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Na década de 80, os estudos historiográficos, foram redefinidos, com as análises puramente econômicas, passaram a não dar a conta de explicar todas as teias de relações entre os senhores e escravos, muito menos de descendentes de escravos nos dias de hoje. Percebeu-se então que, não somente a história era a ciência que buscava explicações para os quilombolas e seus descendentes, mas também a antropologia e a sociologia contribuíam para isso.

Muitos trabalhos que compõem a historiografia, que estuda a região das Minas Gerais, foram responsáveis pela perpetuação de alguns “mitos”, que até há

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Idem, ibidem, p.251.

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FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classe. 3ªed. São Paulo: Ática, 1978; CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional. 2ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977; FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 12ª ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacional. 1974.

pouco tempo permaneciam difundidos nas explicações correntes sobre a sociedade, a política e a economia mineira. Entre eles, estabelecem-se dicotomias entre escravidão e liberdade, transmitindo-nos a idéia de que os escravos buscavam incessantemente a liberdade a qualquer custo.

Nos últimos anos, tais noções vêm sendo cada vez mais questionadas e colocadas em discussão. Neste sentido, os estudos pretendem discutir determinado espaço de liberdade adquirido pelos escravos por meio da conquista, e não de concessões. Desta forma, podemos perceber que existem várias maneiras de apreender os diferentes níveis das tensões que marcaram a vivência social dos escravos, ex-escravos e quilombolas, em um determinado contexto histórico.

Os estudos sobre a figura escrava, como ponto central de análises e agente transformador da realidade em que vive, aparece, primeiramente, na década de 1930 com os trabalhos de Gilberto Freyre. Casa Grande e Senzala é a maior destas obras. Nela o autor afirma que o “negro” teve uma fundamental importância para formação do povo brasileiro, através da miscigenação.25 Segundo este autor, neste estudo sobre as matrizes da formação do povo brasileiro, o negro assume um papel importantíssimo. Para ele, o quilombo aparece mostrando a superioridade do negro para com o índio, principalmente, no que se refere ao plantio e cultivos agrícolas26, uma superioridade que o autor denominava como “caráter europeizante do negro”. Ou seja, o negro é considerado por ele somente para miscigenação, mas não que há alguma capacidade intelectual ou moral de miscigenar, apenas refere-se à cor, tão somente.

Poucos anos após, podemos citar novamente, Clóvis Moura, que em sua obra busca “mostrar o comportamento divergente do escravo, isto é, o escravo participando da luta de classe”.27 Desse modo, este autor dicotomiza ainda

mais os estudos sobre quilombos, afirmando ser este o único espaço social que o escravo ou ex-escravo poderia modificar. Afirmando esta ideologia, o

25

Ver FREYRE, Gilberto. Casa-grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 10ªed. Tomo 1 e 2. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1961.

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Idem. Ibidem, p. 404.

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autor abre caminho para indagações que ainda hoje carecem de explicações, e que somente serão obtidas a partir de estudos que não se fecham em si, mas sim, proporcionam a mescla de estudos entre o sistema escravista, o mundo rural e a representação social destas comunidades negras rurais.

Quando Clovis Moura refere-se à organização econômica destes quilombos, afirma que estes buscam isolamento, melhores fertilidades do solo e possibilidades de aumentar ainda mais o contingente de pessoas que participaram para a formação da identidade do grupo. Para ele, “não havia, portanto, um aglomerado de ‘bárbaros selvagens, mas de homens que construíram uma economia estável, viviam dentro de normas estabelecidas consuetudinariamente e procuravam preservar esta estrutura” 28.

Sob outro viés de análise, Maria Helena P.T. Machado29 lança a questão de analisar os quilombos como um desafio a ser cumprido, citando como exemplos temas relacionados à organização do trabalho dentro destas comunidades - constituição familiar, cultura escrava e inserção dos mesmos na sociedade brasileira pós-emancipação. E corroborando com a autora acima, Hebe Maria Mattos mostra que este espaço de negociação não é desprovido de uma “economia moral”, mas sim, demarca um complexo espaço, público e privado, em que senhores e quilombos negociavam a liberdade30.

Dos estudos sobre Minas Gerais, temos como precursor os estudos de Laura de Mello e Souza, mais especificadamente Desclassificados do Ouro31, onde a autora apresenta um modelo teórico para que possa entender uma sociedade colonial e imperial, pelo menos ao que se refere ao lado social.

Laura de Mello e Souza é professora da Universidade de São Paulo, sua especialidade é a região das Minas Gerais no século XVIII, dentro de seu livro os Desclassificados do Ouro, podemos perceber que há uma postura teórica

28

Idem. Ibidem, p.82.

29

MACHADO, Maria Helena P.T. Em torno da autonomia escrava: uma nova direção para a História Social da Escravidão. In: Revista Brasileira de História. São Paulo. Vol.8, nº16, p.143-160, mar/ago., 1988.

30

MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista, século XIX. 2ªed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p.13.

31

MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do Ouro: a pobreza mineira no século XVIII. 3. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1990.

da história social. Segundo a autora alguns pontos sociais no Brasil havia tomado forma e estes preocupavam a Europa, mais especificadamente Portugal, com a presença de vadios que eram um peso para a terra.

Nas Minas Gerais, estes homens livres, ou “desclassificados” não eram absorvidos pelas lavras, estes não faziam parte de nenhuma parte da sociedade. Mesmo quando se afirma que as Minas Gerais foram o espaço privilegiado do processo de desclassificação social remonta-se como um anseio a construir riquezas de forma fácil. Assim, mesmo dessa forma tão fácil de um enriquecimento esta classe foi colocada a margem, pois não estava dentro de uma ordem social na qual era estabelecida senhor donos de escravos, e escravos.

Resenhando o livro de Laura de Mello, Luiz Carlos Ferraz Manini32, afirma que “Ao buscar a riqueza, o homem livre pobre, ou vadio, para utilizar a expressão da autora, tornou-se cada vez mais pobre, pois tinha que se submeter às condições ou possibilidades que se tornavam possíveis”. Por fim, o livro nos mostra uma nova interpretação para aqueles considerados comuns, permitindo uma configuração da sociedade colonial e imperial, abrindo espaço entre a dicotomia senhor - escravo.

Em Minas Gerais, sobre estes estudos, é mostrado por Ilka Boaventura Leite33, através dos relatos de viajantes do século XIX, que nesse estado existia uma busca por uma sociedade hierarquizada e dicotômica com as delimitações das fronteiras entre cor e classe social. A autora aponta em direção às análises raciais e de divergências étnicas dentro da própria comunidade remanescente, abrindo o leque também para análises das questões de mesclagem entre culturas.

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MANINI, Luiz Carlos Ferraz. Resenha do Livro: Desclassificados do Ouro. Laura de Mello e Souza. Disponível em http://www2.uel.br/ca/historia/conhecerhistoria/brasil/resenha.htm. Acessado em 05 de setembro de 2009.

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LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia da viagem: escravos e libertos em Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1996, p.223.

Carlos Magno Guimarães34 defende que o quilombo é uma “contradição básica” ao sistema escravista moderno, sendo este uma forma de “conflito de classes” entre escravos e senhores. Para isso, ele analisa a formação de quilombos em Minas Gerais - sua sobrevivência e destruição. Mostra que existia uma divisão de poder dentro dos próprios quilombos e seu posicionamento perante outras autoridades, e por fim, o autor compara os quilombos mineiros com o de Palmares, mostrando que havia medo de que os quilombos mineiros seguissem aquele exemplo.

Também sobre Minas Gerais, no século XVIII, Donald Ramos35 afirma que

havia neste estado, numerosos e pequenos quilombos, os quais não eram identificados e nem possuíam localização precisa. Para ele, os quilombos eram os locais onde viveram os escravos, homens livres e outras classes que não estavam satisfeitas com o tipo de governo e sistema econômico da época. “Os quilombos, então, desempenhavam um papel importante no complexo tecido social” 36. Assim, o autor mostra que estes quilombos não somente ameaçaram a sociedade luso-brasileira, mas cooperaram com a mesma, pois eram comunidade organizadas e produziam produtos agrícolas negociando assim com as cidades no entorno. Existem trabalhos que mostram a utilidade de certos quilombos para a economia de tal região, sendo assim, os quilombos podem ser vistos como um meio de vinculação de mercadorias, principalmente agrícolas, fugindo do padrão colonial escravista.

Por fim, esta historiografia abre novos leques conhecimento sobre quilombos, principalmente, os voltados para sua cultura, para a posse de terra e para a relação intra e extra-grupal.

Estas análises não se encerram por aqui, pois os pesquisadores que estudam a categoria quilombos e ou quilombola, devem pensar em comunidades

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GUIMARÃES, Carlos Magno. “Mineração, Quilombos e Palmares: Minas Gerais no século XVIII”. In: GOMES, Flávio dos Santos e REIS, João José (orgs.). Liberdade por um Fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 139 – 163.

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RAMOS, Donald. O Quilombo e o Sistema Escravista em Minas Gerais do século XVIII. In: GOMES, Flávio dos Santos e REIS, João José (orgs.). Liberdade por um Fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 164-192.

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organizadas e auto reconhecidas como tal, assim levando em consideração o surgimento das “novas etnias”.

Assim, segundo Hebe Maria Mattos de Castro (2006) “tanto a antiga [relativa] invisibilidade quanto a nova identidade quilombola – reivindicação racializada do passado cativo – foram, porém, escolhas políticas possíveis em relação aos usos simbólicos da memória”37 compartilhada por todos, sejam escravos ou

senhores e seus descendentes. Esta memória representa hoje um capital social que garante o acesso à cidadania, que hoje ela está cada vez mais fragmentada.

Assim como o movimento estava acontecendo na historiografia, paralelamente estava ocorrendo um outro, não podemos afirmar que estes dois estavam ligados, e nem que estavam desligados. Contudo, a partir do final dos anos 80, os grupos afro-descentendes vêem se organizando e reorganizando, reivindicando as terras quilombolas. Com isso, crescem também, aqueles que os apóiam como o Ministério da Cultura, Ministério do Desenvolvimento Agrário e a Fundação Palmares, como órgãos do governo que atuam para garantir que o direito agora previsto na Constituição seja cumprido.

2.2.3 HISTÓRIA/ANTROPOLOGIA – CONCEITO DE MEMÓRIA