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CAPÍTULO II – NOVAS PROPOSTAS PARA A ACELERAÇÃO DA

1. Contributos teóricos na forma de medir e mediar o tempo

1.1 Historiografia: a sua instrumentalização política e social

1.1.1 Historiografia romântico-liberal

O romantismo, inserido no movimento cultural que teve o seu apogeu no processo social e político que levou à consolidação do liberalismo monárquico-constitucional, afirmou- se como corrente educadora e defensora de uma profunda revolução cultural. Os seguidores

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Este procedimento não é novo; já Tito Lívio, um dos grandes historiadores romanos, tinha como perspetiva uma história voltada para o passado, entendendo-a como fonte de virtudes nacionais, cujos exemplos deveriam servir de modelo ao cidadão romano. Empenhou-se em alimentar e exaltar o espírito cívico e patriótico dos romanos. Consultar: Lívio (2008).

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Convém consultar as seguintes obras: J. V. Serrão (1974); J. S. Ribeiro (1872).

31 Periódicos tais como “mercúrios”, “relações”, mas sobretudo as “gazetas”, os Anais das Ciências, das Artes e das Letras, O Campeão Português, foram sistematicamente lidos como um embrião do que

haveria de se formar depois, como um mero ponto de passagem de um género jornalístico moderno, e funcionaram como protótipos da história, até porque se criaram nos mesmos autênticos fóruns de intervenção, discussão e reinterpretação da história (Tengarrinha, 1989).

46 desta corrente estavam convencidos de que eram capazes de urdir e munir uma nova sociedade em que os indivíduos interiorizassem que são entidades unívocas, com os seus imperativos sociabilitários (Catroga, 1993, pp. 569-581).

Perante o desmoronamento acentuado do Antigo Regime ergueu-se um movimento nacionalizador que atravessou todas as formas de cultura e que teve como pano de fundo a história. Reivindicava uma regeneração pelo regresso às origens, proporcionando uma nova ordem. A valorização do passado afigura-se socialmente útil, quando articulado com as preocupações do presente, algo patente nos diversos trabalhos de um dos nossos maiores expoentes culturais, Alexandre Herculano.32

Considerando o alcance e o espaço delimitado da nossa pesquisa, não nos deteremos em grandes elaborações a respeito do que referimos. Contudo, salientaremos alguns aspetos. Desde logo, na sua declaração de intenções em A História de Portugal, escreveu que o seu relato visava “corrigir e alumiar o presente pelas lições da história” (Herculano, 2007, p. 8). Na sua defesa do passado histórico, como catalisador do futuro, deixa claras indicações “para avaliar as transformações presentes, em si, nos seus resultados materiais e nos seus destinos futuros” (Herculano, 1942, p. 72).

Há nestas palavras uma perspetiva da história, que cedo evidenciará práticas consensuais ritualizadas. Tais práticas são precursoras da vaga de fundo dos feriados que, num primeiro momento (liberalismo), terão menor impacto, mas assumirão foros nunca vistos na Primeira República.

Alexandre Herculano, na revista O Panorama, propunha-se pugnar pelo incremento de uma educação de qualidade e diversificada nos saberes, mencionando “o exemplo dos países mais ilustrados, fazendo publicar um jornal que derramasse uma instrução variada, e que pudesse aproveitar a todas as classes de cidadãos, acomodando-o ao estado de atraso, em que ainda nos achamos” (1837, p. 2). O entusiasmo de Herculano fê-lo enveredar pelas narrativas do passado investigadas, mas também ficcionadas. O seu envolvimento situou-se igualmente nos ensaios, novelas e romances históricos.

As obras beneficiaram muito do/e popularizaram-se pelo facto de serem publicadas em folhetins ou fascículos, carreando as informações a um público mais amplo, proporcionando uma iniciação cultural em massa, de que Herculano se orgulhava, proclamando que “a par de um artigo de crítica, de moral, de ciência, deve ir um romance histórico, uma cena dramática,

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Um dos nomes incontornáveis da nossa cultura. A História de Portugal, apesar de algumas imprecisões, teve uma enorme projeção.

47 um poema” (1866, p. 105). Em tudo isto importa realçar o papel que os efeitos da cultura, sobretudo histórica, estavam a proporcionar na sociedade. A história era um devir que, independentemente das características,33 se consubstanciou numa leitura mais social e coletiva dos acontecimentos passados, na procura de virtudes e na definição de uma periodicidade. O calendário e as suas datas festivas seriam o vértice social por excelência para esse fim, num momento em que algumas das ritualizações festivas estavam consolidadas.

Herculano, em toda a sua laboração intelectual da história, não foi imune à influência do romantismo historiográfico alemão dos inícios do século XIX, romantismo esse que procurava captar a índole nacional pelo somatório idiossincrático, que resultava da conjugação de particularidades como a arte, o direito, as instituições, a economia e as canções populares, nas quais se objetivava o espírito do povo. Na Alemanha, um dos seus mais altos signatários, M. Niebuhr (1836), estudou a história de Roma numa toada que perspetivou mais as instituições e a estrutura do Estado do que os indivíduos que o integravam.

Alexandre Herculano expressa essa admiração pela historiografia romântica alemã ao asseverar no seu primeiro volume de A História de Portugal que é “vergonhoso que Portugal se não tenha associado ainda ao grande impulso histórico dado pela Alemanha, por esse foco de saber grave e profundo, a toda a Europa” (p. 20).

Fazendo uso dos argumentos utilizados pelos nascentes nacionalismos europeus, Herculano seculariza as origens da nação portuguesa, recorrendo a três critérios unificantes de identidade nacional: raça, língua e território – se bem que considerasse que no caso luso não fossem tão determinantes. Através de tais explicações e teses, afastava toda a nossa tradição milagreira arreigada na formação do nosso país.34

Herculano (2007) perfilhava que Portugal ganhou existência enquanto indivíduo político, devido sobretudo ao “esforço e tenacidade dos nossos primeiros príncipes”, ou seja, “o reino de Portugal formou-se pelos dois meios da revolução e da conquista” (pp. 82-83), desvalorizando os aspetos de diferenciação étnica, linguística e geográfica. O argumento de Herculano tinha como tónica uma legitimação histórica da génese da nacionalidade a partir da

33 Para Vico, a história estava sujeita a ritmos ascendentes e descendentes. Já Herder considerava que a

mesma vivia de processos de decadência. Os epistemas metodológicos variavam conforme os seus mais significativos representantes (Niebuhr, Ranke, Guizot), que certamente foram fontes e influências para Herculano.

34 A resposta herculaniana a esta questão constituirá uma das posições mais polémicas de toda a sua

constituição historiográfica. Seja como for, o certo é que, depois de Herculano, o problema das causas da formação de Portugal tornou-se numa das discussões que, de certo modo, ainda hoje se mantém aberta. Nomes de grande projeção nacional envolveram-se nessa discussão, tais como Teófilo Braga, Oliveira Martins, Jaime Cortesão, António Sérgio, José Mattoso, entre outros.

48 vontade dos portugueses. Esta era secularizada, mas sem os contornos de reafirmação que grassavam no continente europeu (Hobsbawm & Paoli, 2002).

Esta posição apresentava-se como um corolário lógico do seu evolucionismo e do seu organicismo espiritualista, materializados na cultura, nos costumes, nas instituições e nas formas de organização política de cada nação. Essa posição terá claros reflexos futuros em órgãos e instrumentos tutelares; no último caso, no que ao nosso assunto interessa – o calendário com os feriados.

O apanhado de textos, aqui apresentados, sustenta em linhas gerais e essenciais como se concebia a ideia de história para a posteridade. Este corpus, que poderíamos chamar de primeiro romantismo histórico, foi de importância capital na conjuntura liberal.

Concomitantemente, os liberais encontravam na História de Portugal subsídios fortes para encetar uma reflexão sobre a realidade portuguesa diametralmente oposta aos pergaminhos tradicionalistas. Trabalhos como Portugal Regenerado 1820, sem autor, mas presumivelmente da autoria de Borges Carneiro, alude a esse repensar da história, revelando uma ideia de movimento de regresso às origens míticas da história portuguesa.35

Segundo este estudioso, as míticas Cortes de Lamego e o seu documento de génese, tido por apócrifo pela maioria dos estudiosos, foi considerado um contrato social, onde reunidos os representantes do clero, nobreza e povo firmaram as leis fundamentais e aclamaram D. Afonso Henriques como Rei de Portugal, em 1143, conferindo assim um carácter liberal fundacional à nação portuguesa (Carneiro, 1820, pp. 98-99).

O verdadeiro paradigma de interpretação histórica liberal de Portugal é alcançado no Ensaio Histórico-Político sobre a Constituição e Governo do Reino de Portugal, do ex- cónego José Liberato Freire Carvalho (1772-1855), onde em linhas gerais e essenciais apresenta os contornos de análise histórica que seriam assumidos e glosados pela historiografia liberal e republicana. Nas suas reflexões da história portuguesa, o autor procura provar que nas origens há um fundo liberal na constituição portuguesa, na qual emergem as Cortes como instituição fundamental, “Onde se mostra ser aquele reino, desde a sua origem,

35 O liberalismo que surge após a Revolução de 1820 é de fundo ideológico francês e inglês, relendo as

estruturas políticas e jurídicas portuguesas. Há que referir que, apesar das diversas tendências, o mesmo caracterizou-se por conceitos e valores advindos das Luzes, onde pontificavam valores como a liberdade, a igualdade, a segurança, a propriedade individual, os direitos e deveres do cidadão, a representação social, o pacto social, a tolerância, entre outros (Mattoso, 1993, p. 47; Torgal & Catroga, 1996, p. 32). Importa frisar que Manuel Fernandes Tomás, na linha do direito jurídico, publica, em 1815, na Imprensa da Universidade de Coimbra, um libelo contrastante contra a ordem jurídica do então denominado Repertório Geral ou Índice Alfabético das Leis Extravagantes do Reino de Portugal,

49 uma monarquia representativa: e que o absolutismo, a superstição, e a influência de Inglaterra são as causas da atual decadência” (J. L. Carvalho, 1830, p. 341).

J. L. Carvalho (1830) aventa outras causas, como: a introdução da inquisição e os jesuítas, que “foram a queda da nossa representação nacional” (p. 341), mas também as conceções histórico-políticas clássicas da perda das virtudes cívicas do povo luso, na esteira da regência e do reinado de D. João VI, marcado pelas invasões francesas, pela fuga da família real e pelo domínio dos ingleses. Portanto, “Só a revolução de 1820 nos levou ao encontro da nossa realidade constitucional” (p. 128), lembrando aos portugueses que:

É preciso pois que todos estes factos se conservem sempre muito bem gravados na memória de todos os portugueses a fim de emendarmos nossos erros passados, que tão fatais nos têm sido, e recuperarmos por uma vez a nossa antiga independência, e liberdade política, agarrando-nos à Carta, que só pode ser a única tábua de nossa salvação. (p. 432)

A leitura é clara. A história revista pelos liberais de vários cambiantes surge como um referencial para a memória coletiva, embora reinterpretada como elemento essencial no que concerne à defesa do valor da liberdade, que radicava na nossa primitiva constituição política, tendo de simplesmente ser renovada. Outros autores irão projetar-se nessa empresa de historia magistra vitae, a chamada história mestra da vida (Koselleck & Gunther, 2013), como António Feliciano Castilho (1800-1875), Oliveira Martins, entre outros.

Há em todo este processo claros laivos de fundo espiritualista e metafísico, encontrando-se uma quase obsessão com que se procurou captar, no passado, uma índole nacional. Com efeito, a invocação da história de um determinado génio transformar-se-ia num dos mais frequentes lugares-comuns da nossa historiografia romântica.

A história operaria o seu papel de ciência aplicada à luz da mediação presentista inerente a todo o estudo do passado, numa estratégia que apostava em legitimar historicamente a refundação de uma nação que, estando decadente, necessitava de se regenerar. A redefinição deste quadro paradigmático justificaria, num segundo momento, a criação de um modelo reatualizado e reajustado, que convinha ritualizar convenientemente, além de justificar os nacionalismos.

Parece-nos óbvio que a história se tornou num instrumento privilegiado ao serviço de uma cultura burguesa, numa primeira fase, sendo depois revisitada nos auspícios dos republicanos e na Primeira República, servindo de pretexto celebrativo nos calendários. O liberalismo recebeu uma fundamentação historicista.

50 Por agora, importa frisar que, na interpretação liberal, se encontram manifestos os intuitos do presentismo sobredeterminante de uma leitura do passado. Convém não esquecer a crítica ao absolutismo, a função fundamentadora historicista do sistema representativo, a luta voraz contra o ultramontanismo e o congreganismo, que se adequaram às lutas de cariz ideológico, e a possibilidade de alteração de cenários nos campos políticos, institucionais e sociais, algo de resto enquadrado com a nossa temática de investigação. A matriz histórica é precursora da vaga dos feriados.

Dentro deste prisma, apoiadas numa estrutura filosófica da história relativamente sedimentada em Portugal e beneficiando mesmo de uma conjuntura francamente favorável, algumas tentativas são ensaiadas com relativo sucesso no calendário de então. A revolução vintista socorria-se dos ventos de influência vindos de França e Inglaterra.