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3. O GÊNERO TIRINHAS

3.1. HQs: Surgimento e Expansão

3.1.1 Histórias em quadrinhos no Brasil e no mundo: de texto censurado a texto

Conforme vimos, as HQs surgiram inicialmente nas páginas dos jornais dominicais dos Estados Unidos com histórias voltadas sobretudo para a população de imigrantes que residia no país. Nessa fase, “os quadrinhos eram predominantemente cômicos com desenhos satíricos e personagens caricaturais” (VERGUEIRO, 2016). Anos depois, as HQs passaram a publicar diariamente apresentando histórias fechadas, com enredo breve apresentando início, meio e fim, solidificava-se aí uma modalidade de HQs bem conhecida por nós nos dias de hoje, as célebres ‘tiras’. Como passaram a publicar mais, concomitantemente os autores passaram também a diversificar mais suas temáticas, abrindo espaço para enredos que focavam núcleos familiares, animais antropomorfizados, mas sempre com enfoque predominantemente cômico.

Inicialmente os desenhos utilizados na quadrinização eram bem caricaturais, a partir de 1920, com a popularização das histórias de aventuras e super-heróis, eles passaram a apresentar traços mais naturalistas e mais reais na representação de pessoas e coisas, isso fez com que o público das HQs se ampliasse ainda mais, também contribuiu para essa consolidação o aparecimento de suportes de veiculação periódica desse gênero nos quais os super-heróis tinham grande destaque por serem personagens de grande penetração junto ao público leitor. “A Segunda Guerra Mundial ajudou a multiplicar essa popularidade, com o engajamento fictício dos heróis no conflito bélico” (VERGUEIRO, 2016).

Com o final da Segunda Guerra, começaram a surgir dentro do gênero discursivo HQs histórias de temáticas diversificadas como terror, suspense, etc., essas histórias traziam representações extremamente realistas, muitas vezes de cunho macabro ou sombrio, apesar disso, esses textos continuaram tendo grande popularidade. O período pós-Guerra, sobretudo após o início da Guerra Fria, propiciou um ambiente de extrema desconfiança com relação aos quadrinhos. Nesse cenário se destaca a figura de Fredric Wertham, psiquiatra alemão radicado nos Estados Unidos que encontrou nos acontecimentos supracitados terreno propício para a disseminação na sociedade americana da ideia de que as HQs poderiam trazer sérios malefícios aos adolescentes.

Baseado nos atendimentos que fazia de jovens problemáticos, o dr. Wertham passou a publicar artigos em jornais e revistas especializadas, ministrar palestras em escolas, participar de programas de rádio e tevê, nos quais sempre salientava os aspectos negativos dos quadrinhos e sua leitura. Generalizando suas conclusões a partir de um segmento da indústria de revistas de histórias em quadrinhos – principalmente as histórias de suspense e de terror -, e dos casos patológicos de jovens e adolescentes que tratou em seu consultório, ele

investiu violentamente contra o meio, denunciando-o como uma grande ameaça à juventude norte-americana (VERGUEIRO, 2016, p. 11).

Utilizando-se de métodos nada científicos, com casos escolhidos a dedo, Wertham atribuía aos quadrinhos o desajustamento social de muitos de seus pacientes. A fim de “alertar” pais, professores e sociedade em geral dos perigos que as HQs representavam, o psiquiatra lançou um livro intitulado “Seduction of the innocent” (Sedução dos Inocentes), no qual defendia, por exemplo, que a leitura das histórias do Batman levaria os leitores à homossexualidade, ou mesmo que o contato com as histórias do Superman poderia levar uma criança a se atirar da janela de seu apartamento na tentativa de imitar o herói. Se hoje tais ponderações soam como descabidas e até mesmo jocosas, na época elas trouxeram grande impacto na forma que o público via e concebia as HQs. Isso fez com que, a partir de tais acusações, passasse a existir uma vigilância rigorosa a esses textos, de modo que os editores norte-americanos vendo seu trabalho prejudicado, passaram a imprimir em cada revista um selo de qualidade para atestar aos pais e educadores que o conteúdo das HQs não prejudicaria a moral e o intelectual dos jovens.

Muitos autores como Vergueiro, por exemplo, consideram que esse movimento de “depuração” das HQs cerceou sobremaneira a criatividade de muitos roteiristas e desenhistas da época, incidindo decisivamente na qualidade conteudista das histórias que acabaram caindo na mediocridade, “passando a veicular, em sua grande maioria, histórias pífias e sem grandes pretensões criativas, que realmente pouco contribuíam para o aprimoramento intelectual de seus leitores” (VERGUEIRO, 2016, p. 13).

Obviamente esses acontecimentos não tiveram impacto apenas em solo norte- americano, eles refletiram diretamente na forma como outros países consideravam as HQs. No Brasil, por exemplo, a fim de acalmar os ânimos dos vigilantes da moral e dos bons costumes sociais, foi elaborado um selo semelhante ao produzido nas revistas dos Estados Unidos, com o intuito de atestar a “qualidade” das histórias publicadas.

Nesse contexto de perseguição e censura à arte quadrinística, o Brasil também se destaca por sua repressão à liberdade de expressão no período da ditadura militar. Por ocasião do golpe militar de 1964, que depôs o então presidente João Goulart, o humor gráfico voltou a satirizar a política brasileira. Por conta da censura, quadrinistas e cartunistas não conseguiam espaço para publicar seus textos nas mídias convencionais, assim, caricaturas, charges e tiras que se impunham à intransigência do regime militar conseguiam espaço para seus textos apenas na

chamada imprensa alternativa, jornais independentes da época cujos conteúdos denunciavam toda forma de desigualdade e repressão (SANTOS, 2014).

Uma das publicações alternativas importantes dessa época foi o semanário “Pasquim”. Lançado em junho de 1969, esse veículo de comunicação reuniu importantes jornalistas, intelectuais e desenhistas da época.

Às vezes censurados e até detidos por causa da mordacidade de seus trabalhos, estes artistas conseguiram manter vivo o espírito crítico durante o período de exceção. Ao lado de textos sérios escritos por colunistas contrários à ditadura, o Pasquim abria suas páginas para charges e quadrinhos, que davam o tom de deboche em um momento marcado pela sisudez dos governantes e militares (SANTOS, 2014, p. 50).

Um dos destaques do “Pasquim” foi o cartunista mineiro Henfil (Henrique Filho). Henfil concebeu diversos personagens que nesse contexto tiveram grande destaque, como é o caso, por exemplo, dos Fradinhos, que com suas histórias assumiam uma “conotação anárquica e sádica, fundamental para defrontar-se de forma direta com os dogmas, medos e repressões derivados dos virtuosismos religiosos, morais e políticos” impostos no país (PIRES, 2006, p. 95).

No Pasquim Henfil encontrou espaço para conflagrar de forma mais aberta sua armada tanto contra as práticas políticas e econômicas do regime, como jornalísticas e comportamentais vigentes, influenciando, de maneira sui generis, a organização dos diferentes atores sociais para a participação e organização das demandas democráticas na vida política brasileira ” (PIRES, 2006, p. 95).

Observando todos os acontecimentos expostos acima, e enfatizando que a partir deles, pais, professores e educadores passaram a apresentar grandes objeções ao texto quadrinístico, percebemos o desafio que foi levar esse gênero para dentro da escola, e quão difícil foi concebê- lo como ferramenta no ensino.

O despertar para a utilização dos quadrinhos como ferramenta educativa se deu inicialmente na Europa, sendo posteriormente ampliado para outros países do mundo. Graças às pesquisas e à insistência daqueles que conheciam bem o potencial artístico, cultural e didático desse gênero, aos poucos foi-se entendendo que:

Grande parte da resistência que existia em relação às HQs, principalmente por parte de pais e educadores, era desprovida de fundamento, sustentada muito mais por informações preconceituosas em relação a um meio sobre o qual, na realidade, se tinha muito pouco conhecimento (VERGUEIRO, 2016, p. 17).

Apesar dessa notória morosidade no reconhecimento do cunho utilitário das HQs, no meio quadrinístico já existia essa percepção, já entedia-se que os quadrinhos poderiam ser utilizado na transmissão de conhecimentos específicos, exemplo disso foram as diversas publicações de HQs nos Estados Unidos, na década de 1940, que traziam antologias sobre personagens famosos da história. Também nos Estados Unidos, durante a Segunda Guerra Mundial, o Departamento de defesa, “com a colaboração do célebre desenhista Will Eisner, utilizou fartamente os quadrinhos na elaboração de manuais para treinamento de suas tropas” (VERGUEIRO, 2016, 19).

No entanto, foi na Europa que a utilização dos quadrinhos como ferramenta pedagógica utilizada dentro da escola se deu inicialmente. Na década de 1970, por exemplo, muitos manuais didáticos já traziam a quadrinização como parte integrante de seus textos, essa forma lúdica atraía os alunos levando-os a uma aprendizagem mais agradável.

Outros editores, constatando o sucesso comercial desse tipo de publicação, também se aventuraram na mesma linha, com maior ou menor sucesso, ajudando a firmar, perante o público, o entendimento de que as histórias em quadrinhos podiam ser utilizadas para transmissão de conteúdos escolares, com resultados bastante satisfatórios (VERGUEIRO, 2016, p. 19).

No entanto, essa inclusão ainda se dava de forma bem tímida, a presença das HQs de modo efetivo no ensino só se deu mais tarde; inicialmente esse gênero era utilizado apenas para ilustrar alguns aspectos específicos das matérias escolares, aparecendo nos livros didáticos de forma restrita, como um suporte ou apoio a outros gêneros, com o tempo, constatando os resultados positivos alcançados no ensino por meio da utilização desses textos, muitos autores, atendendo em muitos casos à solicitação das editoras, começaram a incluir de maneira recorrente esses gêneros em seus manuais.

No Brasil, essa adesão se consolidou na década de 1990, após uma avaliação da qualidade da educação e dos métodos de ensino do país, a partir de então, “muitos autores de livros didáticos passaram a diversificar a linguagem no que diz respeito aos textos informativos e às atividades apresentadas como complementares para os alunos, incorporando a linguagem dos quadrinhos em suas produções” (VERGUEIRO, 2016, p. 20).

Abria-se, assim, o caminho para a inserção de uma grande variedade de textos no ensino, incluindo gêneros até então marginalizados na escola como as HQs. Passou-se a perceber que as histórias em quadrinhos não tinham apenas a função de tornar as aulas mais agradáveis, elas também transmitiam conteúdos importantes, abordavam uma grande diversidade temática e

possuíam um caráter globalizador, o que permitia seu uso de forma interdisciplinar. Atrelado a isso, soma-se o fato de os quadrinhos apresentarem duas características pragmáticas importantes que viabilizam seu uso na sala de aula: trata-se de um material extremamente acessível, tanto a alunos como a professores, e de baixo custo, quando comparado a outros produtos da esfera cultural.

Nessa morosidade, envolto a polêmicas e cerceado por aspectos históricos e sociais, o texto quadrinístico chegou aos bancos escolares, atualmente ele possui presença recorrente nos livros didáticos de português, o que, em tese, viabiliza um trabalho em sala de aula que leve o aluno a tomar gosto pela leitura e possibilita um amplo leque de abordagens em sala de aula e uma aprendizagem consistente e prazerosa.