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Capítulo 4: Medicamentos estimulantes: uso e explicações em casos de

4.2 O surgimento do metilfenidato como tratamento principal do

4.2 O surgimento do metilfenidato como tratamento principal do TDAH

Antes de falar sobre o metilfenidato, é importante fazer um resgate do uso de psicotrópicos de maneira geral. Para Rose (2005), o nascimento da indústira moderna de psicotrópicos se deu no início da década de 1910, quando a Bayer15 colocou no mercado o fenobarbital, que age como sedativo. O fenobarbital faz parte de uma classe de medicamentos chamada barbitúricos, que são depressores do sistema nervoso central. Por essa razão, produzem uma ampla gama de efeitos, desde sedação leve até anestesia total. São efetivos como ansiolíticos, hipnóticos e também como anticonvulsivantes, porém provocam um

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Bayer é uma empresa farmacêutica alemã, fundada em 1863 por Friedrich Bayer e Johann Weskott. Inicialmente era uma fábrica de corantes artificiais para tecidos, porém logo se tornou famosa com o lançamento da aspirina, em 1899.

efeito compensatório no organismo, causando tolerância16. Além disso, os barbitúricos podem causar ainda dependência, além de sua janela terapêutica ser estreita, ou seja, a margem entre a dose necessária para se ter efeito terapêutico e a dose letal é pequena, podendo levar a intoxicações.

As dificuldades e limitações no uso dos barbiturados levaram a uma procura por outros fármacos que pudessem ser utilizados em casos de doenças mentais. Assim, no início da década de 1950, foi lançada a clorpromazina, considerada um marco no tratamento com psicotrópicos. Inicialmente foi desenvolvida como anti-histamínico e, ao testá-la para este fim, os pacientes relatavam que ficavam mais calmos. A partir de então sugeriu-se utilizar a clorpromazina como um tranquilizante (MOREIRA; GUIMARÃES, 2007). Caponi (2011) afirma que desde o início da utilização desse fármaco, a busca por novos psicotrópicos é constante e que essa é uma das características da psiquiatria biológica. Segundo a autora, essa psiquiatria, inaugurada no DSM-III, não é uma nova forma de entender a psiquiatria, pois resgata velhas ideias que já haviam sido defendidas há mais de um século, especialmente por Morel e Kraepelin. Para eles, as doenças mentais teriam origem biológica, hereditárias ou cerebrais.

Depois de um tempo de uso da clorpromazina, alguns pacientes começaram a desenvolver rigidez corporal, movimentos anormais e involuntários das mãos e bocas e até protrusão da língua, o que caracteriza o que conhecemos por discinesia tardia, que nem sempre melhora após a descontinuação do medicamento. O uso prolongado da clorpromazina causa danos irreversíveis aos sistemas neurais relacionados à dopamina.

O descobrimento da relação entre a clorpromazina e a via dopaminérgica auxiliou a fundamentar o argumento que a esquizofrenia, o transtorno bipolar e a depressão são causados por um desequilíbrio na transmissão neural. Assim, novos fármacos que interagem com receptores dopaminérgicos foram sendo desenvolvidos, tais como a flufenazina e o haloperidol, na tentativa de diminuir os efeitos adversos causados pela clorpromazina, principalmente a discinesia tardia. Além disso, esforços foram feitos para o desenvolvimento de fármacos que atuassem em outros sistemas de neurotransmissores (ROSE, 2005).

Assume-se que todos os psicotrópicos que são utilizados hoje exercem seus efeitos por meio da estimulação ou inibição da

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Provocar tolerância quer dizer que o organismo necessita de dosagens cada vez mais altas do medicamento para produzir o mesmo efeito fisiológico.

neurotransmissão. Além da dopamina, outros alvos são os transmissores GABA e os serotoninérgicos e noradrenérgicos. A busca por esses compostos levou à identificação do diazepam (Valium®), um fármaco da classe dos benzodiazepínicos, que reduz a agitação, porém sem apresentar efeitos sedativos severos, com menos possibilidade de overdose letal. O diazepam foi introduzido nos anos de 1960, porém somente na década de 1970 se descobriu seu mecanismo de ação. Foi também nessa década que se descobriu que o diazepam causa dependência e até vício (ROSE, 2005). Em 1969, o Valium® era o medicamento mais prescrito dos Estados Unidos, porém somente um terço das prescrições era para pessoas com diagnóstico de algum transtorno mental, ou seja, a maior parte era destinada a indivíduos com sofrimento psíquico, problemas psicossociais ou crises existenciais, sem um diagnóstico psiquiátrico (HORWITZ, 2007).

Em relação aos neurotransmissores, especialmente a serotonina, na década de 1950, surgiram os inibidores da enzima monoamina oxidase (IMAO) e os antidepressivos tricíclicos. Os fármacos inibidores da MAO bloqueiam a enzima monoamina oxidase, responsável pelo metabolismo da noradrenalina, dopamina e serotonina, aumentando a concentração dessas substâncias na fenda sináptica. Já os antidepressivos tricíclicos, como a imipramina (Tofranil®) e a amitriptilina (Tryptanol®) atuam no bloqueio dos transportadores da noradrenalina, dopamina e serotonina. Ambas as classes de medicamentos, além de permitirem uma maior concentração de serotonina na fenda sináptica, agem também em outros sistemas de neurotransmissores, e esses são frequentemente citados como a causa de seus muitos efeitos adversos.

Outro fato que merece destaque foi o desenvolvimento dos fármacos inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS), na década de 1970. A fluoxetina (Prozac®) foi o primeiro fármaco dessa classe a ser lançado no mercado. Diferentemente dos inibidores da MAO e dos tricíclicos, os ISRS apresentam efeitos adversos mais brandos, o que os tornaram muito populares. Em 1994, o Prozac® era o segundo medicamento mais vendido no mundo (HORWITZ, 2007). Pode-se dizer que a fluoxetina abriu espaço para outros medicamentos psicotrópicos, e tornou aceitável que condições de vida, e não apenas doenças mentais, fossem também tratadas por meio de medicamentos psicotrópicos.

E essa característica pode ser observada também na formação dos novos profissionais. Bittencourt (2010) analisou como os antidepressivos apareceram nas diferentes edições de um dos livros de

farmacologia mais utilizados nos cursos de medicina, o “Goodman e Gilman: as bases farmacológicas da terapêutica”. A autora afirma que foram surgindo, no livro-texto, indicações diversas para esses medicamentos, não somente para o tratamento de distúrbios do humor, categoria que inclui o diagnóstico de depressão. Sua hipótese é a de que os antidepressivos são fármacos sintomáticos, ou seja, realizam suas ações por meio de uma substância que está presente em quase todo o nosso corpo, a serotonina. Se a substância está presente em todo o organismo, medicamentos que possuem relação com ela exerceriam efeitos também em outros locais além do cérebro. Bittencourt afirma ainda que é provável que, em breve, os “antidepressivos” deixem de ser chamados dessa forma, justificando e consolidando o seu uso em diferentes situações clínicas. Isso possibilita que, já na formação básica do estudante, futuro clínico, os medicamentos psicotrópicos sejam encarados como medicamentos corriqueiros e amplamente utilizados.

Dentro desse cenário, podemos situar o metilfenidato, um fármaco da classe dos estimulantes, considerado o medicamento de primeira escolha e o mais utilizado no tratamento do TDAH, desde o início de sua comercialização, no final dos anos 50. Trata-se de um derivado da piperidina, que tem estrutura similar à das anfetaminas. A hipótese de seu funcionamento é a de que o benefício terapêutico pode ser resultante do aumento que o metilfenitado produz na dopamina e noradrenalina no sistema nervoso central (CASTRO; MARTIN; MAYORAL et al., 2005).

Os primeiros efeitos dos estimulantes em crianças foram relatados em 1937 pelo psiquiatra Charles Bradley. Ele testou um fármaco chamado benzedrina, uma forma racêmica da anfetamina, em 30 crianças com doenças do comportamento (BRADLEY, 1937). Bradley relatou que, após receberem benzedrina, 14 crianças obtiveram boa resposta, com melhoras nas tarefas escolares que apareceram, segundo ele, já no primeiro dia em que a benzedrina foi administrada. Logo depois, Bradley e outros autores publicaram relatos clínicos de crianças com sintomas parecidos aos do TDAH, que tiveram uma melhora do quadro durante o tratamento com anfetaminas e com o metilfenidato (FINDLING, 2008).

Apesar do descobrimento dos efeitos dos estimulantes em crianças com desatenção e hiperatividade, esses fármacos não foram largamente utilizados até o final dos anos de 1950, provavelmente em razão da hegemonia da psicanálise na sociedade durante os anos de 1940 e 1950. A psicanálise era resistente à ideia de que o comportamento

hiperativo tinha uma base biológica (FITZGERALD; BELLGROVE; GILL, 2007).

O metilfenidato foi sintetizado em 1944 por um químico chamado Leandro Panizzon, da empresa Ciba. A substância foi testada no próprio pesquisador e em sua esposa, Margarita, ou Rita. Foi registrado um efeito estimulante e Rita passou a utilizá-la com regularidade antes de jogar tênis. A princípio, o metilfenidato foi utilizado somente por adultos, no tratamento de cansaço intenso, quadros depressivos e episódios de confusão da velhice (BLECH, 2005). Foi somente nos anos sessenta que foram apresentados resultados segundo os quais o metilfenidato produzia um efeito considerável nos escolares com problemas de aprendizagem (BLECH, 2005). Esses relatos iniciais levaram a estudos randomizados controlados, incluindo o MTA – Multimodal Treatment Study (Estudo de Tratamento Multimodal), um ensaio de 14 meses, que avaliou a eficácia e tolerabilidade a longo prazo do metilfenidato em 579 crianças com TDAH. O MTA sugeriu que os benefícios desse medicamento continuaram durante os 14 meses de estudo (MTA, 1999). Foi a partir desses estudos que os guidelines de associações de psiquiatria e de pediatria, tanto nacionais quanto estrangeiras, passaram a considerar os estimulantes como o tratamento de primeira escolha em casos de crianças com TDAH (FINDLING, 2008).

Em 1970, entre 200.000 a 300.000 crianças norte-americanas tomaram medicamentos modificadores de comportamento. Desde então, essa cifra tem subido de forma constante, tanto nos Estados Unidos como em vários outros lugares do mundo. Em 1993, na Alemanha, foram consumidos 34 quilogramas de metilfenidato e, em 2001, esse número subiu para 693 quilogramas. Em 2005, aproximadamente cinco milhões de crianças em idade escolar tomavam medilfenidato nos Estados Unidos (BLECH, 2005).

A fabricação mundial de metilfenidato aumentou mais de 580% em 9 anos, passando de 2,8 toneladas em 1990 para 19,1 toneladas em 1999. Em 2006, foram quase 38 toneladas produzidas no mundo. Desse total, 82,2% são consumidas nos Estados Unidos (ONU, 2008). No Brasil também é possível observar essa tendência de aumento no consumo. No ano 2000, foram consumidos no país 23 quilogramas de medilfenidato e, em 2006, o Brasil fabricou 226 quilogramas e importou mais 91 quilogramas do medicamento (ORTEGA; BARROS; CALIMAN et al., 2010).

Esses números nos levam a pensar sobre o papel da própria indústria farmacêutica, produtora do metilfenidato, no grande aumento

de seu consumo nas últimas décadas. Segundo Marcia Angell (2007), de 1960 a 1980, nos EUA, as vendas de medicamentos sob prescrição médica eram estacionárias, enquanto que entre 1980 e 2000, elas triplicaram. Além disso, desde o início da década de 1980, a indústria farmacêutica constantemente aparece como a indústria mais lucrativa dos EUA.

Em relação aos estudos de eficácia de medicamentos, de uma maneira geral, desde essa mesma década, de 1980, os laboratórios farmacêuticos estão envolvidos em todos os processos da pesquisa, do planejamento à discussão dos resultados. Esse envolvimento da indústria nos ensaios clínicos faz com que a tendenciosidade de tais estudos seja não apenas possível, mas extremamente provável. Para Angell (2007) “os pesquisadores não controlam mais os ensaios clínicos; os patrocinadores os controlam” (p. 117).

O próprio MTA (1999), por exemplo, já foi apontado como um estudo com sérios problemas metodológicos, sonegação de dados cruciais e relatos de achados que não refletem verdadeiramente a efetividade das intervenções comportamentais para tratar o TDAH (KEAN, 2004). De acordo com Kean (2004), os resultados do MTA são usados para promover o uso da medicação e a crença de que esse tipo de tratamento é mais eficaz do que mudanças comportamentais, com os pais ou intervenções educacionais. Para o autor, a promoção dos achados selecionados do estudo do MTA influenciou a área médica a acreditar que o metilfenidato funciona e é a melhor opção de tratamento. Entretanto, a complexidade do estudo e suas interpretações são controversas.

4.3 O tratamento de crianças desatentas e hiperativas desde 1950