nam amasse e lh’eu nam obedecera, entam com rezam podera dar-m’a moorte qu’ordenasse. Mas vendo que nenhu hora des que naci ategora nunca nisso me falou, quando se disto lembrou,

foi-se pola porta fora (Garcia de Resende 1993: 305).

Garcia de Resende acaba por se contradizer nas malhas do seu próprio texto, dado afirmar que “El-Rei Dom Afonso, o quarto de Portugal, matou em Coimbra, por o Príncipe Dom Pedro, seu filho, a ter como mulher e polo bem que lhe queria nam queria casar”109. Ou seja: no momento inicial, o escritor apresenta o seu texto, está mais pessoalmente exposto e necessita de dar algum suporte histórico plausível ao discurso. Por isso, alinha com a tradição dos cronistas, apontando a mancebia de D. Pedro e a sua recusa em casar com outra mulher (pondo em risco a normalidade do

109 Afirmação referida no Prólogo do Cancioneiro de Garcia de Resende (Garcia de Resende 1993: 301).

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exercício do poder) como justificação para o assassinato de Inês, pelas mãos de Afonso IV, que a matou em Coimbra. Haveria razões políticas que estariam na base da decisão de matar Inês, designadamente a eventualidade de guerras com Castela (Garcia de Resende 1993: 306), mas sintetiza, nas palavras de Inês, a orientação lírica que subjaz ao poema e que motiva a sua execução: “Este é o gualardam / que meus amores me deram” (Garcia de Resende 1993: 307).

Mas ao longo do poema, quando a condução do discurso passa para as mãos do sujeito lírico, Garcia de Resende abandona a tese da condenação baseada num processo político amadurecido e apresenta a execução como um ato isolado, sem justificação processual e sem intervenção final direta do rei: “Mas vendo que nenhu hora / des que naci ategora / nunca nisso me falou, / quando se disto lembrou, / foi-se pola porta fora” fora (Garcia de Resende 1993: 305).

É certo que Garcia de Resende, enquanto poeta, não tem de estar preocupado com a suposta verdade histórica. Aliás, à data da sua composição, muito provavelmente em 1500 ou 1501, a história de Pedro e Inês havia já sido motivo de vários romances, que manifestam contaminações com histórias semelhantes, como o de Leonor Nunes de Gusmão, amante de Afonso XI de Castela, casado com a nossa formosíssima Maria, filha de Afonso IV e irmã de D. Pedro. A mesma D. Maria que, segundo referem as crónicas, depois de enviuvar, teria sido a mentora do assassinato da rival, três anos antes do assassinato de Inês de Castro. Estamos, portanto, perante ocorrências enquadradas no mesmo tempo histórico, em reinos vizinhos ligados por laços familiares, por padrões culturais muito semelhantes e por influências e práticas comuns. Não é, portanto, de estranhar, entre as duas cortes e entre os dois reinos, a imitação e a mistura e assunção de protagonismos, qualquer que fosse a sua natureza.

A propósito da semelhança e da (con)fusão entre as paixões de Inês e de Leonor de Gusmão, vale a pena lembrar:

Os paralelismos com a história de Inês são evidentes, para revelarem ou uma contaminação dos casos vividos ou uma contaminação de textos orais, com origem em deficiente informação ou nos lapsos de memória dos transmissores (Garcia de Resende 1993, vol. V: 305).

Garcia de Resende assume uma toada ainda com algum sabor trovadoresco, centrando o discurso no feminino, numa Inês moça, menina, reservando para D. Pedro o papel dinamizador da mesura cortês: “Começou-m’a desejar, / trabalhou por me servir”

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(Garcia de Resende 1993: 302). O poeta atribui à fortuna a responsabilidade da paixão de Pedro e de Inês: “Fortuna foi ordenar / dous corações conformar / a ua vontade vir” (Garcia de Resende 1993: 302). Por outro lado, imputa aos amores a responsabilidade da sua morte: “Este é o galardam / que meus amores me deram!”, diz Inês (Garcia de Resende 1993: 307).

O Rei Afonso IV que Garcia de Resende apresenta, após o discurso de Inês, é um homem “com o rosto lacrimoso, / co propósito mudado, muito triste, mui cuidoso” (Garcia de Resende 1993: 305), um rei que, afinal, não parece ter motivos para matar Inês, uma vez que nunca antes a advertira sobre a impossibilidade de amar D. Pedro: “nenhu hora / des que naci ategora / nunca nisso [na necessidade de não amar D. Pedro] me falou” (Garcia de Resende 1993: 305), referência que, aliás, parece ser contrariada pela História. Com efeito, parece seguro, como já foi dito, que Afonso IV, já muito antes, terá determinado “afastar Inês da corte e do reino. Tendo recolhido ao castelo de Albuquerque (…) Inês de Castro aí permaneceu, sob proteção de Teresa de Albuquerque, viúva de Afonso Sanches, o bastardo do rei D. Dinis” (Sousa 2005: 159). Sousa é ainda mais explícito: “Contra o que seria a vontade de Afonso IV, o infante fê- la regressar a Portugal, passando a viver juntos” (Sousa 2005: 160).

A Inês de Garcia de Resende conta que a sua execução foi perpetrada por “Dous cavaleiros irosos / (…) mui crus e nam piadosos / perversos, desamorosos” (Garcia de Resende 1993: 307), que lhe trespassaram o coração com as espadas: “Com as espadas na mam / m’atravessam o coraçam” (Garcia de Resende 1993: 307).

O texto de Garcia de Resende apresenta outras derivas, relativamente ao texto dos cronistas. Assim, a Crónica de D. Afonso IV refere que Inês foi avisada da ida de Afonso IV a Coimbra, para a mandar executar, e, ficando encurralada, sem poder fugir, veio à porta receber o rei, com o rosto transfigurado, escudando-se atrás dos filhos, terrivelmente amedrontada, acossada, pedindo perdão.

Ora, a Inês que Garcia de Resende recupera para a Literatura e, através da Literatura, para a memória coletiva, apesar de saber que está iminente a sua morte, é uma mulher-senhora, adivinha a intenção do rei, recebe-o dentro do Paço e enfrenta-o, afirma que nunca errou nem fez maldade. E, além do mais, recorda ao rei as suas obrigações, lembra o amor que ele deve a Pedro e aos netos e o amor que Pedro deposita nela, repudia a decisão do rei matar uma mulher indefesa e sem culpa, prevê que os

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filhos não sobreviverão se não forem criados pela mãe, etc. É, enfim, uma verdadeira heroína, integrada num contexto vincadamente lírico:

metei nisso bem a mam, qu’ee de fraco coraçam sem porquê matar molher. Quanto mais a mim, que dam culpa, nam sendo rezam, por ser mãi dos inocentes qu’ante vós estam presentes,

os quaes vossos netos sam (Garcia de Resende 1993: 303-304).

Por outro lado, é esta mesma heroína que explica o motivo da recusa de Pedro casar com outra mulher: “Por m’estas obras pagar / nunca jamais quis casar” (Garcia de Resende 1993: 303-304). Ou seja: segundo Inês, Pedro pretenderia proteger os filhos, eventualmente legitimá-los, colocá-los em lugares de prestígio. Esta interpretação é corroborada pelas palavras iniciais de Garcia de Resende, já citadas: “polo bem que lhe queria nam queria casar” com outra mulher, como a alta nobreza pretendia (Garcia de Resende 1993: 301).

Não restam dúvidas que Pedro queria muito a Inês. Também é certo que, no contexto medieval, o casamento dos grandes senhores era quase sempre movido por interesses de natureza política e/ou económica, o que relegava para um plano secundário qualquer vínculo amoroso ou passional entre os nubentes. Por isso, era normal que as paixões e os filhos ditos ilegítimos se multiplicassem fora dos casamentos. Foi exatamente isso que aconteceu com Pedro e Inês! A sua história de amor poderia ter sido uma história igual a tantas outras, se, pelo meio, não tivesse existido uma execução, pouco assumida pelo próprio rei e, portanto, polémica, que despoletou toda a descarga emocional excessiva de um homem habitualmente excessivo.

A tradição oral, a existência de vários romances alusivos à tragédia de Inês110 e o testemunho dos cronistas foram, certamente, algumas das fontes utilizadas por Garcia de Resende para, muito provavelmente nos primeiros anos do século XVI, mais ou menos cento e cinquenta anos depois da execução da Castro, compor as suas Trovas. Relativamente a esta questão, importa referir que as fontes oficiais e nacionais historicamente relevantes dos factos narrados, ao dispor de Garcia de Resende, são

110 “Conhecem-se vários romances, inspirados por tal tragédia, que acusam, contudo, uma criação muito mais tardia [relativamente à data dos factos, ou seja, posteriores a 1355] e que são contaminações de romances, cantando casos afins” (Garcia de Resende 1993: 303-304).

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sobretudo as crónicas de Fernão Lopes e de Rui de Pina que, é bom não esquecer, relatam acontecimentos ocorridos umas largas dezenas de anos antes, o que pode muito bem ter desfocado a realidade factual, motivando discursos alinhados com os interesses das classes dominantes, sobretudo da coroa e da dinastia de Avis.

4. 2. Luís de Camões

Em 1572, foi publicada a epopeia Os Lusíadas, de Luís de Camões. D. Pedro é praticamente ignorado, sendo-lhe feitas várias referência em jeito de evocação, a fim de enquadrar a sua relação com Inês. Para além disso, o épico dedica-lhe apenas duas estrofes, imediatamente a seguir ao episódio de Inês de Castro, referindo-lhe traços que derivam da sua sede de vingança e caraterizando-o como “castigador” e “justiçoso” (Camões 1975: C. III - 137, vv. 1 e 5).

Quanto à linda Inês, Camões dedica-lhe dezoito estrofes, enfatizando a perspetiva feminina e coroando-a de beleza. No chamado episódio de Inês de Castro, há