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III. A ESCRITA DA HISTÓRIA

9. O que é a verdade?

Não interessa aqui discorrer sobre o conceito de verdade, em termos absolutos, nem sequer fazer-lhe qualquer abordagem filosófica. O que importa, no âmbito desta reflexão, é tomar consciência da relatividade do discurso da História e, a partir daí, compreender que o romance histórico pós-moderno, por maioria de razão, caraterizado por uma atitude antidogmática relativamente ao conceito de verdade, é uma narrativa de possibilidades.

Sendo certo que qualquer acontecimento passado é verdade, na medida em que ocorreu num determinado contexto, não deixa de ser menos certo que o relato desse acontecimento não se identifica plenamente com ele, uma vez que está condicionado por variáveis, designadamente pelas circunstâncias subjetivas do narrador181 e do contexto da narração, necessariamente diferente do contexto da ocorrência182.

Sendo que acontecimento e narrador são realidades distintas, o narrador é sempre um mediador do acontecido, relativamente ao eventual narratário ou ao provável leitor. Quer isto dizer que qualquer acontecimento transcende a visão de quem o analisa

181 Dessas circunstãncias subjetivas, podemos destacar a sensibilidade, o grau de conhecimento, a capacidade de interpretação e de expressão, etc.

182 Com efeito, entre o ocorrido e o seu relato, há sempre, pelo menos, a alteração do contexto, o que implica, necessariamente, a existência de desvirtuadores da realidade, muitas vezes impercetíveis: desfoques, ênfases, omissões, etc.

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e é sempre filtrado pela sua subjetividade. O relato surge, assim, suscetível de ser contaminado, mesmo contra a vontade do narrador:

Narra-se o que excede o narrador, os acontecimentos cuja autoria é outrem ou, pelo menos, não é o próprio narrador. Mas este narra para interpretar esse excesso, muitas vezes para o dominar, esconjurando sobretudo a desmesura negativa, quer do próprio ato narrativo, que passa a ter uma função catártica, quer no mundo idealizado que daí advém (Gonçalves 2003: 643).

No contexto histórico medieval, esta problemática é particularmente relevante, por variadíssimos motivos: escassez de fontes, tendência para reduzir a História à narração da vida de atores e acontecimentos circunstanciais (sobretudo acontecimentos bélicos), valorização da tradição oral (muitas vezes eivada de contornos míticos), dependência direta do narrador face ao poder que encomenda a História, hiato temporal entre os acontecimentos e a sua narração, etc.

Fernão Lopes, autor de referência obrigatória para a História do século XIV, onde ocorre o assunto principal que aqui nos ocupa, não é imune a qualquer um dos condicionalismos acima apontados. Não quer isto dizer que as suas crónicas não sejam um excecional elemento de referência para qualquer análise da época. Todos os grandes historiadores a ele recorrem, procurando, no entanto, dissecar compreensíveis artifícios panegíricos e retórico-literários que, diga-se em abono da verdade, não são muito significativos.

No entanto, a História foi sempre uma ciência humana. Joaquim Veríssimo Serrão, por exemplo, põe em dúvida alguns dos factos descritos pelos cronistas, designadamente por Rui de Pina, e que são estruturantes da verdade oficial que ainda hoje dominam o imaginário coletivo português:

Não é de crer que D. Afonso IV estivesse presente e que Inês implorasse o seu perdão, invocando os três filhos que eram vergônteas do tronco régio. Custa a aceitar que o monarca se prestasse a um diálogo patético com a mãe dos seus netos (Serrão 1979: 276).

Acontece que esse encontro e esse diálogo são clara e amplamente referidos na Crónica do rei D. Afonso IV 183: estamdo elRey em Momte Mor ho Velho (…) se veo a Cojmbra, homde ela estaua nas casas do Moesteiro de Santa Crara. Ha qual (…), ho veo

183 Aliás, é de salientar que o discurso do cronista não aponta para um “diálogo patético”, ao contrário do que afirma Veríssimo Serrão, mas antes para uma situação perfeitamente aceitável, mesmo nos dias de hoje: a colação entre o acusador e o acusado.

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receber a porta. Homde (…) pydyo misericordya e perdão a elRey (Rui de Pina MMIX: 366), como já foi referido.

Que motivos objetivos teria Veríssimo Serrão para duvidar desse encontro, para além da sua opinião pessoal e subjetiva, explicitadas em expressões como “não é de crer”, “custa a aceitar” e “diálogo patético”, muito mais típicas do romance pós- moderno do que da investigação historiográfica? Não será muito mais patética, para não sairmos do mesmo capítulo de Rui de Pina, a atitude titubeante do rei que ora decide matar Inês, ora decide retirar-se e perdoar-lhe, ora lava as mãos e deixa a decisão aos conselheiros?

Noutro exemplo, o que leva Veríssimo Serrão a estranhar a relação de Pedro e Inês? Atentemos nas suas palavras: “ Mas o facto não impediu que uma estranha paixão tivesse unido o príncipe e a dama castelhana, o que não passou despercebido a D. Constança” (Serrão 1979: 275)184

. Um príncipe, uma princesa, um casamento de conveniência e meramente formal, uma manceba: a fonte da estranheza do historiador repetiu-se frequentemente na corte portuguesa e pode ser verificada na generalidade das sociedades medievais. Portanto, não pode ser tão estranha quanto isso: a proliferação dessas relações de mancebia devia afastar qualquer perplexidade a um investigador tão conceituado.

Estes dois exemplos, apenas indicativos, justificam algumas incertezas dos caminhos da História.A questão de fundo que se coloca é a de compreender os critérios usados pelos intermediários do conhecimento do passado, sejam eles historiadores ou ficcionistas, para construírem a verdade oficial.

Importante deveras é reforçar que a verdade da História é, por vezes, parcelar, moldada por condicionalismos externos aos acontecimentos narrados. E, para além de poder ser parcelar, pode muito bem ser viciada: por exemplo, relativamente ao pai de D. Pedro, Rui de Pina trata assuntos importantes de forma sumária, dilui e omite acontecimentos marcantes, porque “não ficaria bem realçar as manifestações de odiosa vingança praticadas por um monarca de quem se pretendia traçar uma imagem abonatória” (Sousa 2005: 72).

Conhecidos que eram “a secura e os silêncios das fontes” (Sousa 2005: 17), assumir o passado sob a forma de escrita, ou seja, institucionalizar a memória, é sempre

184 Atente-se que Veríssimo Serrão Serrão se refere, apenas, ao relacionamento de que Constança teve conhecimento.

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uma tarefa arriscada. Assim, quer a cronística, quer a literatura e as visões literárias, todas elas afastadas do tempo dos factos, todas elas eivadas de convenções estéticas intrínsecas e de compromissos ético-religiosos extrínsecos, acabaram por ter um peso determinante na fixação histórica.

Além disso, esta é ainda uma época muito influenciada pela visão agostiniana do tempo, em que a memória é entendida como o presente do passado. Ou seja, a consciência medieval não faz ainda a destrinça entre o presente e o passado, não estando desperta para os anacronismos e para a intervenção crítica que se impõe, sobretudo, com o passar do tempo:

Esta ausência de perspetiva, fazendo com que o passado fosse percecionado em termos de presente, numa projeção constante deste naquele, leva a que a diferença seja compreendida através da divinização e da mitificação do desconhecido (Marinho 2004: 352).

Deste modo, não admira a permeabilização entre o relato histórico e o relato mítico, fictício, atribuindo aos acontecimentos e aos homens caraterísticas que os sobrevalorizam, dada a subordinação ao rei ou ao príncipe que patrocina o reconto do passado e dados até os preconceitos do escritor, juiz em causa própria. Aliás, um pouco mais tarde, em pleno Renascimento, praticamente apenas os feitos heróicos mereceram honras de tratamento literário, se não mesmo histórico - o relato do passado estava, assim, ao serviço do poder. A escrita limita-se então, praticamente, a relatar feitos e qualidades morais de personagens ilustres, ou ilustradas por conveniência, mantendo-se a tradicional enumeração de acontecimentos, ausente de preocupação crítica. Uma certa idolatria e uma certa escrita panegírica, a que não escaparam Garcia de Resende, António Ferreira e Luís de Camões, continuavam a construção dos preenchimentos deixados vazios pelos silêncios da História.

Ora, o espaço imenso para preencher não se compadece com a secura e o silêncio das fontes (Sousa 2005: 17). Assim, abre-se o caminho à subjetividade da interpretação, à valorização excessiva da tradição oral, à lenda e ao mito, condicionando a construção histórica. Então, a memória, o presente do passado, entronca, em grande medida, em possibilidades filtradas pela penumbra do tempo, correndo o risco de serem construídas sobre conveniências e (pre)conceitos individuais e coletivos.

No que diz respeito à fixação da estória de Pedro e Inês, facilmente constatamos a volatilidade dos factos e o meta-preenchimento de lacunas através da ficção literária.

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Sendo certas, portanto, as contingências da memória e a ausência de consenso universal relativamente à verdade factual, nem por isso a literatura sai desprestigiada pelo seu contributo para a construção da nossa memória coletiva e para a definição da especificidade da alma portuguesa. Não se pode é deixar de lembrar a contingência dessa memória.

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IV – DUAS FICÇÕES SOBRE PEDRO E INÊS