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Razões da escolha de Agustina Bessa-Luís e de Seomara da Veiga Ferreira

III. A ESCRITA DA HISTÓRIA

1. Razões da escolha de Agustina Bessa-Luís e de Seomara da Veiga Ferreira

O avanço da linha cronológica não fez esmorecer a proliferação das abordagens ao tema Pedro e Inês. Bem pelo contrário, parece que o passar dos séculos tem potenciado essas abordagens, cada uma delas procurando explorar omissões e supostas incongruências que o tempo não conseguiu esbater. E se o chamado romance histórico pode ter desabrochado para a plenitude do historicismo no início do século XIX, sobretudo com Walter Scott185, não é menos verdade que foi o romance histórico pós- moderno, a partir da segunda metade do século XX, que assumiu a transgressão de questionar, ficcionar e reescrever a História.

Agustina Bessa-Luís é considerada uma das mais consagradas figuras da literatura contemporânea. O romance histórico não constitui o motivo maior para o reconhecimento da sua excelência literária186, mas as suas Adivinhas de Pedro e Inês pontificam nessa vertente da sua obra, revelando-se um bom exemplo da contestação e da transgressão, por vezes bastante questionáveis, do romance histórico pós-moderno. Quando se fala em Pedro e em Inês, é incontornável ouvir o que tem a dizer uma das maiores vozes da literatura portuguesa contemporânea, Agustina.

Seomara da Veiga Ferreira tem formação superior em Ciências Históricas e repartiu a sua vida entre o ensino, a investigação e a publicação em revistas científicas da especialidade. Em simultâneo, transportou para a ficção essa sua formação, tornando- se talvez a maior referência portuguesa do romance histórico pós-moderno187. Inês de Castro – A Estalagem dos Assombros é um espelho do seu irrepreensível conhecimento histórico, que lhe permite trazer até nós a recriação das diversas matizes do quotidiano do século XIV. Ao mesmo tempo, o conflito interior e a angústia das suas personagens, de que a narradora principal é o melhor exemplo, desdobram-se numa atmosfera de

185 Walter Scott não foi o fundador deste género literário, mas a inovação da sua escrita constituiu a pedra angular para o romance de cariz historiográfico dos autores subsequentes. E, posteriormente, jamais este autor deixaria de ser uma referência para o estudo daquela literatura.

Em certa medida, o romance histórico transformou a História em Literatura, trazendo para o presente a vida quotidiana e as emoções do passado, procurando moralizar os costumes presentes.

186 Apesar de publicar, entre 1979 e 1987, sobretudo títulos que podem ser integrados no conceito vasto de romance histórico/biografia histórica: Fanny Owen (1979), Adivinhas de Pedro e Inês (1983),

Um Bicho da Terra (1984), A Monja de Lisboa (1985), A Corte do Norte (1987).

187 A sua notável obra de ficção é constituída pelos seguintes títulos: Memórias de Agripina (1993),

Crónica Esquecida d’El Rei D. João II (1995), Leonor Teles ou o Canto da Salamandra (1998), António Vieira – O Fogo e a Rosa (2002) e Inês de Castro – A Estalagem dos Assombros (2007).

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intriga bem marcada, típica do romance. Se à erudição histórica e literária da escritora associarmos o dinamismo da intriga e a narração na primeira pessoa188, feita pela Rainha Dona Beatriz, teremos certamente reunidas as melhores condições para a concretização daquilo que deve ser o romance histórico. Num tempo caraterizado por uma certa proliferação desenfreada de romances que se arvoram à designação de históricos, muitas vezes com o maior despeito pelo rigor documental disponível e pela memória coletiva, outras vezes dependentes da imaginação comprometida e preconceituosa de autores sensacionalistas, Seomara da Veiga Ferreira é um nome a indexar como representante maior do romance histórico português pós-moderno.

Seomara e Agustina, cada uma à sua maneira, não têm a pretensão de revelar a verdade histórica, mas procuram um caminho para unir as pontas soltas do discurso oficial, realçando as emoções individuais das personagens históricas. Ambas carregadas de dúvidas, que confessam explícita e recorrentemente ao longo dos dois romances aqui abordados189, procuram reconstituir o passado, apresentando novas possibilidades de interpretação para ocorrências duvidosas: Seomara, muito mais comedida e preocupada em mostrar o passado através do olhar humanizado e feminino das suas personagens históricas (o que acaba por trazer à narrativa alguma candura e altruísmo que a História, escrita normalmente por homens e centrada em frias conjunturas conflituosas, nem sempre reconhece); Agustina, muito mais arrojada e disponível para consagrar as suas próprias convicções, por vezes de uma forma desconexa. As duas autoras fazem parte de uma imensidão de vozes que contribuem para que a História se torne mais instável e discutível. Mas, ao contrário do que possa parecer, a consciência do passado sai enriquecida, porque a verdade resulta mais da problematização e do contraditório do que da cristalização da memória de um legado muitas vezes cinicamente construído.

Seomara e Agustina, no que diz respeito à história de Pedro e Inês, retocam a versão oficial do passado, procurando humanizá-lo e empenhando-se em apresentar uma face alternativa para a relação desses dois amantes e para o contexto em que ela se desenrolou. A primeira, em Inês de Castro – A Estalagem dos Assombros, através da

188 A narração na primeira pessoa, sobretudo quando é feita por personagens históricas, valida a narrativa e contribui decisivamente para a reposição da verdade histórica - o romance de Seomara tem esta marca distintiva.

189 Seomara, pela voz dos seus narradores; Agustina, pela sua própria voz que faz questão de não deixar diluir.

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focalização interna, de D. Beatriz e de D. Doce, num discurso afetuoso190, revela uma evidente anuência, relativamente à relação de Pedro e de Inês: manifesta o amor e a compaixão por Inês (“pobre e miserável Inês. Em Portugal não tendes ninguém que vos ame a não ser Pedro. Pedro e eu, Dona Doce, que sinto por ela, apesar de saber tudo, uma profunda piedade” – Ferreira 2007: 60); desculpabiliza a traição matrimonial de Pedro (“D. Pedro, o marido infiel – como se fosse o único” Ferreira 2007: 63); apelida de “escorpiões” os executores de Inês (“mataram (…) uma mãe, mas foi o filho devorado pelo pai” - Ferreira 2007: 84); protege Inês de eventuais ambições (“o meu filho não via que os Castros apenas se serviam da irmã pelo amor e ambição do trono” – Ferreira 2007: 92); mostra o amor filial de Pedro à mãe (“ele adorava a mãe – Ferreira 2007: 101); regista o amor de Inês por Pedro (“ela amou e morreu por isso” – Ferreira 2007 114), etc. Ou seja: apesar de Seomara apresentar Inês de Castro como um fator de desequilíbrio da estrutura familiar de D. Pedro, não a diaboliza, mas antes a integra no abraço centrípeto que é a paixão, onde somos mais vítimas do que carrascos.

Por outro lado, Agustina, em Adivinhas de Pedro e Inês, através da focalização omnisciente, faz brotar um discurso sarcástico, corrosivo e condenatório dos dois apaixonados: segundo Agustina, Pedro, que havia concretizado laços matrimoniais com D. Branca e, provavelmente, com Inês, antes de os assumir com D. Constança, ignora as vinculações “porque há de transgredi-las todas; mito-clã-família-tradições, tudo isso ele vai sacudir dos ombros” (Bessa-Luís 1983: 74); a paixão de Pedro e de Inês é uma “conjuração poética e demoníaca” (Bessa-Luís 1983: 194); D. Beatriz era, para o filho, D. Pedro, “severa e intimidante” (Bessa-Luís 1983: 130); Pedro é um biltre (“como acontece com os homens mais miseráveis (…) o Infante atuava mais como mendigo do que como rei” - Bessa-Luís 1983: 212); Inês é calculista e tenebrosa (“esta Inês (…) foi decerto prodigiosa de malícia e ternas artes” – Bessa-Luís 1983: 235); Inês teria sido colocada na corte portuguesa para dar “início à perversão e à desordem” - Bessa-Luís 1983: 226); “possivelmente ela nunca amou D. Pedro” (Bessa-Luís 1983: 239); Pedro congeminou a morte de Inês (“Pedro desejara, como se deseja o pecado, a morte de Inês” – Bessa-Luís 1983: 126), etc. Ou seja: Agustina, para quem, “no seu sentido

190 Facilmente constituíriamos um campo lexical organizado em torno da palavra afeto. Para não sairmos das duas primeiras páginas do texto, registamos as seguintes expressões: “minha querida”; “meiga, quase apaixonada”; “sempre fiel, cuidadosa, presa a mim como uma mãe”; “doces momentos da nossa intimidade”; “minha querida”.

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fisiológico, o amor é uma carência que não oferece dificuldade saciar” (Bessa-Luís 1983: 193), faz de Pedro e de Inês dois seres infames, cada um deles à procura da sua egoística, inconfessável e idêntica satisfação191 e que acabam por sucumbir, vítimas das suas excessivas tramas: Inês é assassinada em Coimbra e Pedro morre de “um flato maligno (…) que não afasta a ideia de envenenamento” (Bessa-Luís 1983: 230).

Escolher Seomara e Agustina é optar por duas autoras ainda vivas, ambas nascidas na primeira metade do século XX, com uma diferença de idade de apenas vinte anos. E, apesar dessas linhas de aproximação, elas posicionam-se de uma maneira bastante díspar, quer no que diz respeito aos limites da ficção histórica, quer no que diz respeito à fidelidade às fontes disponíveis. Apesar da ficção romanesca, Seomara utiliza uma técnica narrativa que procura espelhar a narrativa historiográfica (por exemplo, a narração é feita pela mãe de Pedro e pela sua aia confidente, quase sob a forma de diário; a datação é da Era de César, utilizada na altura; as referências históricas são coerentes com a cronística; a cor epocal é uma preocupação permanente – nas descrição dos terramotos, nas receitas culinárias, na perseguição aos judeus, etc.). Ao invés, para Agustina, “toda a crónica petrista parece eivada de mentiras” (Bessa-Luís 1983: 67), e a História mente mais do que a Literatura192. Nestes termos, Agustina tem muita mais facilidade em reescrever o discurso historiográfico, defendendo, por exemplo, que o casamento de Pedro com Inês se realizou antes de Constança chegar a Portugal (“o príncipe tinha desposado Inês Peres antes de contrair matrimónio com D. Constança” – Bessa-Luís 1983: 208), ou sugerindo que o pai de D. Pedro era homossexual (“talvez constasse que Afonso IV, educado na corte dos trovadores alambicados, fosse inclinado aos rapazes” (Bessa-Luís 1983: 226) e, por isso, é que o que mais lhe agradou do espólio do Salado “foi um jovem mouro” (Bessa-Luís 1983: 226). Por outro lado, é típica de Agustina a tendência para doutrinar o leitor, no que diz respeito à História, à Literatura, à Filosofia e à Estética, por exemplo.

Escolher Seomara ou Agustina é, respetivamente, aderir a uma visão ternurenta e, nas suas linhas estruturantes, historicamente ortodoxa ou preferir uma visão sarcástica

191 “Idêntica satisfação” porque, segundo Agustina, “sexo ou dinheiro têm o mesmo significado” (Agustina 1983:194). Ora, no contexto das Adivinhas de Pedro e Inês, não parece descabido considerar que a pulsão sexual de Pedro (o infante vive muito da “satisfação de necessidades primárias, como a fome e o sexo” – pág. 116) tem o seu paralelo no desejo de Inês se tornar rainha (ela não resiste a “um capricho desesperado cujo limite só podia ser um trono” – pág. 116).

192 “Não sei por que se dá mais crédito à História arrumada em arquivos, do que à Literatura divulgada como arte dos poetas. Mentem estes menos do que os outros” (Bessa-Luís 1983: 132).

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e historicamente mordaz. Mas estas focalizações paralelas não anulam aquilo que de essencial liga as duas escritoras: no que diz respeito a Pedro e a Inês, ambas confessam que não sabem muita coisa. E esta sinceridade narrativa faz, por um lado, aceitar que os romances não são escritos para explicar a História, mas para a problematizar e, por outro lado, constatar que a visão do romancista (e, quiçá, do historiador) não é mais do que uma proposta para que o leitor interprete e construa o seu próprio legado, a partir de um, por vezes, insondável universo de referências.