• Nenhum resultado encontrado

A história oral de vida e a entrevista

4 CONTEXTUALIZANDO O LOCAL E A POPULAÇÃO: a trajetória metodológica

4.1 A história oral de vida e a entrevista

A partir do eixo temático, elaborou-se um roteiro com algumas perguntas direcionado às 46 mulheres apenadas, que tinham como preocupação central, evitar induzir as respostas das participantes e abordar aspectos relacionados com sua condição de encarcerada, do presídio, da sociedade, da família, do delito cometido, da maternidade e dos filhos.

Embora não tenha sido intenção nossa “engessar” a conversa com essas mulheres, consideramos que um roteiro, com algumas perguntas, poderia contribuir positivamente para a coleta de informações, uma vez que o tempo destinado a cada entrevista não era indefinido, nem ilimitado, ao contrário, era criteriosamente controlado pela direção.

Havia horários para as trancas, para o almoço das detentas e, inclusive, para a minha saída de dentro do pavilhão ou das celas. Mesmo assim, raramente ocorria o fato de uma ou outra mulher não querer colaborar com a entrevista ou responder de modo simples e rápido, a fim de apressar sua conclusão.

As questões constantes do roteiro foram elaboradas com o propósito de situar as histórias de vida das entrevistadas, de modo a estabelecer uma conexão com as experiências pré-cárcere e durante o cumprimento da pena. Assim, tais questões norteadoras funcionaram como perguntas de corte, que significam de acordo com Meihy (1996, p. 19), “o elemento fundamental e comum pelo qual devem passar todas as entrevistas”. Desta forma, disponibilizamos a seguir o referido roteiro:

1) Qual sua idade?

2) De qual cidade você é?

3) Há quanto tempo está presa? Já havia sido presa antes?

4) Você poderia falar sobre como são as coisas em relação à rotina de vocês, horários, atividades realizadas durante o dia?

5) Existem muitas mulheres ocupando o mesmo espaço. Fale um pouco sobre a convivência entre vocês?

6) Você se lembra do que sentiu quando foi presa? O que passou pela sua cabeça naquele momento, seus sentimentos?

7) Quais as maiores dificuldades que você enfrenta na prisão? 8) Recebe visitas? De quem?

9) Você poderia falar um pouco sobre seu relacionamento com sua família?

10) Quais foram as consequências da prisão para sua vida? O que mudou em relação à família, aos amigos, aos filhos, ao companheiro?

11) Como acha que a sociedade e as pessoas a receberão, quando sair daqui?

12) Você poderia falar um pouco sobre seus planos, seus sonhos, sobre o que quer fazer quando sair daqui?

13) Na sua opinião, como a sociedade e as pessoas de fora veem a mulher detenta?

Um pressuposto implícito na ideia de entrevista associada à história de vida é a consciência de que, para além das perguntas ali constantes, outros questionamentos certamente surgem ao longo da interação, enriquecendo o conteúdo abordado, como de fato ocorreu. Além disso, outros temas, não indicados através das perguntas, surgem naturalmente nas narrativas, o que pode apontar para fatos ou situações relevantes para a pesquisa.

Ao buscar recompor as histórias de vida das mulheres pesquisadas através dos relatos orais, estava ciente do importante papel reflexivo do procedimento, que levaria esses sujeitos a pensar sobre determinado tema, a partir dos questionamentos a eles direcionados, sem que, com isso, houvesse manipulação ou intervenção nas suas considerações. Ao contrário, para compreender e agregar mais dados às suas histórias de vida foi importante colocar questões ligadas ao tema da pesquisa, mas deixando que a entrevistada falasse livremente sobre o tema suscitado.

Essa escolha metodológica permitiu o contato com as falas dos próprios sujeitos pesquisados. Dessa forma, a entrevista em profundidade permitiu que as falas das presas fossem conservadas dentro dos aspectos relevantes à descrição e à compreensão da carreira desviante. A história de vida, tomada aqui em sentido amplo, devolveu a palavra a quem não a tinha ou tinha poucos canais de comunicação para relatar a sua experiência de vida. Conforme Marre (1996, p. 119):

Não basta coletar histórias de vida e publicá-las para ilustrar uma realidade social de modo realista... Na prática o que se expressa na linguagem das histórias de vida relacionadas com a vivência histórica de determinados grupos sociais, é algo relativo a fatos históricos, estratégias, juízos de valores. É, também, algo relativo a relações de poder, dominação.

As presas, com as suas falas, reconstruíram os acontecimentos por elas vivenciados fora e dentro da prisão, relatando a experiência comum, sofrida e amarga, em uma instituição prisional. É uma marca, de acordo com depoimento de uma delas, levada à eternidade.

Conforme já ressaltado, para a “seleção” das entrevistadas, não houve preocupação estatística em submetê-las à classificação por tipo de crime ou por tempo de pena. Assim, as interlocutoras não foram escolhidas propositalmente, mas no decorrer da interação entre pesquisadora e pesquisadas. Apesar disso, alguns fatores explicitados nas falas de algumas apenadas acabaram contribuindo para compor o grupo de mulheres entrevistadas, entre os quais destacamos: “prestígio porque esse trabalho também é nosso”, “quero participar”, “vontade de desabafar”, “ir com a cara da pesquisadora”, “dizer tudo o que a gente passa aqui”. Algumas pediam que outras me dissessem que queriam ser entrevistadas e não tinham coragem de falar.

É importante mencionar que, das 37 entrevistas com as mulheres-mães presas, foram selecionadas 22 histórias de vida para a análise do objeto de estudo presente nesta tese, uma vez que estes depoimentos selecionados continham elementos que mais se aproximavam do objeto a ser estudado.

Na análise e avaliação da pesquisa foram contemplados e discutidos diferentes aspectos presentes nos ambientes prisionais femininos; vale ressaltar, contudo, que, para este estudo, nosso foco foi o trinômio violência-tráfico-maternidade, sem perder de vista as relações de gênero que se estabelecem nesses ambientes, tendo como “pano de fundo” a política penitenciária do Estado da Paraíba. Destacamos, assim, o tempo de permanência dos bebês junto às mães; a visitação às mulheres-mães-presas; a separação entre mãe e filho; o acolhimento institucional dos filhos; as relações familiares (família de origem e família constituída).

Uma grande questão teórica e metodológica foi à elaboração, ainda em construção, da concepção de “maternidade vigiada-controlada” de que tratamos neste estudo, ou seja, a experimentação da vivência da maternidade inscrita em limites institucionais de ambientes prisionais, ora sabidamente conhecidos pela rigidez da política prisional.

Este debate, embora não concluso, teve início desde os primeiros contatos com algumas apenadas na Vara de Execução Penal de João Pessoa que se mostrou um elemento desencadeador para uma elaboração mais minuciosa do processo de construção desta tese.

As entrevistas iniciavam-se com um relato sobre a vida das mulheres até sua vinda para a prisão e, a partir daí, surgiam perguntas no contexto das questões apresentadas. Procurava-se retomar os assuntos “vida anterior” e “vida na prisão”, sempre que algum dado ficava incompleto ou caía num círculo vicioso.

Em algumas entrevistas, foi possível o uso do gravador, o que facilitou sobremaneira o trabalho de captação de informações, além de garantir a integralidade dos depoimentos das entrevistadas. Mas, em outras entrevistas, este recurso não foi utilizado, uma vez que a situação não o permitia - muito barulho ou presença próxima de outra detenta - ou ainda rejeição por parte da entrevistada. No entanto, objetivando não perder detalhes importantes das conversas, eram realizadas, de forma rápida, algumas anotações para que, na disposição de um de um tempo maior, fosse preparado o registro integral tanto dessas entrevistas quanto daquelas que haviam sido gravadas num ambiente mais propício.

Além da história de vida, a técnica de observação também foi utilizada constantemente neste estudo, pois se revelou importante para coleta de dados nesta, que consideramos uma situação especial como campo de pesquisa. O estudioso, por meio do estabelecimento de uma relação face a face com seu campo de investigação científica, ao mesmo tempo em que coleta dados, é também, de certa forma, investigado. Na presente pesquisa, a participação no cotidiano das pessoas submetidas à investigação significou um envolvimento da pesquisadora, um compartilhar dos seus processos subjetivos, isto é, interesses, afetos, angústias, emoções, expectativas e medos.

O estudo não teve, portanto, preocupação estatística com relação ao tratamento dos dados, embora dados quantitativos tivessem sido necessários para situar o contexto, no qual se deu a pesquisa e traçar o perfil da população pesquisada. Assim, privilegiou-se, sobremaneira, o modelo de análise qualitativa, com ênfase nas técnicas da observação e da história de vida consideradas mais apropriadas para o tipo de problema proposto pela investigação.

A partir do relato da trajetória de vida foi necessário distinguir, nos vários discursos, o que indicava experiências comuns do que era específico da experiência de cada uma das entrevistadas. A investigação buscou ainda compreender o que ocasionou o aprisionamento na Penitenciária Maria Júlia Maranhão, as situações de violência vivenciadas antes e no decorrer da experiência prisional e, por fim, a experiência de presa-mãe. Assim, para que fossem situados os quarenta e seis casos analisados no contexto do conjunto das presas investigadas, recorreu-se a autores como Bogdan; Biklen (1994, p. 93) que, ao se utilizarem das histórias de vida, afirmam que a mesma representa:

Frequentemente, uma tentativa para reconstruir a carreira dos indivíduos, enfatizando o papel das organizações, acontecimentos marcantes e outras pessoas com influências significativas, comprovadas na moldagem das definições de si próprios e das suas perspectivas sobre a vida.

De acordo com Queiroz (1988, p. 20) a técnica história de vida consiste no “relato de um narrador sobre sua existência através do tempo, tentando reconstruir os acontecimentos que vivenciou e transmitir a experiência que adquiriu”. O pesquisador, desse modo, procura não intervir durante a narração.

Por esse motivo, priorizamos a técnica da história de vida, pois em uma entrevista, o pesquisador tende a valorizar aquilo que vier ao encontro dos objetivos por ele propostos, de modo que muitos relatos do narrador acabam sendo sacrificados. Enquanto que nos relatos das histórias de vida, busca-se evitar que aspectos considerados relevantes ao estudo sejam omitidos.

Embora previsíveis, foi inevitável que, na condição de pesquisadora, sentisse desconforto diante dos desperdícios, da dispersão e dos resíduos no processo de pesquisa. Muito embora a convivência com a incerteza seja própria dos processos de investigação, algumas particularidades foram evidenciadas. Em primeiro lugar, pelas minhas expectativas e da própria Universidade quanto aos resultados desta investigação. Em segundo lugar, destaca-se o fato de que prisão e violência como objetos de pesquisa também produzem desassossegos peculiares. No caso da criminalidade, é inquestionável que o tema mobiliza em todos nós, pesquisadores ou não, sentimentos de impotência, ressentimento e esgotamento.

A opção metodológica para a realização deste estudo, foi analisar os discursos construídos em torno dos processos de violência, tráfico e maternidade.

De acordo com Foucault (2004), os discursos são práticas sociais e, como prática, tornam- se possível definir as condições de sua produção. Todo discurso tem um contexto em que foi produzido, um conjunto de relações sociais que articulam e regulamentam o discurso. “A linguagem não é um sistema arbitrário; está depositada no mundo e dele faz parte” (FOUCAULT, 2004, p. 47)

De acordo com Foucault (2004), quando são as normas que ditam as leis, são os sujeitos da transgressão que estão em questão, mas quando, ao contrário, são as leis que imperam sobre as normas. Nesse caso, não se pune o sujeito, mas a transgressão por ele cometida.

Nos discursos/depoimentos estudados, pode-se, claramente, perceber que a ênfase na transgressão está estritamente relacionada aos processos de normalização já descritos. Para os normalizados que transgrediram ocasionalmente as normas, a ênfase recai em seus atos e nas formas de reintegração. Mas, para aqueles que não se assujeitaram às normas (os

desnormalizados), a transgressão merece vingança e retribuição, neste caso a punição não se voltará para a infração, mas para o sujeito. Ocorre, nesse momento, o que Misse (2006) denominou de sujeição criminal, em que a incriminação busca atingir os sujeitos desafiliáveis, egoístas e, portanto, perigosos.

Durante cerca de um ano e meio, analisei prontuários, processos, planilhas, fiz constatações in loco, entrevistei pessoas e presenciei fatos que trouxeram elementos importantes para o estudo. Certamente, não poderia ser diferente. Como acompanhar de perto a vivência dessas mulheres, intra ou extramuros, sem contemplar, além dos aspectos objetivos, outros, de caráter subjetivo, que se manifestam nas práticas e nas falas de todos os envolvidos com a questão? Como ignorar as representações sociais inerentes a própria cultura brasileira, que não reconhecem as mulheres encarceradas como sujeitos de direito e detentoras de dignidade humana? Por outro lado, como não considerar as demonstrações claras, por parte de alguns segmentos, que desejam ver a reinserção social dessas mulheres realmente acontecer – senão através da análise e interpretação das situações concretas que apontam para isso?

Nas tentativas de registro, busquei armazenar as experiências da pesquisa em um diário de campo. Nele, fiz muitas anotações sobre ambientes, pessoas, fatos e falas, expressando as minhas percepções imediatas do que foi observado. É evidente que nem tudo o que foi anotado neste diário compôs a tese. No entanto, a maior parte dos registros contribuiu para que imprimisse o meu olhar sobre cada fato novo, que acrescentasse algo de significativo para a compreensão das experiências daquelas mulheres no ambiente prisional, buscando a consistência explicativa que o objeto de pesquisa mereceu.

Por essa razão, nos locais onde os dados foram coletados, fiz uso da observação livre, não participante, registrando as singularidades do ambiente e dos sujeitos, além dos procedimentos cotidianos. Isso tanto colaborou para a compreensão da realidade estudada, como teve impacto significativo na forma como a pesquisa transcorreu.

A minha presença, como pesquisadora, nos lugares onde foram coletados os dados, agregada à própria temática estudada, implicou interação constante com diversos sujeitos que, direta ou indiretamente, estão relacionados ao sistema penitenciário, como servidores da justiça criminal, gestores, agentes do sistema penitenciário, além das presas. Essa interação também foi mediada pela observação, seja dentro do espaço penitenciário ou fora dele, contribuindo para a identificação de fatos e circunstâncias que revelaram elementos analíticos inerentes ao objeto de pesquisa.

A partir da interação e conversa com as presas, algumas categorias de análise começaram a ser delineadas. A primeira delas permitiu coletar dados sobre o delito cometido, a pena

aplicada, o regime de cumprimento de pena, se houve reincidência ou não e se houve problemas de convívio no espaço penitenciário (com aplicação de sanção disciplinar).

A segunda categoria tinha como objetivo coletar dados sobre estudo, cursos e trabalho durante o cumprimento da pena, com o intuito de identificar quantas receberam incentivos do Estado, já que são atividades diretamente relacionadas às possibilidades de inserção no mercado de trabalho. A terceira buscava descobrir a experiência da maternidade para algumas mulheres presas, que compuseram a pesquisa, na tentativa de descobrir que tipo de relação estabelece com os filhos, sobretudo aqueles que não convivem com elas na prisão; quais suas opiniões acerca do tempo de permanência dos filhos no ambiente prisional, após seu nascimento; as expectativas que nutrem em relação à vida pós-cárcere, entre outras.

Por fim, ressalta-se que a presença do estigma mostrou-se presente nas entrelinhas dos discursos, na estrutura física pauperizada da instituição, no silêncio de algumas mulheres sobre as situações de violência e maus tratos, mas também nos discursos dos gestores, responsabilizando os companheiros dessas mulheres sobre a sua entrada no mundo da criminalidade. Tudo isto está presente nas condições econômicas precárias destas apenadas e de suas famílias que as condenam a serem “sobrantes”.

O importante dessa abordagem é que, ao mesmo tempo em que valoriza os discursos apresentados, dentro da lógica interna estabelecida pelos próprios atores sociais, também inclui a possibilidade de não tratar ingenuamente os “discursos”, pois eles expressam contradições, expressões de poder ou dominação, assim como devem ser colocados no contexto das condições e das relações de produção em geral e de sua própria produção.