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Capítulo 3: Da encefalite letárgica ao TDAH: emergência e

3.1 A história oficial do TDAH

Primeiramente, gostaríamos de precisar o que entendemos por história oficial. Quando utilizamos essa expressão, estamos nos referindo aos precedentes históricos do TDAH que nasceram da visão

biomédica, contados por especialistas da neurologia ou da psiquiatria infantil. Esses pesquisadores geralmente buscam um discurso de legitimidade biológica e de localização cerebral do transtorno (CALIMAN, 2010). Em outras palavras, a história oficial do TDAH é aquela encontrada em livros e artigos que tentam retraçar as origens do transtorno por meio do discurso hegemônico sobre ele.

De acordo, então, com a história oficial, os primeiros escritos que se referem à falta de atenção, no mesmo sentido do diagnóstico atual do TDAH, datam de 1798, e são de autoria do médico Alexander Crichton. Em seu artigo “Inquietações Mentais”, Crichton descreveu as características essenciais do subtipo desatento do TDAH, que lembram, por sua vez, os critérios do DSM-IV (FITZGERALD; BELLGROVE; GILL, 2007). Para ele, essas características consistiam em um problema nervoso que poderia nascer com o indivíduo ou ser o efeito de uma doença acidental. Se nascessem com a pessoa se tornariam evidentes desde cedo, e teriam um efeito muito ruim, tornando-a incapaz de prender sua atenção por muito tempo em um objeto. Mas raramente elas se desenvolveriam a ponto de impedir qualquer instrução. Além disso, acreditava que essas características tendiam a diminuir com a idade.

Na segunda metade do século XIX, foram publicados vários textos sobre “doenças psíquicas”, “doenças mentais” ou “insanidade” em crianças. Desvios de comportamento eram descritos por médicos da época e diagnosticados de acordo com as classificações utilizadas para os indivíduos adultos (KANNER, 1959). A loucura antes da puberdade era considerada rara, pois acreditava-se que a mente da criança era instável demais para produzir mais do que efeitos transitórios (WALK, 1964). As doenças relatadas geralmente eram reconhecidas como resultados irreversíveis da hereditariedade, degeneração, masturbação excessiva, trabalho excessivo ou preocupação religiosa. Além disso, no início do século XX, depois que a frequência escolar se tornou obrigatória em vários países, os educadores se tornaram mais preocupados com problemas de aprendizagem e de conduta entre os seus alunos (KANNER, 1959), problemas que foram se tornando objetos da área da psiquiatria.

Ainda no século XIX, na década de 1830, um psiquiatra francês, Félix Voisin, elaborou quatro categorias de crianças com necessidades especiais: 1) o débil mental, que se encontra entre a imbecilidade e a normalidade; 2) os que nascem normais, mas que adquirem um rumo vicioso por meio da educação deficiente; 3) os que mostram características anormais desde o nascimento, tais como arrogância excessiva, paixões incontroláveis e propensão para o mal, que podem ser

capazes de grandes conquistas ou grandes crimes; 4) aqueles que nascem de pais insanos e, portanto, segundo o autor, predispostos a doenças nervosas ou mentais. Para cada um desses casos, Voisin propunha um tratamento diferente, que deveria ser individual (WALK, 1964).

A partir de então, o diagnóstico que hoje conhecemos como TDAH já foi descrito como possível de ser identificado por uma grande variedade de nomes, como: encefalite letárgica (sequelas), dano cerebral mínimo, paralisia cerebral mínima, retardo leve, disfunção cerebral mínima, hipercinesia, desenvolvimento atípico do ego e transtorno de déficit de atenção (TDA). Alguns autores defendem que essas doenças descrevem um conjunto de sintomas muito parecidos entre si, caracterizado por vários desvios da infância. Dentre esses, podemos destacar: baixo desempenho escolar, extroversão extrema, ímpetos de comportamento violento, incapacidade de completar tarefas, ladroagem, distúrbios nos padrões de sono, moralidade inconsistente com a idade, esquecimento (RAFALOVICH, 2001), falta de atenção, dentre outros.

Enquanto alguns autores localizam em Crichton o início do interesse em crianças que apresentavam baixa capacidade de atenção e hiperatividade, encaixando essas características em um quadro nosológico, outros acreditam que esse interesse é mais recente, datando do início do século XX. Em 1901, George Frederick Still relatou uma série de 20 casos de crianças com problemas de hiperatividade, falta de atenção e dificuldades na inibição de suas vontades, como o próprio autor descrevia (STILL, 2006 [1902]). Descreveu também sintomas de agressividade, desafio, resistência à disciplina e desonestidade, que hoje se enquadrariam no diagnóstico de Transtorno Desafiador Opositivo ou Transtorno de Conduta, considerados comorbidades relativamente comuns em crianças com TDAH (FITZGERALD; BELLGROVE; GILL, 2007). Segundo Rafalovitch (2001), Still foi o primeiro a ligar a noção de debilidade mental à moralidade de crianças, embora ele não tenha fornecido um diagnóstico oficial para estes comportamentos.

Para Rafalovitch, a discussão de Still sobre controle moral em crianças como um problema médico surgiu a partir do ápice da discussão sobre imbecilidade moral na época. Para Still, a moralidade individual viria com o desenvolvimento, e seria originada a partir de funções orgânicas do cérebro. Além disso, defendia que as crianças com controle inadequado de suas faculdades morais não eram intelectualmente inferiores (STILL, 2006 [1902]). Em outras palavras, Still defendia que as crianças com dificuldade de inibição de suas vontades não apresentavam inteligência inferior às demais.

Mas foi somente alguns anos mais tarde que os sintomas de hiperatividade e falta de atenção foram relacionados e considerados como fazendo parte da mesma patologia. Para Timimi (2002), essa relação se deu com o surgimento do diagnóstico do dano cerebral mínimo, após as epidemias de encefalite. A encefalite letárgica, também conhecida como doença do sono7 ou doença de Von Economo, em homenagem ao seu descritor Constantin Von Economo, é uma forma atípica de encefalite, cujas causas ainda não são totalmente conhecidas. Essa doença alcançou proporções epidêmicas entre 1916 e 1927 (DALE; CHURCH; SURTEES et al., 2004), principalmente na América do Norte e na Europa, levando à morte grande parte das pessoas acometidas.

A encefalite letárgica se caracterizava por letargia e sonolência intensas, alucinações e febre. As pessoas que sobreviviam apresentavam alguns efeitos residuais da doença, conhecidos como “comportamentos residuais da encefalite”, ou pós-encefalite. Dentre esses comportamentos, podemos citar: inversão do padrão de sono, instabilidade emocional, irritabilidade, teimosia, mentira, ladroagem, desasseio, prejuízos na memória e na atenção, tiques, depressão, controle motor pobre e hiperatividade geral (RAFALOVICH, 2001). Por se tratar de uma patologia residual, advinda, acreditava-se, de uma infecção (na época pensava-se que a encefalite estava relacionada com a epidemia de influenza), os sintomas foram considerados como tendo origens fisiológicas, localizáveis no cérebro.

Conforme será visto mais detalhadamente no capítulo 4, na década de 1930 foi descoberta a ação dos psicoestimulantes na redução da inquietação, da hiperatividade e dos problemas de comportamento em crianças. Essa descoberta deu margem para o início das teorias sobre lesões orgânicas no cérebro, que causariam hiperatividade e falta de atenção em outras crianças que não haviam sofrido de encefalite, levando à criação do diagnóstico de “dano cerebral mínimo” (TIMIMI, 2002).

Foi também no início dessa mesma década que surgiu o termo “psiquiatria infantil”, introduzido pela primeira vez, em sua forma alemã, por Tramer como parte do nome de uma revista, Kinderpsychiatrie. Em 1935, Leo Kanner escolheu “Child Psychiatry” como título de um livro. Esse termo foi legitimado em 1937, no

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primeiro congresso internacional de psiquiatria infantil, em Paris (KANNER, 1959).

Os anos se passaram e não foram encontradas lesões cerebrais orgânicas em crianças agitadas. Dessa forma, a partir da década de 1960, o termo “dano cerebral mínimo” foi sendo cada vez menos usado. Apesar do abandono dessa hipótese, e com o aumento do interesse em síndromes definidas comportamentalmente, estudiosos passaram a acreditar que essa síndrome era causada por algum tipo de disfunção cerebral, não necessariamente uma lesão, portanto foi chamada de “disfunção cerebral mínima”. Na segunda edição do DSM, publicada em 1968, a condição foi chamada de “reação hipercinética da infância” (TIMIMI, 2002).

Na terceira edição do DSM, no início da década de 1980, apareceu um distúrbio chamado “transtorno do déficit de atenção” (TDA)8 (APA, 1980). Essa versão do manual deu destaque aos aspectos clínicos do distúrbio, ou seja, aos sintomas, e enfatizou a falta de atenção como fator determinante para o diagnóstico (FITZGERALD; BELLGROVE; GILL, 2007; SILVA, 2009).

A configuração atual do transtorno, o transtorno de déficit de atenção com hiperatividade, apareceu na quarta edição do DSM (APA, 1994). Os critérios para o diagnóstico foram divididos em três subtipos: um tipo predominantemente desatento, um tipo predominantemente hiperativo e/ou impulsivo, e o tipo combinado. Vale ressaltar que a mudança do DSM-III para o DSM-IV, com critérios mais abrangentes, aumentou a prevalência do transtorno em aproximadamente dois terços, uma vez que os novos critérios diagnósticos englobam grande parte das crianças com problemas de aprendizagem e comportamento na escola (TIMIMI, 2002).

Segundo Rafalovich (2001), algumas perpectivas da construção da história do TDAH assumem que essa condição é uma condição real e que existe há muito tempo. Foi só recentemente que se tornou conhecida de forma adequada. Entrentanto, o autor ressalta que os pesquisadores que formularam a nomenclatura “encefalite letárgica” (ou até as outras nomenclaturas relacionadas ao TDAH), nunca se perguntaram sobre as variáveis sociais que podem afetar o comportamento infantil. E hoje, o discurso dominante argumenta que a origem dos desvios na infância podem ser melhor entendidos através da análise dos cérebros das crianças, mais do que seu ambiente social. Sendo assim, a partir da

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próxima seção, vamos adentrar na análise dos artigos selecionados, e veremos de que forma os discursos e as hipóteses explicativas contidas neles foram se modificando ao longo do tempo, até chegarmos ao panorama atual, descrito no capítulo 2.

3.2 Descrição das principais mudanças ocorridas nos artigos ao